Façamos Justiça à Justiça Eleitoral brasileira.
Marjorie Marona e Fábio Kerche*
A Justiça Eleitoral brasileira organiza e regulamenta as eleições, além de funcionar como árbitro de disputas relativas ao processo eleitoral. É esse ramo do Poder Judiciário, com auxílio do Ministério Público, que distribui as urnas por todo o território, seleciona e treina mesários, conta os votos, decide sobre os horários em que as sessões funcionarão no dia da votação, autoriza um cidadão a ser candidato ou decide se um partido está abusando da liberdade de expressão ao falar de um adversário, por exemplo. Portanto, ainda que as eleições sejam sobre candidatos, partidos e eleitores, no Brasil os juízes e promotores eleitorais são peças fundamentais para que o processo seja justo e competitivo.
Como qualquer opção institucional, esse modelo, que centraliza a governança eleitoral na autoridade judicial, tem vantagens e desvantagens. Por um lado, garante que atores não diretamente envolvidos na disputa eleitoral funcionem como árbitros do processo, induzindo a condução imparcial do pleito e evitando o desvirtuamento do real resultado das eleições. Por outro, estende ao ramo eleitoral da Justiça – talvez o que mais diretamente lida com o mundo político – a discricionariedade de que juízes e promotores gozam em tantas outras dimensões de atuação. Como decorrência, a previsibilidade sobre o desempenho da Justiça Eleitoral resta prejudicada: são 2.622 juízes e pelo menos mais 2.000 promotores eleitorais decidindo livremente sobre incontáveis questões eleitorais em todo o território nacional. A Justiça Eleitoral carrega, portanto, todas as vantagens e as desvantagens típicas do modelo de organização do Judiciário e do Ministério Público brasileiros.
A magnitude e a complexidade da Justiça Eleitoral brasileira tornam bastante árdua a tarefa de avaliar seu desempenho que, a cada pleito, tem-se tornado mais grave, em parte pelas razões estruturais já aduzidas, ligadas ao nosso modelo de governança. A judicialização das eleições – fenômeno que a editoria de Justiça e Eleições do Observatório das Eleições pretende desvendar no pleito desse ano – não é, portanto, inédito. Seja porque milhares de agentes do sistema de justiça são envolvidos no processo eleitoral, seja pela larga abrangência de sua atuação, ou em razão dos variados instrumentos processuais e múltiplos pontos de acesso à Justiça Eleitoral. O fato é que cada uma das etapas de construção da representação política eleitoral carrega oportunidades de judicialização. E a Justiça Eleitoral pode, evidentemente, funcionar bem em uma dimensão de atuação e apresentar um desempenho mais ou menos problemático em outra. É possível, por exemplo, que a implementação e o gerenciamento da disputa eleitoral, que envolve o credenciamento dos eleitores e dos candidatos, a coleta e contagem dos votos e a publicação dos resultados e diplomação dos eleitos seja amplamente festejada, enquanto críticas tão contundentes quanto acertadas sejam dirigidas à adjudicação judicial de conflitos eleitorais.
As críticas à Justiça Eleitoral acompanham, portanto, o desenvolvimento do próprio fenômeno da judicialização das eleições. Dirigem-se, especialmente, ao gigantismo que a intervenção judicial pode assumir no processo eleitoral, mas também à instabilidade que pode ser gerada. Uma Justiça que escrutina e tutela obstinadamente as virtudes do voto flerta com a possibilidade de obstrução da mais livre manifestação da preferência do eleitor, ameaçando inclusive as manifestações mais criativas de construção da representação política. Essencialmente, cria assimetria onde deveria preveni-la: na competição político-eleitoral.
Não são dessa natureza os ataques que vêm sendo desferidos às instituições que organizam a competição político-eleitoral no Brasil. O ainda presidente Jair Bolsonaro e sua turba de apoiadores mais desatinada, em posição diametralmente oposta daqueles que apresentam críticas embasadas a aspectos do desempenho da Justiça Eleitoral, visando ao aperfeiçoamento da institucionalidade democrática, têm recorrido a uma retórica violenta. Estas acusações são alicerçadas em inverdades que visam, justamente, à deslegitimação do processo eleitoral – coração da nossa democracia. Trata-se de uma estratégia já mapeada pela literatura dedicada à compreensão dos processos de erosão democrática pelo mundo, marcada pela ascensão de novos aspirantes à liderança autoritária, e emulada por Bolsonaro.
O centro nervoso das investidas antidemocráticas são as suspeições infundadas que recaem sobre a vulnerabilidade das urnas eletrônicas diante de virtuais hackeamentos e outros atentados fraudulentos. A Justiça Eleitoral responde, firme e rigorosamente, a cada um dos embustes – e não apenas por meio de comunicados oficiais, como se viu obrigada a emitir diante da recente reunião que Bolsonaro promoveu com dezenas de embaixadores estrangeiros no Palácio do Planalto, mas também por meio de ações técnicas e políticas. A área de tecnologia e informação do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), órgão de cúpula da Justiça Eleitoral, passou por renovações importantes no último ano. Ainda em 2021, o TSE criou uma comissão para ampliar a fiscalização e a transparência do processo eleitoral, apostando na participação de especialistas, representantes da sociedade civil e instituições públicas como meio de resguardar a integridade das eleições. Em outra frente, instituiu, em caráter continuado, o Programa Permanente de Enfrentamento à Desinformação na Justiça Eleitoral. Este conta com mais de 154 parceiros, como redes sociais e plataformas digitais, instituições públicas e privadas, entidades profissionais, entre outros. Todos dividem com a Justiça Eleitoral as tarefas de monitorar notícias falsas, combatendo a desinformação com informação correta sobre a questão abordada, ampliar o alcance de informações verdadeiras e de qualidade sobre o processo eleitoral e capacitar a sociedade para que saiba identificar e denunciar conteúdos enganosos.
Essas e outras iniciativas de enfrentamento à campanha de descrédito das eleições são resultado de uma coalizão bastante peculiar entre os três ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) com assento no TSE – Barroso, Fachin e Alexandre de Moraes -, algumas vezes em articulação inclusive com o corregedor-geral da Justiça Eleitoral. As reações mais agudas até agora envolveram, inclusive, a abertura de um inquérito administrativo na Justiça Eleitoral contra Bolsonaro, cujos desdobramentos são incertos – embora devesse preocupar o presidente. O fato é que no TSE paira certo temor sobre o nível da violência política que pode eclodir no dia da eleição ou, em caso de derrota de Bolsonaro nas urnas, no momento pós-eleitoral, que engloba a diplomação do vencedor.
Para neutralizar as possíveis investidas mais violentas dirigidas ao TSE, organizou-se uma estrutura antiatentado que envolve a filmagem por câmeras da sala-cofre, onde os votos ficam registrados, que está protegida contra incêndio, alagamento, radiação e terremoto. Restam descobertos os cidadãos brasileiros, à mercê do produto imperscrutável da convergência perversa entre o discurso de ódio e de fraude eleitoral que ecoam no Palácio do Planalto: a violência pós-eleitoral, na forma de caos social está na mesa nessas eleições.
O cenário exige, portanto, enorme responsabilidade dos analistas do desempenho da Justiça Eleitoral no Brasil. Ninguém está acima das críticas, mas elas devem ser embasadas. A Justiça Eleitoral está sendo atacada justamente naquilo que só mereceria elogios.
* Marjorie Marona é professora da UFMG, coordenadora do Observatório da Justiça no Brasil e na América Latina e pesquisadora do INCT IDDC. Graduada e mestre em Direito, possui doutorado em Ciência Política. É coorganizadora de Justiça e Democracia no Brasil na América Latina: para onde vamos? e coautora de A Política no banco dos réus: a Lava-Jato e a erosão da democracia no Brasil.
* Fábio Kerche é doutor em Ciência Política pela USP e professor da Unirio. Foi pesquisador visitante na New York University e na American University. Foi pesquisador titular da Fundação Casa de Rui Barbosa e é autor, entre diversas publicações, do livro A Política no Banco dos Réus: a Operação Lava Jato e a erosão da democracia no Brasil, escrito em parceria com Marjorie Marona.