Ministros têm atuado de modo organizado diante do conjunto de ameaças que o ecossistema de desinformação e a violência política associada representam para o processo eleitoral
Marjorie Marona*
Vitor Marchetti**
Fábio Kerche***
Publicado Nexo Jornal
O crescente protagonismo da Justiça Eleitoral brasileira na consolidação de nosso regime democrático tem chamado a atenção para o desempenho do Poder Judiciário e do Ministério Público – atores que não figuravam nos reiterados debates sobre a reforma do sistema político no Brasil. Isso em um contexto em que talvez nada seja mais instável na democracia brasileira do que as suas regras eleitorais, em boa medida em razão da atuação da própria Justiça Eleitoral.
Explica-se: embora algumas regras estruturantes da competição política eleitoral sigam intactas até o momento, há inúmeras e frequentes mudanças que foram gerando a necessidade de reacomodação e readaptação dos partidos e dos políticos. Parcela significativa dessas transformações é consequência de uma postura ativista – e reformista – por parte dos ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) e do TSE (Tribunal Superior Eleitoral). A verticalização das coligações (2002), a redução do número de vereadores (2004), a anulação dos efeitos da cláusula de barreira (2006), a fidelidade partidária (2008) e a proibição do financiamento eleitoral por empresas (2016), são bons exemplos de alterações promovidas via Judiciário.
De fato, o nosso modelo de governança eleitoral combinou alguns elementos que permitiram à autoridade judicial atuar quase como um legislador, um rule making no processo eleitoral. E o TSE tornou-se, na prática, um órgão do STF para matéria eleitoral, agregando status constitucional à parte considerável das discussões jurídicas sobre a competição eleitoral. A partir daí, o protagonismo partilhado pelo TSE e pelo STF na agenda eleitoral só faz crescer.
Atualmente, o universo de ações em matéria eleitoral que tramitam no STF compreende um total de 258. Desses, 118 se referem ao controle concentrado (ADIs – Ações Diretas de Inconstitucionalidade – e ADPFs – Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental) e 140 são oriundos do controle difuso de constitucionalidade ou, ainda, das competências originárias da Corte. Para além do volume, a variedade de temas em discussão mostra a amplitude da agenda eleitoral no STF, o que indica a disposição de judicialização da disputa eleitoral e do exercício do mandato, tanto pelos partidos políticos e seus candidatos, quanto pela Procuradoria-Geral da República. A agenda abarca discussões sobre candidaturas (normas de registro e financiamento), passando pelas regras eleitorais (cláusulas de barreira, de desempenho e crimes eleitorais), até às condições para exercício e manutenção do mandato (crimes de responsabilidade, suspensão de direitos políticos, vacância de cargo eletivo, dentre outros temas). Soma-se à agenda eleitoral do STF discussões em torno dos virtuais impasses que o caráter nacional das recém-criadas federações deverá impor às alianças estaduais.
A atuação siamesa entre TSE e STF deve ser ainda mais destacada no pleito de 2022. A verdade é que desde as eleições de 2018 os ministros do STF que revezam assento no TSE, assumindo sua presidência alternadamente, organizaram uma coalizão cujos efeitos podem ser sentidos em diversas dimensões do desempenho da Justiça Eleitoral. Fux, Rosa Weber, Barroso, Fachin e, finalmente, Alexandre de Moraes, têm atuado de modo organizado diante do conjunto de ameaças que o ecossistema de desinformação e a violência política associada representam para o processo eleitoral e, consequentemente, para a vitalidade da democracia brasileira.
Alternando investidas mais ou menos contenciosas, a coalizão de ministros do STF – que conta com eventual adesão da Corregedoria-Geral Eleitoral – assume estratégias que por vezes parecem desencontradas, mas que refletem o ambiente de tensão institucional que o ainda presidente – e candidato à reeleição – Jair Bolsonaro faz questão de sustentar. Diante da campanha aberta de difamação do sistema eleitoral, liderada pelo Palácio do Planalto, o TSE reagiu duramente, instaurando, por exemplo, um inquérito administrativo contra Bolsonaro. Simultaneamente, o tribunal vem ampliando os canais de diálogo com setores da sociedade e das Forças Armadas, através da Comissão de Transparência Eleitoral.
As grandes questões que as eleições gerais de 2022 colocam para a Justiça Eleitoral parecem bem desenhadas: fake news e violência política, que se interconectam no ataque antidemocrático às instituições e na proliferação dos discursos de ódio. As estratégias de enfrentamento a elas dependem, em parte, da mobilização dos candidatos e seus partidos e do Ministério Público, facilitada pela multiplicidade de recursos jurídicos e pontos de acesso à disposição. A disposição do próprio tribunal também conta: o TSE tem vasta área de manobra, particularmente pelas competências e atribuições que acumula.
Nesta eleição, os desdobramentos políticos do desempenho do TSE dar-se-ão sob a presidência de Alexandre de Moraes, de quem se espera forte atuação política nos bastidores, mas também respostas céleres e rigorosas nos autos. Tido como severo e centralizador, Moraes possui ampla capacidade de articulação, em razão de sua trajetória profissional sempre ligada à política. O ministro ocupou cargos em diversas administrações do PSDB e do DEM em São Paulo e depois o Ministério da Justiça no governo Temer (MDB).
Vale destacar também a interlocução que mantém com a cúpula das Forças Armadas, o que pode aliviar a tensão entre o tribunal e os militares, que marcou a presidência de seu antecessor – o ministro Fachin. O bom trânsito com a caserna pode contribuir para desincentivar um embarque da corporação em uma aventura golpista de Bolsonaro. Ademais, Moraes segue como relator de ações que, no STF, atingem Bolsonaro e aliados, tal como o inquérito das fake news e o das milícias digitais, o que lhe garante fogo extra no desempenho de sua função de resguardo da posição institucional do TSE.
Com um background jurisprudencial que ajudou a construir pelas decisões que determinaram a remoção de conteúdo falso ou de ataque às instituições de plataformas digitais, Moraes deve ser rápido e assertivo também em relação às fake news e a discursos de ódio que atinjam candidatos.
No contexto dessas eleições, o maior desafio do TSE será o de assumir uma postura ativa e intransigente na defesa do processo e das instituições eleitorais – e da democracia brasileira -, sem tornar-se, ele mesmo, um player na disputa. A estratégia a ser adotada talvez seja associar assertividade na desarticulação estrutural das redes de desinformação e violência político-institucional com a contenção na arbitragem, ponto a ponto, dos atos de campanha de Lula e Bolsonaro. O calibre, no entanto, deverá ser modulado desde o primeiro dia de campanha até a declaração do resultado, com vistas a assegurar a legitimidade do processo e conter os riscos à democracia brasileira.
Marjorie Marona é professora da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), coordenadora do Observatório da Justiça no Brasil e na América Latina e pesquisadora do INCT IDDC (Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação). Graduada e mestre em direito, possui doutorado em ciência política. É coorganizadora de “Justiça e Democracia no Brasil na América Latina: para onde vamos?” e coautora de “A política no banco dos réus: a Operação Lava Jato e a erosão da democracia no Brasil”.
Vitor Marchetti é cientista político e professor da graduação e da pós-graduação em políticas públicas da UFABC (Universidade Federal do ABC). É autor do livro “Justiça e Competição eleitoral” (EdUFABC, 2015).
Fábio Kerche é doutor em ciência política pela USP (Universidade de São Paulo) e professor da Unirio. Foi pesquisador visitante na New York University e na American University (EUA). Foi pesquisador titular da Fundação Casa de Rui Barbosa e é autor, entre diversas publicações, do livro “A política no banco dos réus: a Operação Lava Jato e a erosão da democracia no Brasil”, escrito em parceria com Marjorie Marona.