Flávia Biroli*
O primeiro debate das eleições presidenciais de 2022 foi atravessado por questões de gênero. Mas para quem pesquisa a política da perspectiva das mulheres, não há debate ou eleição que não seja. A pergunta é porque agora até os mais desavisados parecem reconhecer que o gênero é parte central das disputas.
Começo pelo que não é novo. No debate de domingo, duas candidatas expressaram com clareza suas posições, Simone Tebet (MDB) e Soraya Thronicke (União Brasil). Em 2014, também em agosto, o debate transmitido pela Band trazia três mulheres. A então candidata à reeleição, Dilma Rousseff (PT), estava em primeiro lugar nas pesquisas, seguida por Marina Silva (PSB). Além delas, estava Luciana Genro (PSOL), que junto com Silva participaria também dos de 2018. Naqueles pleitos, as mulheres já eram mais de 50% do eleitorado brasileiro. A lei que determina um mínimo de 30% de candidaturas de um dos sexos nas listas partidárias existe desde 1997, tendo se tornado mais efetiva após mudanças na lei em 2009 e com a decisão de 2018 que determina um mínimo do fundo partidário e do horário gratuito de propaganda para as candidaturas femininas.
Bem, as mulheres já estavam na roda, a diferença é que os feminismos se expandiram na esfera publica e as identidades políticas assumiram novos padrões de gênero.
Primeiro, ao menos desde 2018, os padrões de rejeição ou intenção de voto podem estar correlacionados ao fato de as pessoas serem homens ou mulheres. As preferências delas não se definem isoladamente, claro. O ponto é que, em conjunto com outras clivagens, o gênero tem sido importante para explicar o voto.
Em segundo lugar, candidatas têm reivindicado mais a identidade de mulheres ou de feministas. O feminismo difuso está em todos os lugares e candidaturas feministas têm chamado mais a atenção nos últimos pleitos. A Câmara dos Deputados tem, desde 2019, uma Frente Parlamentar Feminista e Antirracista. A novidade é que o feminismo se tornou algo a ser reivindicado mesmo que não exista uma relação mais orgânica com movimentos. No debate de domingo, Tebet, advogada e política de centro, se definiu como feminista. Incluiu Thronicke, uma política de direita, nessa caracterização, e ainda ensaiou uma discussão sobre os sentidos do feminismo.
Por fim, a terceira razão para a diferença. Os movimentos feministas expandiram o debate sobre desigualdades e violências de gênero. Com isso, elas foram sendo desnaturalizadas (não é mais “normal” silenciar, assediar, ofender) e politizadas (são problemas coletivos e públicos, e não de cada mulher). Assim, é relevante como os candidatos homens se comportam com as mulheres, se são hostis ou se assumem compromissos com uma sociedade mais justa.
O descontrole do candidato Jair Bolsonaro (PL), ao agredir a jornalista Vera Magalhães quando esta lhe perguntou sobre a relação entre sua posição contra a vacinação e a queda da cobertura vacinal no país, pode estar relacionado ao fato de que ele não encontra lugar nessa nova configuração. Parte de um movimento de reação a agendas igualitárias e de direitos humanos, rejeita décadas de conquistas feministas. Com maior rejeição entre as eleitoras, parece não saber como se referir a elas, como se viu ao falar das “sem marido” ou destacar crédito para “abrir seu salão de beleza”. Em sua trajetória pública, requentou o bordão da “defesa da família” e alternou desprezo e ironia ao tratar de desigualdades salariais e estupro.
A identidade dos homens também é uma questão de gênero, já que esse conceito ilumina relações e o modo como o feminino e o masculino são definidos, em contextos concretos. Ciro Gomes (PDT) referiu-se a sua criação machista e à necessidade de refletir e mudar. Líder nas pesquisas, o ex-presidente Lula (PT), que concentra as maiores taxas de intenção de voto das mulheres, tem preferido tratar do tema apenas indiretamente. Esse é um efeito de 2018, quando os avanços nas políticas para mulheres nos governos petistas foram tomados como “ideologia” pelos conservadores, sofrendo ataques. Faz sentido aceitar esse enquadramento em 2022? O primeiro debate entre presidenciáveis mostrou que não. Como nos países vizinhos, a agenda feminista vai se tornando, cada vez mais, parte incontornável da política. E pode render votos.
Flávia Biroli – É doutora em História pela Unicamp, professora de Ciência Política da UnB e pesquisadora do CNPq. Foi presidente da Associação Brasileira de Ciência Política. É autora, entre outros, de Gênero e desigualdades: limites da democracia no Brasil e coautora de Gênero, neoconservadorismo e democracia, ambos publicados pela Boitempo em 2018 e 2020.