Marjorie Marona
Fábio Kerche*
Uma versão deste artigo foi publicado no Le Monde Diplomatique Brasil
Em 2018, Bolsonaro se beneficiou eleitoralmente da agenda de combate à corrupção. A Lava Jato não apenas impediu a candidatura de Lula como também desestabilizou o sistema político, abrindo caminho para que um inexpressivo deputado chegasse à Presidência da República. Quase um mandato depois, a agenda da anti-corrupção se modificou.
Como um ilusionista, Bolsonaro desvia o foco ao repetir que em seu governo não há corrupção, quando, na verdade, o que falta é uma estrutura de controle e combate à corrupção. As denúncias atingem Bolsonaro e seus familiares mesmo antes do desembarque no Palácio do Planalto. O esquema de rachadinhas na Assembleia Legislativa do Rio persegue a clã há algum tempo. No governo, desde o primeiro ano, se acumulam. As denúncias mais pitorescas envolvem a compra de leite condensado, viagra e próteses penianas nas Forças Armadas. Mas há também acusações mais ortodoxas como as que envolveram o ministro do Turismo por suposto desvio de recursos por meio de candidaturas femininas laranja nas eleições de 2018; e as que atingiram o ministro do meio ambiente, acusado de dificultar a fiscalização ambiental e patrocinar interesses de madeireiros investigados por extração ilegal de madeira. Há, ainda, denúncias que atingiram o próprio presidente, particularmente em razão do chamado orçamento secreto, que chegou a ser objeto de investigação pela Controladoria-Geral da União (CGU) e pelo Tribunal de Contas da União (TCU).
A catastrófica gestão da pandemia de COVID-19 fez do governo alvo de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) no Senado da República. Irregularidades associadas às negociações para compra da vacina indiana Covaxin embasaram o pedido de indiciamento do próprio presidente e do então ministro da Saúde, Eduardo Pazzuelo. Denúncias de um esquema de propina envolvendo a compra de vacinas da AstraZeneca derrubaram o ex-diretor do Departamento de Logística do Ministério da Saúde, Roberto Ferreira Dias.
Em 2022, o Ministério da Educação (MEC), substituindo a Saúde, tornou-se o epicentro de denúncias de corrupção. Uma licitação bilionária do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) previa a compra de ônibus escolares superfaturados e um esquema de “escolas fake” foi desvelado. O chamado Bolsolão do MEC – que levou à prisão do então ministro Milton Ribeiro – marcou, contudo, a inflexão no discurso de Bolsonaro sobre a inexistência de corrupção em seu governo. O esquema de favorecimento de prefeitos no empenho de recursos em troca de propina, intermediado por pastores supostamente autorizados por Bolsonaro, obrigou o presidente a admitir que malfeitos pipocam em seu governo, apressando-se em se desvincular dos corruptos: “Se alguém faz algo errado, pô, vai botar a culpa em mim?”
Ainda pipocam os milhos resistentes. A verdade é que o arcabouço institucional de controle e combate à corrupção foi enfraquecido ao longo desses quase quatro anos de governo, mitigando o fenômeno. Bolsonaro sabe que quando se trata de corrupção, o tapete é a serventia da casa. O ainda presidente tem atuado no desgaste da institucionalidade democrática como um todo, incluindo aí estratégias que visam a reduzir a capacidade do Estado de dar respostas às ilegalidades cometidas pelos políticos aliados do governo.
O enfraquecimento do sistema de controle e combate à corrupção é uma agenda do governo Bolsonaro que tensiona o Estado de direito. As estratégias são variadas, passando pela imposição de sigilos, assédio institucional e captura de posições de comando, por exemplo; e dirigidas tanto para os órgãos de desvelamento e prevenção quanto para os de repressão à corrupção, incluídos aí os da justiça criminal. Se no passado recente, a Polícia Federal, o Ministério Público da União e o Poder Judiciário viram reforçada sua autonomia e a discricionariedade de seus membros, sofrem sob a gestão de Bolsonaro, com intervenções sistemáticas, embora nem sempre abertamente ilegais. Aos moldes de outras democracias em crise, Bolsonaro utiliza-se da lei contra a democracia.
A relação do governo com a Polícia Federal é um bom exemplo. Nos últimos anos, Bolsonaro trocou com frequência diretores-gerais e afastou delegados de posições estratégicas por meio de promoções. Nada de ilegal, embora sinalize sua disposição para intervir na PF, onde tramitam diversas investigações contra ele, incluindo a que apura atuação “direta, voluntária e consciente” do presidente no vazamento de informações sigilosas de inquérito que examina suposto ataque hacker às urnas eletrônicas em 2018.
Vale lembrar que a PF é um órgão vinculado ao Ministério da Justiça que, embora goze de certa autonomia, está mais vulnerável às investidas – nem sempre republicanas – dos chefes do Executivo. A mesma facilidade, no entanto, Bolsonaro não encontra quando se volta para o Ministério Público e o Judiciário. Os níveis de autonomia e discricionaridade de que gozam os agentes de acusação e julgamento – promotores e magistrados – são constitucionais, de modo que as estratégias de desmonte da institucionalidade de controle e combate da corrupção, nesse ponto, tiveram de ser recalibradas.
Em face do Ministério Público Bolsonaro mobiliza aquilo que está ao seu alcance para proteger os seus interesses sem necessariamente descumprir deliberadamente com a lei e a Constituição. A indicação, e recondução, do Procurador-geral da República, que tem o monopólio da acusação criminal contra o presidente, assegura certa reserva contra investidas jurídicas em desfavor do chefe do Executivo. O presidente incentiva parcimônia do PGR em relação aos interesses do governo por meio de promessas de um novo mandato ou até de uma futura vaga no Supremo Tribunal Federal. Tem funcionado com Aras.
O STF, por outro lado, tem sido o alvo preferencial dos ataques de Bolsonaro. Ali são processadas e julgadas as ações criminais que consigam furar o bloqueio do PGR. Em tempos de Aras, o STF – que ao longo do Mensalão e da Lava-Jato havia se acostumado a jogar ao lado do Ministério Público – se vê obrigado à catimba. A atuação – muitas vezes heterodoxa – do ministro Alexandre de Moraes vem colaborando para que o STF mantenha alguma capacidade institucional para atuar menos no combate judicial à corrupção; mais, contudo, na contenção das pretensões nada republicanas de Bolsonaro.
Em face do princípio da independência judicial, resta ao presidente operar nos limites da legalidade, contorcendo a institucionalidade. A indicação de Nunes Marques e André Mendonça são os escudos do presidente. No modelo atual, os poderes individuais dos ministros são exercidos em detrimento do colegiado, o que favorece a atuação dos dois calouros para minimizar as perdas do governo. Em paralelo, Bolsonaro avança uma estratégia de mobilização de suas bases buscando exercer pressão sobre o STF: discursos inflamados e ataques pessoais a ministros são insumo para a turba enfurecida.
Às tentativas de desmonte institucional, Bolsonaro agrega a estratégia de buscar blindar seu governo do ponto de vista político. A entrega do controle do orçamento secreto para o Centrão, sob direção do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, é o coração desse movimento. Se o PGR é responsável pelo oferecimento de denúncias no campo criminal, é o empoderado presidente da Câmara que pode autorizar o prosseguimento do processo de impeachment para crimes de responsabilidade.
O desmonte da institucionalidade do controle e combate a corrupção adensa o processo de autocratização capitaneado por Bolsonaro desde que chegou à Presidência. Também por isso, às vésperas da eleição de 2022, preocupa. Não há razão para qualquer otimismo em relação a um eventual segundo mandato. O discurso e a prática de Bolsonaro nestes últimos anos nos autorizam a prever mais ataques à institucionalidade democrática, assim como um reforço da blindagem do presidente de seu entorno em face de qualquer controle público. O presidente eleito pelo discurso anticorrupção corrompe a democracia brasileira à luz do dia.
* Marjorie Marona é professora do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Fábio Kerche é professor do Departamento de Estudos Políticos da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).
São autores do livro A Política no Banco dos Réus: a Operação Lava Jato e a erosão da democracia no Brasil (Autêntica, 2022).