Acácio Zuniga Leite e Camila Penna
Publicado na Mídia Ninja
Bolsonaro vem fazendo grandes eventos de campanha na forma de entrega de “títulos de propriedade” para os assentados da reforma agrária. Iniciativa que havia sido nomeada como Abril Verde e Amarelo, a avalanche de eventos festivos financiados pelo Governo Federal entrou no período eleitoral mobilizando a estrutura do Incra em diversos estados. Pasmem, os órgãos de fiscalização e controle têm mantido silêncio absoluto sobre isso. Em entrevista realizada em 01/02/2022 para o programa Questão de Ordem, para o canal AgroMais, o presidente do Incra Geraldo Melo Filho afirmou que se avançou na regularização fundiária por meio da entrega de 278 mil títulos emitidos nos três primeiros anos de governo. Em outubro, o site do Ministério da Agricultura, Abastecimento e Agropecuária (Mapa) informa que mais de 400 mil documentos de titulação foram emitidos no governo Bolsonaro. Contudo, entre os números que o governo divulga e ”títulos de propriedade” há uma grande diferença.
Com base nos dados divulgados no site do Mapa afirmamos, em texto anterior, que 400 mil títulos foram entregues entre 2019 e 2022. Porém, os dados completos disponibilizados pelo Incra, que diferenciam entre os tipos de documentos comprobatórios entregues aos assentados, mostram discrepância entre esse número “oficial” e a realidade. A seguir, a partir de uma análise mais aprofundada dos dados do Incra, explicamos porque é falso o discurso de entrega de 400 mil títulos de propriedade.
A contabilidade criativa começa quando são juntados títulos provisórios e títulos definitivos. De acordo com dados de agosto de 2022, enquanto foram emitidos 299.266 mil títulos provisórios em assentamentos durante o governo Bolsonaro, os títulos definitivos foram 35.798.
Na política de reforma agrária existem diferentes tipos de documentos comprobatórios. Os Contratos de Concessão de Uso (CCU) são documentos provisórios que apenas comprovam o vínculo das famílias com o Incra. Por meio deles deveriam ser acessadas políticas de desenvolvimento que o governo Bolsonaro esvaziou, como o Crédito Instalação nas modalidades Fomento e Fomento Mulher que, por exemplo, tiveram execução orçamentária zero em 2022.
Já os títulos de domínio representam a transferência da propriedade da terra do Incra para as famílias assentadas. Esses podem servir de garantia em empréstimo bancário e, ressalvadas as condicionantes legais, podem ser comercializados. A tabela abaixo demonstra a emissão de títulos pelo Incra no período de 2019 a 2022, discriminando títulos provisórios e títulos definitivos.
Dos 400 mil títulos que foram emitidos, quase 300 mil são provisórios e não conferem “propriedade privada” ao beneficiário, sendo apenas a primeira etapa de documentação na Política Nacional de Reforma Agrária. Quando o governo junta cachorro e abacaxi no mesmo saco, não faz outra coisa que não confundir. Na prática, Bolsonaro está entregando para 90% das famílias um papel que só representa o que elas já sabem que são: famílias assentadas. O resto é conversa pra boi dormir.
Não é de hoje que as controvérsias sobre os números do Incra surgem. Mas, se anteriormente a divergência era pela quantidade de famílias assentadas e a quantidade de área destinada para a reforma agrária, agora a contabilidade criativa reside nas famílias tituladas. Quando se analisa com lupa os dados da documentação emitida e entregue e o tipo de documento, fica explícito que esse discurso é enganoso.
A emissão de títulos provisórios é ultra simplificada e foi feita no atacado. O Governo Federal patina na sua única meta de política para os assentamentos. Além disso, vale mencionar que boa parte dos títulos emitidos não foram entregues. Vários desses eventos de entrega de títulos realizaram “entregas simbólicas”. Há de se suspeitar que só foram emitidos para engrossar a tal contabilidade criativa.
Ao mesmo tempo em que propaga a informação de que está, de fato, garantindo terra aos assentados, a paralisação da reforma agrária neste governo está explícita. Em recente Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), a Contag e diversas entidades demonstraram os danos da paralisação do processo de criação de assentamentos. Em especial destacamos dois: a ocupação desenfreada das terras públicas não destinadas e a permanência de milhares de famílias em acampamentos precários aguardando o cumprimento da Constituição Federal, que manda que as terras públicas cumpram função socioambiental.
Acácio Zuniga Leite é presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra) e doutorando em Desenvolvimento Sustentável pela UnB
Camila Penna é professora de Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.