Marjorie Marona
Publicado no Jota
A democracia é um sistema de governança liberal baseado na pluralidade de ideias e opiniões políticas, o que pode, paradoxalmente, facilitar as atividades de grupos e indivíduos que desejam prejudicá-la ou derrubá-la justamente pelo abuso de instituições e procedimentos democráticos. O sucesso eleitoral de Bolsonaro em 2018 – e mesmo seu desempenho na disputa deste ano – é mais uma evidência de que a tolerância ilimitada em relação a atores políticos intolerantes pode ser perigoso.
Já que nenhuma das declarações machistas, racistas, homofóbicas e de incitação à violência política que Bolsonaro proferiu enquanto deputado federal foi suficiente para que soasse o alarme sobre o risco que a sua vitória poderia representar para a democracia brasileira, em 2018, à frente do governo ele sequestrou a bandeira da liberdade de expressão para destilar ódio ao mesmo tempo que ataca jornalistas, censura dados públicos e abre inquéritos contra críticos e opositores. De fato, o debate ainda mal resolvido no país sobre a liberdade de expressão foi explorado por Bolsonaro não apenas eleitoralmente; tornou-se estratégia de governo.
O mais recente relatório do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) contabilizou ao menos 110 denúncias de violações à liberdade de expressão ocorridas no Brasil sob o governo Bolsonaro. As vítimas preferenciais das tentativas de censura ou repressão são, justamente, os jornalistas, comunicadores sociais, veículos e meios de comunicação.
Dentre os autores dos atos atentatórios à liberdade de expressão 67,6% são órgãos ou agentes públicos, sendo que em 6,3% dos casos está-se diante de ataques promovidos pelo próprio presidente da República. A postura de Bolsonaro em relação à imprensa não é original; outros populistas de extrema direita também buscaram desqualificá-la e/ou censurá-la ao passo em que investiam nas plataformas digitais para proliferar mentiras, teorias conspiratórias, violência e ódio – muito ódio. É o que fazem os autocratas que chegam ao poder fazendo uso de sua liberdade de expressão e de seu direito de participar de eleições, para instituir um regime de censura e perseguição dos opositores.
Nesse cenário de erosão das democracias mundo afora a discussão sobre liberdade de expressão ganha contornos ainda mais desafiadores. A onda autocrática que desaguou no Brasil com a chegada de Bolsonaro à Presidência da República exige que se reconheça o paradoxo da tolerância, de que nos fala Karl Popper em seu “The Open Society and its enemies” (1945): a tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância. A liberdade que a democracia demanda e consagra assenta no pressuposto da tolerância limitada. Ponto. Não por acaso, a tutela da liberdade de expressão não se estende a manifestações de ódio, às expressões violentas em razão da maneira de ser, ao estilo de vida, às crenças e às convicções de um indivíduo ou de um grupo, à discriminação de caráter religioso, racial, sexual, étnico e de classe reconhecida em discursos racistas, xenofóbicos, homofóbicos e misóginos, por exemplo. Também não estão sob a proteção da liberdade de expressão as manifestações de incitação à discriminação ou instigação à violência.
Ainda que seja um direito individual a liberdade de expressão impacta o coletivo, o que autoriza estender à discussão acerca do paradoxo da tolerância para a dimensão política, propriamente, aproximando-a das preocupações que envolvem contextos de deliberada propagação de notícias falsas e estruturação de um ecossistema de desinformação geralmente ancorado nas plataformas de mídias sociais.
A democracia não é uma missão suicida e, como tal, deve contemplar mecanismos de autodefesa. A democracia defensiva não pode admitir, por exemplo, que a defesa da liberdade de expressão dê guarida à difusão de informação falsa especialmente em um ambiente em que a fraude eleitoral passa pela distorção do processo de formação da opinião pública, como é o caso do Brasil. Arendt já alertou para o fato de que a mentira generalizada, a manipulação do sentido de realidade das pessoas, gera um ambiente de crescente desconfiança e descrença que debilita a autonomia individual a partir da qual opera a democracia liberal.
O Brasil não possui legislação específica para o combate às fake news embora algumas normas eleitorais (e não eleitorais) possam ser utilizadas no enfrentamento à desinformação. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) tem atuado na retirada de publicações com informações falsas das redes sociais e apostado nas parcerias que firmou com as plataformas para divulgação de conteúdos verificados sobre as eleições deste ano. Na linha de frente da democracia defensiva, o ministro Alexandre de Moraes, atual presidente do TSE, vem atuando também no Supremo Tribunal Federal (STF), pela via do inquérito das fake news e das milícias digitais que investigam o envolvimento do presidente e de seus aliados mais próximos em ataques virtuais a opositores e a instituições pela disseminação de notícias falsas, sobretudo em razão das investidas infundadas de Bolsonaro contra o próprio sistema eleitoral.
As iniciativas são tão polêmicas quanto urgentes. Sem ignorar a magnitude dos riscos que a adoção de estratégias de democracia defensiva pode ensejar – a possibilidade de “tirania judicial” talvez o mais sério deles –, urge reconhecer que a natureza hedionda dos discursos e práticas de Bolsonaro oferece gravíssimos perigos à democracia brasileira e aos direitos humanos.
Trata-se de situação excepcional e extrema que, mesmo diante do risco de apropriação judicial equivocada, autoriza o ativismo judicial que tantas vezes e tão corretamente foi criticado em face dos sucessivos governos democráticos, diante da materialização do arbítrio e da intolerância que rege as manifestações e práticas de Bolsonaro – o presidente e o candidato. Excepcional e temporária, a performance democrática militante dos ministros das cortes superiores perde toda e qualquer base de legitimidade tão logo os parâmetros mínimos de restabelecimento da normalidade democrática sejam restituídos.
Quer dizer que a defesa da tutela ativa da democracia pelas cortes só se sustenta enquanto medida de justiça sob o pressuposto de que a desigualdade (nesse caso informacional) interdita a mais tênue possibilidade de prosperar uma associação política entre cidadãos livres e iguais, baseada no respeito mútuo. E cessa tão logo a primeira flor (feia que seja) fure o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.
Marjorie Marona
Professora da UFMG, coordenadora do Observatório da Justiça no Brasil e na América Latina e pesquisadora do INCT-IDDC. Graduada e mestre em direito, possui doutorado em ciência política. É coorganizadora de “Democracia e justiça na América Latina: para onde vamos?” e coautora de “A política no banco dos réus: a Lava Jato e a erosão da democracia no Brasil”.