Bárbara Lopes Campos* 

Mariane dos Santos Almeida Costa**

Publicado no JOTA

Inovações na condução do mandato político não são um fenômeno restrito aos últimos anos. Pesquisadores da área identificaram estratégias de participação popular na atuação parlamentar, como os “mandatos abertos”, desde o período da redemocratização no Brasil. No entanto, as candidaturas com caráter compartilhado, onde o(a) eleitor(a) deposita a confiança em um coletivo, cresceram de fato no cenário eleitoral brasileiro desde 2016. Essas candidaturas passaram a assumir especificamente o compromisso, durante a campanha eleitoral, de conduzir o mandato com um grupo (ou coletivo) previamente definido de “coparlamentares”. Levantamento recente da Rede de Ação Política pela Sustentabilidade mostrou que as eleições de 2016 e 2018 somam 89% das candidaturas que elegeram mandatos tidos como coletivos no país no período entre 1994 e 2018.

As eleições municipais de 2016 trouxeram a primeira experiência de candidatura compartilhada do país. João Yuji, do Podemos (Pode), foi eleito vereador em Alto Paraíso de Goiás (GO) com mais cinco “covereadores”. Nas eleições de 2018, mais duas experiências de candidaturas compartilhadas se destacaram, ambas do PSOL, dessa vez nos estados de Pernambuco e São Paulo: são as candidaturas da Juntas e da futura Mandata Ativista. Em Pernambuco, as “Juntas” foram eleitas nas urnas, registradas com o Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) de Jô Cavalcanti. Estratégia parecida foi adotada pela candidatura da “Mônica da Bancada”, com o CPF de Mônica Seixas sendo utilizado para viabilizar a eleição do grupo paulista que originalmente contou com oito “codeputados(as) ativistas”. 

Em 2020, no entanto, foi registrado o maior número de candidaturas coletivas até então nos país: 313 candidaturas ao legislativo nas eleições municipais. As candidaturas coletivas representaram, naquele ano, 0,06% das candidaturas e 0,34% dos votos, obtendo – em termos percentuais – um desempenho médio de votos superior ao das candidaturas individuais tradicionais.

A partir da eleição, as iniciativas estruturadas nesse modelo de coparticipação contam com o protagonismo de “coparlamentares” na gestão dos mandatos, que, apesar de possuírem formatos e alcances diversos, envolvem a incorporação destes na equipe do gabinete, sua participação na rotina parlamentar, a definição de dinâmicas decisórias entre eles e a distribuição de responsabilidades e deveres políticos. Nesse sentido, esses mandatos são mais despersonalizados e trazem inventividades que desafiam o rito parlamentar tradicional.

Historicamente, a disputa eleitoral no Brasil possui um caráter personalista e individualista, a partir da projeção de lideranças políticas vagas. O domínio dos espaços de poder, e das estratégias eleitorais, geralmente asseguram a perpetuação das elites políticas nos cargos legislativos. Na dimensão da representação política descritiva, a democracia brasileira conta sistematicamente com a exclusão de mulheres e de populações marginalizadas. Isso evidencia como as aparentes “democracias raciais” na América Latina, são palco de gritantes desigualdades, o que no Brasil se traduz na exclusão política de pessoas pretas, pardas, amarelas e indígenas.

Nesse sentido, as candidaturas coletivas possuem um potencial de diversificar o cenário da representação política, trazendo importantes contribuições democráticas. Experiências que emergem a partir de 2016 compartilham da percepção sobre a necessidade de subverter os atuais arranjos de proposição de candidaturas praticadas pelas instituições partidárias, centralizados em suas respectivas lideranças. A possibilidade de compartilhar os fardos da candidatura, da campanha e, eventualmente, do mandato, também se torna uma motivação importante para mulheres e grupos minoritários, uma vez que minimiza a aversão de ter que “fazer sozinha” ou de “encarar a política”. 

Entendemos os mandatos coletivos inspirados nas demandas por maior representatividade como sendo “tecnologias sócio-políticas inovadoras” que provocam mudanças no campo político brasileiro ao diversificar os quadros de parlamentares eleitas/os, desafiar o personalismo e o individualismo das candidaturas, “hackear” a institucionalidade política e, por fim, promover dimensões não menos significativas de “reencantamento” político. 

Ao mesmo tempo, essas iniciativas enfrentam desafios em relação à sua viabilidade jurídica. A tentativa de impugnação da candidatura coletiva “Nossa Cara” (PSOL) pelo Ministério Público do Ceará nas eleições municipais de 2020 – candidatura coletiva eleita em Fortaleza/CE nas eleições municipais de 2020 –; assim como a impugnação do registro do nome da candidatura coletiva liderada por Layla Jéssica Pessoa de Andrade (PT) pelo Tribunal Regional Eleitoral de Pernambuco (TER-PE) – pré-candidata pelo Município de João Alfredo/PE – revelam as incertezas e inseguranças que cercam as experiências na falta de uma regulamentação própria. 

 

O aspecto jurídico e o cenário para as candidaturas coletivas 

 

O ordenamento jurídico brasileiro não prevê a existência formal de candidaturas coletivas. Ou seja, dentro do conjunto de normas, resoluções e procedimentos que regulam o exercício da ocupação de cargos eletivos, não há determinações expressas de quais normas ou procedimentos devem ser observados para registrar candidaturas ou exercer mandatos coletivos. Mesmo porque, para a legislação brasileira, apenas uma única pessoa pode ser denominada como mandatária de um cargo eletivo. Ao mesmo tempo, a legislação brasileira não veda a possibilidade de que o candidato indique, desde a campanha, que, caso eleito, desenvolverá seu mandato de forma que os demais integrantes de sua chapa exerçam poder deliberativo.

Diante da inexistência de uma norma jurídica aplicável a toda situação suscitada pelas iniciativas coletivas, tem-se uma lacuna jurídica. Na ausência de norma específica para fundamentar quaisquer análises quanto às iniciativas coletivas, desde 2018 o Tribunal Superior Eleitoral, bem como os Tribunais Regionais Eleitorais, vêm se manifestando incidentalmente em casos de pedido de registro de candidaturas com inclinações coletivas. Diante de lacunas jurídicas, o Poder Judiciário deve proceder com a tentativa de solucionar a demanda tomando por base outros mecanismos hermenêuticos. 

Em 2018, foi protocolado, junto ao TRE-PE, pedido de registro de candidatura de Jô Cavalcanti e nome de urna declarado como “Juntas” para o cargo de Deputada Estadual por Pernambuco. Houve manifestação favorável do Ministério Público Federal, posteriormente confirmado pelo ministro Alexandre de Moraes em decisão monocrática, deferindo o pedido de registro de candidatura nos termos apresentados no requerimento inicial.

No precedente firmado no RE 0600101-37.2020.6.17.0088, o termo “Juntas” foi considerado precário para identificar com clareza a pessoa do candidato que efetivamente concorrera ao cargo pleiteado. Decidiu, ainda, que o nome do candidato na urna ou as manifestações de propaganda deveriam guardar direta relação com a pessoa que pediu o registro de candidatura. Reforçou que candidato é unicamente aquele que preenche as condições de elegibilidade, que tem seu nome aprovado em convenção partidária e tem deferido o registro.

O precedente considerou, também, que a Constituição não prevê nenhuma forma de exercício coletivo do direito de sufrágio, na medida em que a dimensão coletiva dos direitos políticos se manifesta por meio dos partidos políticos, sem a previsão de outro tipo de legitimação associativa. Para o desembargador relator do caso, o nome de urna que sugere uma candidatura de natureza coletiva não tem condão para trazer a candidatura compartilhada à existência, somente a lei teria esta capacidade. Nesta interpretação, o nome de urna é algo informal e assim deveria ser interpretado.

Ocorre que, em 16 de dezembro de 2021, o plenário do TSE aprovou, por unanimidade, Resolução nº 23.3675, alterando o art. 25 da Resolução TSE nº 23.609, que passou a autorizar, em caso de candidatura coletiva, a menção do grupo ou coletivo de apoiadores na composição do nome de urna do candidato ou candidata. Nos seguintes termos:

Art. 2º O art. 25 da Resolução-TSE nº 23.609, de 18 de dezembro de 2019, para a vigorar acrescido dos seguintes §§ 2º a 4º, renumerando-se o atual parágrafo único como § 1º:

“Art. 25. …………………………………………………………………………….. §1º……………………………………………………………………….. §2º No caso de candidaturas promovidas coletivamente, a candidata ou o candidato poderá, na composição de seu nome para a urna, apor ao nome pelo qual se identifica individualmente a designação do grupo ou coletivo social que apoia sua candidatura, respeitado o limite máximo de caracteres.

  • 3º É vedado o registro de nome de urna contendo apenas a designação do respectivo grupo ou coletivo social.
  • 4º Não constitui dúvida quanto à identidade da candidata ou do candidato a menção feita, em seu nome para urna, a projeto coletivo de que faça parte” (NR).

 

O relator da resolução, ministro Edson Fachin reforçou que “a chamada candidatura coletiva representa apenas um formato de promoção da candidatura, que permite à pessoa que se candidata destacar seu engajamento em movimento social ou em coletivo”. Para o ministro, tal engajamento não é suficiente para confundir o eleitor, mas visa esclarecer sobre o perfil da candidata ou candidato.

Ainda, destaca-se que a regulamentação da candidatura coletiva não coincide com a do mandato coletivo. Apesar de um ser consequência do outro, o primeiro está relacionado ao processo eleitoral propriamente dito, enquanto, o segundo se refere ao exercício das competências e atribuições do cargo eletivo.

Nesse sentido, vale ressaltar que desde 2017 tramita na Câmara dos Deputados uma proposta de Emenda à Constituição (PEC 379/2017), “que permite a existência de mandatos coletivos para cargos do Legislativo (vereador, deputado estadual, distrital, federal e senador)”. De acordo com a proposta, se aprovado, a regulamentação do mandato – a ser compartilhado por mais de uma pessoa – será feito por lei.

As eleições 2022 constituem a primeira corrida eleitoral a ser realizada após a aprovação da Resolução nº 23.3675, representando um marco importante no monitoramento de candidaturas coletivas, principalmente as que incluem a menção de grupos ou coletivos no registro do nome de urna. Vale, ainda, observar se o potencial eleitoral dessas candidaturas se manterá, tendo em vista os parâmetros dos últimos resultados eleitorais

*Bárbara Lopes Campos é doutora em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professora de Relações Internacionais na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas – PPC). 

**Mariane dos Santos Almeida Costa é mestranda de Direito Eleitoral pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).