Helena Dolabela e Leonardo Barros Soares
Publicado no Jota
A pauta indígena tem tido maior espaço na esfera pública junto a organismos multilaterais e a sociedade civil pela sua relação com a preservação da Amazônia. Lideranças indígenas têm mostrado ao mundo que efetivar os direitos territoriais de povos originários é condição necessária para conter o avanço do desmatamento e das queimadas na Região Amazônica. Um lado reforça o outro. A floresta de pé garante aos povos indígenas a manutenção dos seus modos de vida e existência, e ao mesmo tempo ajuda na regulação do clima na região e no planeta.
No entanto, a questão indígena não tem tido centralidade na disputa eleitoral para a Presidência da República. De certo, na última semana o assunto ganhou maior espaço com o “reencontro” entre Lula e Marina Silva. A retomada da demarcação de terras indígenas está dentro das propostas de avanço na política climático-ambiental trazidas pela recém aliada e que foi acolhida pelo grupo político do candidato petista. No mesmo dia, à noite, Lula foi perguntado pelo jornalista Willian Waack sobre a “reconciliação” e o que ele chamou de “exigências” como a “demarcação de terras indígenas” e “a demarcação de terras quilombolas” para ter o apoio, ainda em primeiro turno, da ex-senadora e ex-ministra do Meio Ambiente no Governo Lula. Lula respondeu que no seu governo foi criado o maior número de reservas ambientais e realizadas demarcações de terras indígenas. Logo foi interrompido pelo entrevistador que afirmou ser esse posicionamento que levava o agronegócio a ser um apoiador político-eleitoral de Bolsonaro.
Seria este “bate-bola”, que relaciona demarcação de terras indígenas e apoio eleitoral, uma chave analítica para explicar o porquê de a pauta indígena não ter centralidade nas campanhas eleitorais dos presidenciáveis? Poderíamos aventar a hipótese da existência de um entendimento partidário/ideológico de que a questão indígena é controversa no seio do eleitorado brasileiro, e que, portanto, um posicionamento a respeito poderia ter algum impacto eleitoral?
Pesquisa realizada pelo INCT-IDDC nos dias 4 a 16 de junho de 2022 intitulada “A Cara da Democracia”, com 2.538 entrevistas presenciais, em 201 cidades de todas as regiões do país veio contribuir para este debate. No conjunto de questões, duas estão relacionadas com meio ambiente e uma delas diretamente com a questão indígena. Mais especificamente, perguntava-se se o entrevistado era a favor ou contra a permissão para mineração nas terras indígenas. De um total de 2.538 entrevistas preseciais, 76,2% dos entrevistados afirmaram-se contra, 22,1% a favor e 1,6% responderam que depende. Dentre os contrários, o público feminino é superior ao masculino, respectivamente, 79,0% e 73,3%. Em relação à faixa etária, os entrevistados mais jovens (entre 16-17 anos) são aqueles que mais rejeitam a mineração em terras indígenas (83,3%); enquanto aqueles com idade mais avançada (acima de 60 anos) alcançam o percentual mais baixo (71,7%).
O nível de escolaridade apresenta uma tendência que vai de uma menor para uma maior rejeição à mineração em terras indígenas. Assim, entre os que se declaram analfabetos ou com primário incompleto/completo 27,6% são a favor da mineração. Já entre os que têm ensino superior incompleto/completo, o percentual é o mais baixo – 18,8%. Em relação ao nível de renda, os dois extremos, que vão de 0-2 salários mínimos a mais de 10 salários mínimos são aqueles que menos rejeitam a permissão de mineração em terras indígenas, respectivamente, 25,4% e 28,2%. Entre as outras faixas de renda intermediárias esses percentuais são menos variáveis e vão de 19% a 22%.
Há uma significativa diferença entre os entrevistados que declaram votos nos dois candidatos que estão à frente nas pesquisas, Lula e Bolsonaro. Embora nos dois casos a maioria seja contra a permissão de mineração em terras indígenas, entre os eleitores de Lula este percentual atinge 78,8% contra 66,2% no caso dos eleitores do Bolsonaro. Estes percentuais aumentam entre os de Ciro e Simone Tebet, respectivamente, 82,2 e 91,3 – este último sendo o maior índice de rejeição entre todo o conjunto de entrevistados. Em pergunta que considera o espectro político, verifica-se que a maior rejeição vai da esquerda para direita, sendo que os que se dizem de centro se aproximam de forma expressiva da esquerda. Na outra ponta, com uma distância bem mais significativa, estão aqueles que se dizem de direita. Assim, entre os entrevistados que se declaram de esquerda, são contra a mineração 82%, entre os de centro 79,7% e entre os de direita 65,9%.
Assim, os dados aqui apresentados nos levam a afirmar que a posição majoritária do eleitorado brasileiro é contrária a propostas de exploração em territórios indígenas. Note-se que, em pesquisa recente sobre o tema, o Instituto Socioambiental verificou percentuais semelhantes de rejeição. Mas, por quê, ainda assim, o tema parece ser controverso?
Uma outra chave explicativa, que tem relação com a primeira, mas aponta uma perspectiva mais histórica do que conjuntural, pode ser a questão fundiária. Herança, bem entendida, de um passado colonialista, que ainda subsiste como uma visão econômica-hegemônica que entende a terra como mercadoria e bem explorável com finalidade lucrativa. Esta é a visão que tem dominado a política tradicional devido ao poder econômico daqueles que usufruem da exploração dos bens naturais. A criação de reservas ambientais e a demarcação de terras indígenas retira este ativo do “mercado” na medida em que protege e valoriza o seu uso ecológico e social, garantindo também a reprodução física, cultural e espiritual dos povos indígenas e tradicionais.
Por isso, os setores extrativistas são os beneficiários do desmantelamento da política indigenista do país levado a cabo sob o governo Bolsonaro e dispõem de recursos para fazer sua mensagem ecoar forte nos meios políticos-institucionais e na grande mídia. A dinâmica fundiária nacional sempre foi extremamente concentradora de terras nas mãos de poucos proprietários, que hoje se vendem como “salvadores” não apenas da pátria, mas do planeta, em termos de segurança alimentar. Esses atores, com influência política secular, querem nos fazer crer que a maioria da população brasileira é contrária à demarcação de terras indígenas ou a favor da exploração econômica de seus territórios, o que simplesmente não encontra respaldo nos dados disponíveis.
Assim, será interessante acompanhar, no caso da eleição de Lula, como o ex-presidente irá equacionar os interesses do agronegócio e das mineradoras – que estão em peso com Bolsonaro – com os compromissos políticos assumidos junto a lideranças indígenas e a opinião da maioria da população brasileira contrária à mineração em terras indígenas. Em suma, a batalha pela efetivação cotidiana dos direitos dos povos indígenas brasileiros deverá ter maior ressonância e visibilidade político-institucional, mas continuará dramática nos próximos anos.
Helena Dolabela é pesquisadora de pós-doutorado no INCT IDDC. Graduada em Direito. Mestre em Ciência Política e Doutora em Antropologia pela UFMG.
Leonardo Barros Soares é professor do Departamento de Ciências Sociais da UFV e colaborador do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFPA. Mestre e doutor em Ciência Política pela UFMG, com período sanduíche na Université de Montréal. Coordenador do Grupo de Pesquisa Política e Povos Indígenas nas Américas.