Priscila Zanandrez e Priscila D. Carvalho
Publicado no Jota
Se não é novidade a crescente importância de eleitores e políticos evangélicos no Brasil, a campanha eleitoral de 2022 parece ter tornado mais visível a existência de diferentes posicionamentos políticos entre esse segmento da população. A existência de visões políticas distintas é perceptível por grupos que apoiam candidatos à direita ou à esquerda, que expressam valores conservadores ou progressistas ou que defendem maior ou menor presença do Estado no apoio a populações carentes.
Foram grupos à esquerda, defendendo políticas públicas e com tom crítico ao governo Bolsonaro que se reuniram com o candidato a governador de Minas Gerais, Alexandre Kalil (PSD), nesta terça-feira, 27, em um pequeno auditório na região central de Belo Horizonte. Kalil e seu candidato a vice, André Quintão (PT), repetem o esforço da campanha presidencial de Lula de aproximação a figuras evangélicas, indo de pastores no Rio de Janeiro a Marina Silva.
Para além das demonstrações de apoio, as falas deixaram visíveis alguns temas que permeiam as disputas pelo eleitorado evangélico: armas versus paz, um estado presente na pandemia versus a negação do Coronavírus, a presença da religião como formadora de laços versus a ausência do Estado.
O primeiro pastor a discursar, Antonio Carlos Ferrarezi, da igreja Metodista, ressaltou não estar falando em nome da igreja e respeitar a liberdade dos membros para votar de acordo com sua consciência política, mas não deixou de criticar o discurso armamentista: “Armas ferem a palavra de Deus”. Na plateia, jovens usavam camisetas pretas com os dizeres “A(r)mai-vos uns aos outros” João 13:34. A arte cortava o R da palavra “armai-vos”, transformando-a em “amai-vos.”
Dados da pesquisa “A Cara da Democracia no Brasil”, realizada pelo INCT – Instituto da Democracia, mostram que pautar o tema entre evangélicos pode ser um desafio. Perguntados pelo INCT, em setembro, sobre armas de fogo, 33% dos evangélicos e protestantes disseram ser a favor da proibição da venda de armas, menos do que os 39% de outras religiões.
Ainda no evento da campanha para governador de Minas Gerais, o pastor Ariovaldo Ramos partiu da defesa da vida como valor prioritário, afirmou que a pandemia foi a maior prova à vida e aos governantes e que o tema deveria ser chave para orientar as escolhas políticas: “qual governante agiu de tal maneira que hoje tem mais gente viva? Quem salvou vidas?” Ramos é um dos fundadores da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito, que desde 2016, durante o impedimento de Dilma Rousseff, posicionou-se em defesa do Estado de Direito, por inclusão, igualdade e justiça.
Dados do survey mostram, igualmente, o desafio de levar o tema a eleitores evangélicos: entre a população em geral, 47% concordam muito com a afirmação “o presidente deu pouca importância ao impacto do novo coronavírus, prejudicando o combate à pandemia no país”. Já entre evangélicos e protestantes, esse número cai para 35%. No entanto, outros 29% discordam muito da afirmação: é, possivelmente, essa a parcela dos fiéis evangélicos e protestantes com a qual os discursos de pastores como Ariovaldo podem conversar.
A cientista política, negra e evangélica, Lorraine Araújo Inácio ressaltou a relação entre capital social adquirido nas comunidades evangélicas e as relações entre economia, religião e política. O debate passou, ainda, pelos laços de cooperação entre pobres evangélicos que, na ausência do Estado, oferecem apoio mútuo e constroem relações de confiança que acabam sendo levadas para a política. Entre a população mais pobre,”quando o Estado não está, a religião está por ele.” afirmou Lorraine.
A fala da pesquisadora toca em um ponto de tensão entre a demanda por ação do Estado e a força da teologia da prosperidade entre o público evangélico, em especial o neopentecostal. A questão é visível também no material preparado pelo PT especialmente para o público evangélico e distribuído no encontro. Ali, a insistência na atuação do Estado em políticas para saúde, educação, emprego e renda ou pelo fim da fome, deixa entrever o desafio de propor um Estado de bem estar social para uma parcela da população que, apesar das políticas públicas implementadas pela Nova República, ainda depende fortemente das práticas de apoio mútuo oferecidas pela religião para enfrentar desafios para acesso ao emprego e renda, ou à autonomia econômica, no caso das mulheres.
Priscila Delgado de Carvalho é pesquisadora no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (pós-doutorado) e pesquisadora associada do INCT Instituto da Democracia. Investiga a atuação de atores coletivos em processos democráticos, com ênfase na transnacionalização de movimentos sociais e sindicatos rurais, e percepções de cidadão
Priscila Zanandrez Martins Morgado é pesquisadora em estágio pós-doutoral no INCT IDDC. Doutora e mestre em Ciência Política pela UFMG. Investiga temas sobre participação, cultura democrática e associativismo.