Carlos Ranulfo Melo
Publicado no JOTA
Há duas maneiras pelas quais um partido pode morrer. Uma é pela falta de votos, que podem minguar eleição após eleição ou sumir de vez. Outra é de caráter programático – nesse caso o partido pode até se manter com alguma expressão política, mas sua denominação não faz mais jus à sua prática política. O PSDB enquadra-se nos dois casos.
O gráfico abaixo mostra o percentual de deputados eleitos pelo partido para a Câmara entre 1990, sua estreia eleitoral, e 2022.
Os números falam por si. Saindo das costelas do MDB, os tucanos conquistaram 7,6% das vagas na Câmara em 1990 – foram 76 representantes eleitos. O percentual cresceu até 1998: 99 vagas, o que dava ao partido 19,3% dos votos na casa.
A partir de então tem início um declínio que, aos olhos de hoje, parece irreversível. A lenta queda tem dois momentos distintos. O primeiro corresponde ao período dos governos petistas, entre 2002 e 2014. O PSDB – tal como aconteceu com seu aliado de primeira hora, o DEM – sentiu a longa permanência na oposição e viu sua representação recuar até 10,5 da Câmara em 2010, percentual que se repetiu em 2014. Nesses dois anos, o partido dependeu crucialmente de São Paulo e Minas Gerais para manter uma bancada de porte médio. Tanto em 2010 como em 2014 os dois estados contribuíram com 39% dos deputados eleitos pelos tucanos.
A eleição de 2018 marcaria o segundo momento da queda, quando o partido teve sua força na Câmara reduzida a 5,7% das cadeiras. A situação piorou ainda mais em 2022: foram apenas 13 representantes eleitos, 2,5% da casa. O partido que governou o país durante oito anos viu-se reduzido a uma legenda de pequeno porte. Nos dois anos em questão, sua bancada em São Paulo ficou restrita a seis e cinco deputados respectivamente – para efeito de comparação, entre 1990 e 2014 o partido elegera em média 14 deputados no estado. Em Minas, foram cinco eleitos em 2018 e apenas dois em 2022.
O resultado só não foi pior devido à federação constituída com o Cidadania – federados, os dois partidos elegeram 18 deputados. A federação PSDB/Cidadania obteve a oitava votação para a Câmara dos Deputados. Com 4,52% dos votos válidos seu desempenho foi ligeiramente superior ao da federação PSOL/REDE, que chegou a 4,29%. A avaliar pela magnitude do recuo após 2014 os tucanos, mantida ou não a federação, têm motivos de sobra para se preocupar com a cláusula de barreira para 2026.
Se o primeiro momento do recuo pode ser explicado pelas dificuldades impostas pelo período na oposição aos governos petistas, o segundo nada tem a ver com isso. A bem da verdade, o partido chegou a ensaiar um crescimento logo após o impeachment de Dilma. Na eleição municipal de 2016, os tucanos elegeram 803 prefeituras, ficando atrás apenas do MDB. Sua votação agregada foi a maior do país – 17.612.608 votos, um crescimento de 25% em relação a 2012. Um céu de brigadeiro parecia descortinar-se e 2018 estava logo à vista.
Mas eis que surge Bolsonaro, a consequência não prevista do movimento iniciado com a interrupção do mandato de Dilma. Em Minas Gerais, o partido perdeu uma disputa que parecia fácil contra o desgastado governo de Fernando Pimentel (PT). A poucos dias da votação em primeiro turno, Romeu Zema foi “descoberto” pelo eleitor de Bolsonaro e saltou de um dígito nas pesquisas para a liderança da corrida sucessória e a posterior vitória em segundo turno. Em São Paulo, o partido se salvou: na ausência de um candidato que caísse na preferência do eleitorado bolsonarista, os tucanos emplacaram o “bolsodoria”.
Mas a eleição de João Doria já dizia tudo. O PSDB havia perdido para a extrema direita o lugar de elemento de contenção ao PT. Carente de base social, o partido atravessou o período dos governos Lula e Dilma ancorado no antipetismo e de uma hora para outra perdeu seu ponto de apoio fundamental junto ao eleitorado. O combate ao PT havia passado às mãos de Bolsonaro e seria conduzido a seu estilo. Pior ainda, na visão do ex-capitão o PSDB passou a ser apresentado como parte da herança maldita – comunista, anticristã e inimiga da família – que estaria levando o país à derrocada. Tucanos e petistas seriam farinha do mesmo saco.
A segunda morte do partido tem um ponto crucial em 2014 quando Aécio Neves optou por não reconhecer a vitória de Dilma na eleição presidencial e colocar em dúvida, sem qualquer evidência, a contagem de votos. Inusitado e estranho às práticas democráticas, o gesto seria posteriormente citado por Bolsonaro em seus ataques ao TSE. A partir de então, o PSDB, conduzido pelo ex-senador mineiro, dedicou-se a tramar a interrupção do mandato de Dilma, abandonando toda e qualquer “reserva institucional” e trabalhando pela obstrução legislativa radical do governo eleito.
A descaracterização do partido manteve-se no já referido “bolsodoria”. Mais do que uma estratégia de campanha, a eleição de Doria representou o afastamento dos tucanos, em seu berço, de sua linhagem histórica. Ao longo do primeiro mandato de Bolsonaro, o PSDB adotou uma postura dúbia. Se não aderiu ao governo, tampouco foi capaz de se posicionar de maneira firme frente as suas medidas mais absurdas. Na votação da PEC que instituía o voto impresso, a bancada na Câmara rachou ao meio e o então deputado Aécio Neves se absteve.
Em 2022, o partido decretou sua segunda morte. Indiferente à farta evidência disponível a respeito do caráter autoritário do governo Bolsonaro e dos reiterados sinais quanto aos riscos de um segundo mandato, o Partido da Social-Democracia Brasileira abandonou em definitivo qualquer pretensão de fazer jus à sua denominação e se escondeu, para usar as palavras de Simone Tebet (MDB), por detrás da neutralidade no segundo turno das eleições presidenciais. Como se não bastasse, seu candidato ao governo de São Paulo acionou o modo desespero e correu ao aeroporto para recepcionar o candidato do PL à Presidência. Enquanto isso, Fernando Henrique Cardoso, Tasso Jereissati e José Serra, para citar os nomes de maior destaque, declaravam apoio a Lula.
O PSDB acabou e não há nada a comemorar. Na sua ausência, o vazio deixado pela centro-direita foi ocupado pelo mais truculento e reacionário movimento que o país vivenciou desde a redemocratização.
Carlos Ranulfo Melo é doutor em Ciência Política, professor titular aposentado do Departamento de Ciência Política da UFMG e pesquisador do Centro de Estudos Legislativos. Autor de Retirando as Cadeiras do Lugar: Migração Partidária na Câmara dos Deputados, coautor de Governabilidade e Representação Política na América do Sul e coeditor de La Democracia Brasileña: Balance y Perspectivas para el Siglo XXI. Tem artigos publicados sobre partidos, estudos legislativos e instituições comparadas com foco no Brasil e nos países da América do Sul.