por Carlos Ranulfo
Carlos Ranulfo Melo
Publicado no Jota
O grau de confiança dos brasileiros no Congresso sempre foi baixo mas, se levarmos em conta os dados da pesquisa “A Cara da Democracia”, nos últimos quatro anos ele vem crescendo. É o que mostra o gráfico a seguir.
Conduzida pelo Instituto da Democracia (IDDC-INCT), a pesquisa entrevistou 1.535 pessoas de forma presencial em 101 cidades de todas as regiões do país e foi realizada entre 9 e 14 de setembro. À pergunta sobre confiança no Congresso Nacional, eram oferecidas quatro alternativas de resposta: “confia muito”, “confia mais ou menos”, “confia pouco” e “não confia”. No gráfico acima, para facilitar a visualização, as alternativas foram agregadas, de modo que “confia” engloba as duas primeiras e “não confia”, as duas últimas.
Como se vê pelos dados, em 2018, 75,6% dos entrevistados não confiava no Congresso, enquanto apenas 21,6% dizia o contrário. Na pesquisa realizada em setembro de 2022, o quadro é diferente: a confiança subiu para 36,5% e o percentual dos que não confiam caiu para 58,5%. O gráfico mostra um crescimento constante, com maior inclinação da curva entre 2021 e 2022.
Vale ressaltar que se desagregarmos os dados do gráfico nas quatro alternativas apresentadas ao eleitor na pesquisa, será possível perceber que o aumento da confiança é, em sua maior parte, resultado de um crescimento de 17% para 29,1% dos respondentes que marcaram “confia mais ou menos”. Entre os que responderam “confiam muito” o aumento foi de 4,6% para 7,4%. Por outro lado, o percentual dos que “confiam pouco” praticamente se manteve inalterado – de 19,3% para 20,3% – enquanto o daqueles que na pesquisa responderam “não confia” despencou de 56,3% para 38,2%.
Ainda que não seja possível apresentar uma explicação plenamente satisfatória para a melhora na avaliação, há que se levar em conta que o Congresso teve alto grau de protagonismo durante os últimos quatro anos, até mesmo diante da frágil articulação política de um governo que nunca chegou a controlar o processo legislativo. É evidente que decisões políticas sempre agradam a alguns e desagradam a outros, mas o fato é que muitas vezes os olhares de boa parcela dos cidadãos estavam postos no que faziam os congressistas.
No biênio 2019/2020, o Congresso aprovou uma reforma da previdência mais próxima de sua preferência ao não aceitar a capitalização ou o fim do Benefício de Prestação Continuada (BPC), como desejava o governo, e legislou sobre o Fundeb à revelia do governo, fazendo-o recuar da tentativa de desviar parte dos recursos para a assistência social. Durante a pandemia forçou o Executivo a elevar o auxílio de emergência de R$ 200,00 para R$ 600,00 e, diante da ausência de propostas do governo, foi responsável, segundo levantamento realizado pela Folha de São Paulo, pela maioria das mudanças introduzidas na legislação sobre saúde.
No biênio 2020/2021, com a vitória de Lira, a Câmara melhorou sua imagem junto ao bolsonarismo ao tornar-se barreira intransponível aos inúmeros pedidos de impeachment do presidente da República – em que pese ter rejeitado proposta que tornava obrigatório o voto impresso. Além disso, o Congresso aprovou as medidas necessárias à redução do preço da gasolina e a PEC que viabilizou a elevação do valor do Auxílio Brasil, o complemento do Auxílio Gás e a ajuda para os caminhoneiros. Por outro lado, o Senado esteve em evidência durante a CPI da Covid, uma iniciativa que manteve o governo na defensiva durante alguns meses.
Ao longo de todo esse período, o único momento inequivocamente desfavorável à imagem do Congresso deu-se na aprovação, e posterior repercussão, das emendas do relator ao Orçamento da União. Para além dos seus seletos beneficiários, o “orçamento secreto” não encontrou defensores na sociedade.
Não obstante o Congresso, especialmente a Câmara, tenha contribuído com o governo nos últimos dois anos – o que ajuda a entender por que o Legislativo saiu da lista de “inimigos” do presidente da República – é entre os eleitores que declaram a intenção de votar em Lula que a confiança no Congresso é maior – 45,2% ante 35,1% entre os eleitores de Bolsonaro. Por outro lado, 52,2% dos que pretendem votar no petista não confiam no Congresso, percentual que sobe a 61,7% no caso do atual presidente da República.
Entre os que acreditam (muito ou mais ou menos) que a contagem de votos no Brasil é feita de forma honesta, 43,2% confiam no Congresso. Entre os que não acreditam (pouco ou nada) que o TSE garanta uma contagem honesta, apenas 26,6% confiam no legislativo federal. O dado vai na mesma linha do anterior, uma vez que os eleitores de Bolsonaro têm sido estimulados a não confiar na Justiça Eleitoral brasileira.
O eleitor bolsonarista, de fato, tem mais a agradecer do que a reclamar da atuação do Congresso pelo menos nos dois últimos anos. Se sua confiança na instituição revela-se menor que a dos eleitores de Lula, a explicação pode estar no pendor autoritário do seu líder maior.
Carlos Ranulfo Melo é doutor em Ciência Política, professor titular aposentado do Departamento de Ciência Política da UFMG e pesquisador do Centro de Estudos Legislativos. Autor de Retirando as Cadeiras do Lugar: Migração Partidária na Câmara dos Deputados, coautor de Governabilidade e Representação Política na América do Sul e coeditor de La Democracia Brasileña: Balance y Perspectivas para el Siglo XXI. Tem artigos publicados sobre partidos, estudos legislativos e instituições comparadas com foco no Brasil e nos países da América do Sul.
por Carlos Ranulfo
Carlos Ranulfo Melo
Publicado no Congresso em Foco
Entre 1982 e 2018 a fragmentação partidária cresceu de forma ininterrupta no Brasil. Na Câmara dos Deputados, a última eleição possibilitou a trinta partidos elegerem representantes. Mas após 2022 o quadro será outro. A mudança teve início ainda na atual legislatura quando o número de partidos com representação recuou para 23. No ano que vem esse número poderá ser reduzido pela metade.
O que aconteceu? A estrutura de incentivos aos agentes políticos mudou. Por um lado, o Fundo Eleitoral estimulou os partidos a aumentarem suas bancadas na Câmara – 83% dos recursos do Fundo são distribuídos levando em conta esse fator. Por outro, a aprovação da cláusula de desempenho como condição para acesso ao Fundo Partidário e ao horário gratuito de propaganda, aliada à proibição das coligações nas eleições proporcionais, dificultou a sobrevivência das pequenas legendas.
Os movimentos realizados na atual legislatura por deputados (as) e partidos refletem esse novo quadro. Visando abocanhar maior quinhão do Fundo Partidário e do Fundo Eleitoral, DEM e PSL fundiram-se no União Brasil. Durante a “janela partidária” mais de 60% dos cerca de 140 deputados (as) que mudaram de partido se dirigiram a quatro legendas que, dessa forma, tiveram suas bancadas aumentadas. O Republicanos de 30 para 40, o PL de 35 para 75, o PSD de 38 para 45 e o PP de 30 para 59 membros.
Na outra ponta, nove partidos com representantes eleitos em 2018 não atingiram o patamar de 1,5% dos votos para a Câmara estabelecido pela cláusula. DC, PMN e PTC viram seus deputados buscarem outras legendas. O PRP foi absorvido pelo PATRIOTAS, o que permitiu a ambos escapar da cláusula. Movimento idêntico fizeram o PC do B e o PPL. O PHS incorporou-se ao PODEMOS. E a Rede iria, já em 2022, juntar-se em uma federação com o PSOL.
Levando em conta o percentual de votos obtido em 2018, a movimentação de partidos e deputados na atual legislatura, e indicativos extraídos da campanha eleitoral, é possível dizer que a Câmara terá, a partir de 2023, no mínimo 11 e no máximo 19 partidos. A estimativa leva em conta que as federações constituídas em 2022 funcionarão como uma só legenda na próxima legislatura.
Cinco partidos situados à direita têm presença garantida e tendem a fazer bancadas de médio a grande porte – todos obtiveram no mínimo 5% dos votos para a Câmara em 2018. Turbinados pela fidelidade do eleitorado bolsonarista e/ou evangélico, por recursos governamentais, pelas emendas do orçamento secreto e ainda beneficiados pela migração partidária, PL, PP e Republicanos podem manter ou até aumentar suas atuais bancadas – em média 85% de seus atuais deputados são candidatos à reeleição.
Aos três irão juntar-se o União Brasil e o PSD. No primeiro, 86% dos atuais deputados são candidatos. Ainda que os egressos do PSL, abandonados pelo bolsonarismo, possam ter dificuldade para manter a vaga, o partido encontra-se em primeiro ou segundo lugar na disputa pelo governo da Bahia, Mato Grosso, Piauí, Goiás, Rondônia, Alagoas e Amazonas – o que pode auxiliar o desempenho dos candidatos à Câmara. O PSD é menos competitivo nos estados – está bem no Paraná, em Sergipe e Mato Grosso do Sul – mas 94% de sua bancada, que cresceu ao longo da legislatura, está se recandidatando.
MDB e PSDB, agora federado ao Cidadania, estarão presentes, ainda que sem sua antiga força. Com os 4,99% dos votos para a Câmara em 2018, o MDB teve sua bancada reduzida de 65 para 34 membros em relação a 2014 e perdeu capilaridade: há oito anos elegeu deputados em todos os estados, mas na última eleição seus representantes vieram de apenas 18 deles. De todo modo, não perdeu deputados(as) na janela partidária, 86% da bancada está se recandidatando e o partido está bem posicionado na disputa pelos governos do Pará, Distrito Federal e Mato Grosso do Sul.
O PSDB obteve 6,39% dos votos em 2018 e o Cidadania apenas 1,64%. A bancada tucana, que havia encolhido de 54 para 29 membros, ficou ainda menor devido à migração partidária – atualmente o partido conta com 22 deputados. A perda foi “compensada” com os setes parlamentares do Cidadania. Mas os tucanos vivem situações difíceis em Minas, onde seu candidato ao governo não pontua, e São Paulo, onde não é certo que chegue ao segundo turno. Em 2018, os dois estados foram responsáveis por 38% da bancada eleita.
A esquerda terá quatro representantes: PSB, PDT e mais duas federações: PT/PC do B/PV e PSOL/Rede. As federações devem conquistar mais vagas que o atual somatório de seus partidos. O PT, que obteve a segunda votação para a Câmara em 2018 (10,21%), pode se beneficiar do efeito arraste da candidatura Lula. 94% de sua bancada é candidata à reeleição e o partido é competitivo na disputa pelo governo no Rio Grande do Norte, São Paulo e Piauí. PSOL e Rede contam com bons puxadores de voto.
PSB e PDT obtiveram 5,2% e 4,16% respectivamente dos votos em 2018, mas poderão ter suas bancadas reduzidas. Os socialistas perderam 25% de sua força em função das migrações e estão com dificuldades em seu principal bastião – Pernambuco. Compensação parcial pode vir de bons desempenhos no Espírito Santo, Maranhão, Paraíba e Rio de Janeiro. O PDT perdeu 32% de sua bancada e enfrenta dificuldades no Ceará, estado responsável por 1/5 dos eleitos em 2018.
Aos 11 partidos já mencionados devem, mas não é certo, se somar o Novo e o Podemos. O Novo manteve os oito representantes eleitos em 2018 e deve reeleger Romeu Zema em Minas. A votação obtida para a Câmara na eleição passada (3,05%) o favorece, mas é preciso considerar que parcela de seu desempenho se deu na cola do bolsonarismo, do qual se desgarrou. O PODEMOS enfrenta situação menos tranquila. Sua bancada, mesmo com a incorporação do PHS, diminuiu durante a legislatura, o partido não é competitivo em nenhum estado e, ao contrário de 2018, não tem candidato à Presidência da República. Há quatro anos foram 2,45% dos votos para a Câmara, mas a atual eleição será mais difícil.
Por fim, a grande incógnita fica por conta dos seis partidos que, em 2018, não atingiram o patamar de 2%, estabelecido para 2022. Solidariedade, PTB e PROS chegaram a 1,85%, 1,86% e 1,87% respectivamente, mas perderam parte expressiva das parcas bancadas eleitas. No primeiro a perda foi de 38%. Entre os trabalhistas, que parecem estar em fim de linha, a evasão foi de 70%. O PROS viu 50% da bancada ir embora. O Avante, com 1,66% dos votos em 2018, e o PSC, com 1,57%, terão que suar a camisa para crescer. Finalmente, o Patriotas teve apenas 1,39% dos votos para a Câmara, mesmo surfando na onda bolsonarista, e sobreviveu graças à incorporação do PRP – mas a fusão não implicou em aumento da pequena (cinco) bancada eleita. Esses seis partidos remam contra a maré e suas chances parecem pequenas contra legendas que se fortaleceram ou encontram-se em melhor situação. Os que não alcançarem a cota dificilmente manterão suas bancadas na próxima legislatura.
Carlos Ranulfo Melo é doutor em Ciência Política, professor titular aposentado do Departamento de Ciência Política da UFMG e pesquisador do Centro de Estudos Legislativos. Autor de Retirando as Cadeiras do Lugar: Migração Partidária na Câmara dos Deputados, coautor de Governabilidade e Representação Política na América do Sul e coeditor de La Democracia Brasileña: Balance y Perspectivas para el Siglo XXI. Tem artigos publicados sobre partidos, estudos legislativos e instituições comparadas com foco no Brasil e nos países da América do Sul.
por Carlos Ranulfo
Carlos Ranulfo Melo
Publicado no JOTA
A mais expressiva das semelhanças entre o fascismo e o populismo de extrema direita, onde se enquadra o bolsonarismo, é o uso sistemático da violência como arma na luta política. Sob o fascismo, hordas de milicianos, devidamente identificados e munidos de porretes, saíam às ruas, sob o olhar complacente das forças policiais e espancavam judeus, comunistas, social-democratas, gays e qualquer um que se colocasse em seu caminho. Assim fizeram até instituir regimes onde qualquer resistência, que não fosse clandestina, era literalmente impossível.`
O Brasil não chegou a isso, mas o terreno tem sido preparado há alguns anos. Das inúmeras agressões verbais a indivíduos e/ou instituições até as regras que facilitaram a compra e o uso de armas no país, Bolsonaro vem sistematicamente incentivando o uso da violência e liberando o que o Brasil tem de pior. Digo liberando porque a barbárie, em suas diversas manifestações, sempre esteve por aqui – basta lembrar que a escravidão brasileira foi a mais longeva do mundo ocidental. Mas se depois da redemocratização ela mantinha-se nos subterrâneos, nos dias de hoje bate no peito e sai às ruas.
Parcela dos bolsonaristas está armada até os dentes. Devido às novas regras estabelecidas pelo atual governo, cada pessoa pode possuir até seis armas e, segundo o Instituto Sou da Paz, desde 2019 cerca de 1.300 delas são compradas por civis a cada dia. Pesquisa da Quaest mostra que 88% dos que declaram a intenção de votar em Lula são contrários a ações que facilitem o armamento, mas o índice se reduz à metade (45%) entre os adeptos de Bolsonaro. Mostra ainda que, entre 2019 e 2022, nada menos que 96% dos novos registros de armas foram feitos por homens. Já as mulheres, em sua esmagadora maioria (82%) discordam da atual política armamentista. Como que vivendo em uma espécie de realidade paralela, entre a Lei Maria da Penha e uma pistola, o presidente da República sugere às mulheres que prefiram a segunda.
No Estado de Direito os indivíduos contam com a Constituição e as leis para se proteger de erros e abusos do Estado. Como Bolsonaro não acredita nisso, prefere que os por ele qualificados como cidadãos de bem mantenham-se armados contra ações “tirânicas” do Estado. Obviamente, o critério para definir o que seria uma ação tirânica fica a cargo dos tais senhores de bem que, por sua vez, já foram devidamente alertados para o risco de que a eleição seja definida em uma “sala secreta”, onde teriam acesso ministros seguidamente enxovalhados pelo presidente da República.
Bolsonaro sabe que nunca houve nem haverá fraude. Apavorado ante a possibilidade de derrota nas urnas, sua estratégia é manter seu rebanho sob constante pressão: igrejas serão fechadas, bandidos serão soltos e o comunismo vingará destruindo a família e a pátria amada. Assim municiados, os cidadãos de bem bolsonaristas se veem hoje diante de uma espécie de batalha final. Eles precisam defender sua liberdade e salvar o país. É tudo ou nada.
Foi tendo isso em mente que, em Uberlândia, a barbárie bolsonarista jogou material fétido sobre petistas. No Rio de Janeiro uma bomba caseira foi lançada em evento da campanha de Lula e por duas vezes grupos armados impediram atividades da campanha de rua de Marcelo Freixo. Em Foz do Iguaçu foi a vez das balas falarem mais alto no assassinato do petista Marcelo Arruda. E na cidade de Confresa, no Mato Grosso, um apoiador de Bolsonaro matou a facadas um eleitor de Lula após discussão política.
Tudo isso está autorizado e vem sendo reafirmado. Em junho deste ano, Flávio Bolsonaro afirmou que não seria possível impedir um levante de apoiadores revoltados com o resultado das eleições. Mais grave ainda, Eduardo Bolsonaro, há poucos dias disse que “quem comprou arma legalizada tem que se tornar um voluntário do presidente”. Acrescentando um toque de inocência à declaração, o deputado do PL conclamou os voluntários a buscarem material de campanha. Mas se a preocupação fosse com a divulgação da candidatura do pai, por que focar nos apoiadores armados e não no conjunto dos que desejam a reeleição de Bolsonaro?
Saudade de quando se podia dizer que a eleição era uma “festa cívica”. Ou quando o maior problema de segurança era com a boca de urna. Nesses tempos, campanhas de rua e comícios podiam ser feitos sem outra preocupação que não fosse conquistar eleitores. Agora é preciso evitar certos locais, redobrar a segurança e cancelar eventos a depender do tom das ameaças.
A violência tende a aumentar à medida que a eleição caminha para a reta final. Temendo o que possa acontecer, cresce o número de estados que pedem reforço na segurança. No Rio de Janeiro, o TRE solicitou apoio para todos os 92 municípios. Tribunais eleitorais estão treinando mesários para lidar com conflitos. Prevendo o risco de aumento de violência, o ministro Edson Fachin suspendeu parte do decreto presidencial que facilita posse e uso de armas. De todo modo, não será nenhuma surpresa se grupos bolsonaristas saírem às ruas para constranger eleitores no dia 2 de outubro.
A democracia é um regime no qual indivíduos livres e iguais em direito decidem quem vai governar, e onde os governos, legitimamente eleitos, têm que atuar dentro de limites que não foram por eles estabelecidos. Nesse tipo de regime, as disputas tendem a se desenvolver como um jogo onde não há quem leve tudo e deixe o(s) outro(s) sem nada. Eleições competitivas conferem um determinado grau de incerteza quanto aos resultados e a periodicidade das disputas acena com a possibilidade real de alternância. A quem perde, resta fazer oposição, esperar e se preparar para a próxima. Por isso a democracia é o único tipo de regime que permite que os conflitos que atravessam a sociedade sejam resolvidos de forma pacífica. Nas palavras de Adam Przeworski, votos são pedras de papel (“paper stones”).
Mas os bolsonaristas não acreditam em nada nisso. E uma boa parcela deles deve se sentir representada por recente declaração de um deputado do PL no Ceará:“se a gente não ganhar nas urnas (…) nós vamos ganhar na bala”.
*Carlos Ranulfo Melo é doutor em Ciência Política, professor titular aposentado do Departamento de Ciência Política da UFMG e pesquisador do Centro de Estudos Legislativos. Autor de Retirando as Cadeiras do Lugar: Migração Partidária na Câmara dos Deputados, coautor de Governabilidade e Representação Política na América do Sul e coeditor de La Democracia Brasileña: Balance y Perspectivas para el Siglo XXI. Tem artigos publicados sobre partidos, estudos legislativos e instituições comparadas com foco no Brasil e nos países da América do Sul.
por Carlos Ranulfo
Carlos Ranulfo Melo
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A Independência do Brasil tem várias versões. Uma delas fala das margens do Ipiranga, onde D. Pedro I corajosamente nos livrou de Portugal. A partir de então, o país teria seguido sua trajetória com ordem e progresso.
Ao conferir todo o protagonismo a Pedro I, essa versão nunca se lembra de dizer que o generoso monarca tratou a Independência como um favor feito por Portugal ao Brasil – o país, agora independente, começou sua trajetória devendo 2 milhões de libras esterlinas aos colonizadores. Outros 3 milhões, segundo Jorge Caldeira, em História da Riqueza no Brasil, foram embolsados “pelo monarca para seus projetos pessoais ou pagamento aos ingleses. No total, um valor que equivalia a algo como 18% do PIB”.
Como se não bastasse, a Independência nos legou um estado escravocrata e monarquista. Sem esses dois traços do Brasil independente não há como explicar a manutenção da brutal desigualdade econômica e social que até hoje marca o país. A monarquia deu o seu melhor para impedir que, ao longo do século XIX, o país se tornasse uma sociedade de mercado e se abrisse à revolução industrial. O resultado foi a estagnação. Novamente é Jorge caldeira quem conta: “em 1800, os Estados Unidos contavam com 5 milhões de habitantes, ao passo que o Brasil tinha 4,4 milhões. Nesse momento o porte das duas economias também era semelhante. A partir daí foi se abrindo um fosso”. No Brasil, a renda per capita, entre 1820 e 1900, passou de 670 para 704 dólares anuais. Nos EUA o salto foi de 1,3 mil para 4 mil dólares. Não por coincidência, diz Caldeira, referindo-se aos Estados Unidos, “a maior aceleração se deu no período posterior à guerra que pôs fim à escravidão”.
Seja como for, quem estuda o tema sabe que a história da Independência não pode ser contada sem acrescentar ao famoso grito, uma série de batalhas travadas não apenas por soldados, mas também por setores populares. Ao “esquecer” esse fato, a versão oficial contribuiu para que ocorresse a primeira captura da Independência. A data transformou-se em exclusividade dos militares, suas paradas e os tanques que, na ocasião, não estivessem soltando fumaça. Muitos, é preciso reconhecer, gostavam e ainda gostam de ver o desfile militar. Colégios treinavam as crianças a marchar. Mas para a esmagadora maioria, o 07 de setembro é bom mesmo quando cai no meio da semana.
Acabamos de assistir a segunda captura da Independência. Desta vez pelo Presidente da República que decidiu aproveitar não apenas a data, mas os recursos públicos, para instalar o seu parquinho. Lembrou-se é claro de tirar a faixa presidencial ao pular de um palco para o outro ao lado, mas a essa altura do campeonato o formalismo é ridículo.
Luis XIV foi imortalizado pela frase “L’État c’est moi”. Bolsonaro prefere dizer que as Forças Armadas são dele. Faz sentido: essa é a parte do Estado que ele mais aprecia. Não por coincidência, o que marca essa segunda captura é que os dois agentes captores estão irmanados. Se Bolsonaro não teve o menor pudor de transformar um evento do Estado em comício de campanha, os militares foram coniventes e desfilaram com suas fardas no ato do candidato à reeleição. Ao comemorar 200 anos, a Independência do Brasil passou vergonha.
Aqui não está em jogo quanta gente foi aos atos de 07 de setembro. Tinha muita agente. Nem se isso, além de animar a tropa, trará votos para o candidato. É duvidoso que o faça. O que importa é que temos um assassino em série de leis eleitorais a solta. A questão é saber o que o Tribunal Superior Eleitoral fará diante do escárnio.
por Carlos Ranulfo
Por Carlos Ranulfo*
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O debate entre os presidenciáveis na TV Bandeirantes teve grande repercussão. Quem se saiu melhor foi Simone Tebet, seguida por Ciro Gomes. Lula foi mal e Bolsonaro, o pior de todos. Paradoxalmente, o resultado foi bom para a campanha do atual presidente; afinal, é preciso evitar a vitória de Lula no primeiro turno e, pelo andar da carruagem, a melhor maneira de conseguir isso é com o crescimento de Tebet e Ciro. No debate, Bolsonaro foi inicialmente gentil com Ciro que, por seu lado, procurou retribuir até o momento em que o candidato-presidente fez menção a uma declaração dada há 20 anos atrás pelo cearense. Com Tebet não foi possível nenhuma troca de gentilezas, uma vez que a senadora demarcou sua posição com firmeza.
A pesquisa do Datafolha pareceu confirmar a avaliação geral sobre o debate. O instituto iniciou seu campo no dia 30 de agosto, dois dias após o debate, e estendeu a coleta de dados até 01 de setembro. Resultado: Ciro Gomes passou de 7% para a 9% na preferência do eleitorado e Tebet cresceu de 2% para 5%. O crescimento dos dois tornou-se o tema dos dias seguintes, uma vez que pela primeira vez na série do Datafolha Lula obteve menos que 50% dos votos válidos (48%) no primeiro turno.
O que dizer disso tudo? A primeira coisa a fazer é separar o desempenho dos dois. Para Ciro, 9% não é propriamente uma novidade. Seu mudança se deu dentro da margem de erro da pesquisa (2%). O candidato está na rua há muito tempo, é bastante conhecido e nas sondagens feitas pelo Datafolha em junho e julho havia alcançado 8%, oscilando em meados de agosto para 7%. A novidade, portanto, é Tebet. Pouco conhecida, até agora a candidata do MDB patinava entre 2 e 3% – índice obtido nas pesquisas do IPEC e da Quaest, que fecharam sua coleta de dados sem captar o efeito do debate. Em outras palavras, até aqui, sozinho, o desempenho de Ciro não conseguiria “provocar” o segundo turno. Tebet parece ser o diferencial.
Para onde apontam os 14%? Uma coisa é certa: a não ser que, parafraseando Nelson Rodrigues, o sobrenatural de Almeida resolva intervir, nem Ciro, nem Tebet estarão no segundo turno. Tanto no Datafolha, com no IPEC Lula tem 40% das preferências na pergunta espontânea. Bolsonaro chega a 29% e 31% nas mesmas sondagens. Na série do Datafolha os dois candidatos cresceram de forma sistemática desde maio de 2021; Lula começando com 21% e Bolsonaro com 17%.
Ainda que não possamos falar em fortalezas inexpugnáveis, o patamar e as curvas de crescimento indicam um grau de consolidação impossível de ser ignorado. Entre os potenciais eleitores de Lula apenas 17% admitem mudar o voto. O percentual é quase o mesmo no caso de Bolsonaro (16%). Importa ressaltar: os percentuais são exatamente os mesmo na pesquisa do IPEC. Por outro lado, 57% dos que disseram preferir Ciro ainda podem mudar de ideia até o dia da eleição. A diferença é enorme, embora se deva dizer, a favor do ex-governador do Ceará, que o percentual dos que se dizem seguros em sua opção subiu de 27% para 42% desde fevereiro deste ano. No caso de Tebet, o percentual dos que podem alterar sua opção é de 48% ainda segundo o Datafolha. Em outras palavras, pelo que sabemos até agora, a chance de Ciro e Tebet perderem eleitores é maior do que nos casos de Lula e Bolsonaro.
Ambos podem crescer? Sim, mas novamente, a situação de Tebet parece melhor que a de Ciro. Segundo o DataFolha, 23% dos entrevistados apontam Ciro Gomes como sua segunda opção de voto, mas esse quadro tem se mantido nas últimas quatro pesquisas do instituto. Também não se registra alteração no percentual de eleitores de Lula e Bolsonaro que, admitindo mudar de voto, optariam por Ciro: 37% iriam para o petista e 30% para o candidato do PL. Tebet, por sua vez, aparece como segunda opção para 12%, mas cresceu 7 pontos percentuais desde a pesquisa divulgada em meados de agosto. E entre os eleitores de Lula e Bolsonaro que admitem mudar de voto a preferência pela senadora do MDB saltou de 5% para 18%, no primeiro caso, e de 4% para 14% no segundo.
A pesquisa do Datafolha veio reforçar algo que já era perceptível: o segundo turno parece mais provável hoje do que a um mês atrás. Ao mesmo tempo, não apenas o Datafolha, mas também a Quaest e o IPEC mostram que Bolsonaro enfrenta dificuldades para crescer, apesar do pacote de bondades alimentado com o orçamento da União. As três sondagens cravaram 32% de intenção de voto para o atual presidente. Isso pode significar que a realização de um segundo turno depende de Ciro e Tebet crescerem.
Para que isso ocorra, Ciro tem que sair da gangorra que o faz balançar em torno dos 8%. E no caso de Tebet, o efeito do debate na Bandeirantes, muito provavelmente, já deu o que tinha que dar. Não basta se dizer alternativa aos dos líderes nas pesquisas. Tem que mostrar a que veio o que, aliás, Ciro tem feito há tempos sem crescer. Caso os dois não se consolidem entre uma parcela maior do eleitorado, é de se perguntar o que acontecerá, daqui a três semanas, se as pesquisas indicarem a possibilidade de vitória de Lula no primeiro turno. Estarão os eleitores de Tebet e Ciro que admitam mudar de voto, não rejeitem Lula, mas o façam com Bolsonaro, dispostos a dar mais uma chance ao atual presidente, ou votarão para terminar a disputa? No atual cenário, mostra o Datafolha, os eleitores não convictos de Ciro preferem Lula (35%) a Bolsonaro (27%). Os de Tebet se dividem entre os dois líderes, mas se a candidata mantiver a linha do debate, quando as críticas a Bolsonaro foram muito mais incisivas que a demarcação com Lula, isso pode mudar.
No caso de haver um segundo turno, a situação de Lula se mantém confortável. No Datafolha, Quaest e IPEC a vantagem do petista varia de 15 pontos, no primeiro, a 13, no terceiro. Colocados diante dessa possibilidade, os eleitores de Ciro preferem Lula por larga margem (48% a 27%). Entre os que pretendem votar em Tebet, a preferência também é por Lula, mas a diferença é bem menor – 32% a 28%, enquanto 39% declararam a intenção de anular o voto, segundo o Datafolha. Como Ciro, ao que tudo indica, não deve se posicionar, é razoável dizer que o atual quadro de distribuição de seus eleitores deve permanecer estável. Mas Tebet não irá passear em Paris, o que permite supor um maior aporte de votos para Lula.
Não deixa de ser irônico: Bolsonaro tem que torcer para Ciro e Tebet, mas serão eleitores destes dois que sacramentarão a vitória de Lula em um eventual segundo turno. Problemas de um candidato isolado pelo campo democrático.
Carlos Ranulfo Melo é doutor em Ciência Política, professor titular aposentado do Departamento de Ciência Política da UFMG e pesquisador do Centro de Estudos Legislativos. Autor de Retirando as Cadeiras do Lugar: Migração Partidária na Câmara dos Deputados, coautor de Governabilidade e Representação Política na América do Sul e coeditor de La Democracia Brasileña: Balance y Perspectivas para el Siglo XXI. Tem artigos publicados sobre partidos, estudos legislativos e instituições comparadas com foco no Brasil e nos países da América do Sul.