Eleições 2022: novas regras e as chances das candidaturas negras
Cristiano Rodrigues
Congresso em Foco
As eleições de 2022 são marcadas pela aposta no aumento da competitividade de candidaturas negras e possibilidade de criação de uma bancada negra no Congresso Nacional. Neste texto busco analisar as razões por trás desse otimismo e as reais chances de sucesso das candidaturas negras.
Desde 2014, quando o TSE passou a determinar que dados sobre cor/raça fossem incluídos nas fichas de candidaturas, foi possível dimensionar a sub-representação negra na política e algumas medidas foram implementadas para tentar reverter tal situação. Para as eleições de 2022, duas alterações na legislação prometem diminuir a sub-representação negra e feminina: 1) a proposta de divisão proporcional de recursos do Fundo Especial de Financiamento (FEFC) de campanha; e 2) a Emenda Constitucional 111 que determina que os votos dados a candidatas mulheres ou a candidatos negros sejam contados em dobro para fins de distribuição entre os partidos políticos dos recursos do fundo partidário e do FEFC.
Além disso, redes de movimentos sociais lançaram uma série de inciativas para visibilizar e impulsionar candidaturas negras em todo o país. A Coalizão Negra por Direitos criou o Quilombo nos Parlamentos, iniciativa de apoio a mais de cem candidaturas de pessoas ligadas ao movimento negro concorrendo a vagas no Congresso Nacional e nas assembleias legislativas. O Instituto Marielle Franco incentiva o voto em mais de sessenta candidaturas, dos 27 estados do país e de sete partidos diferentes, comprometidas com a Agenda Marielle Franco. A articulação Mulheres Negras Decidem, por sua vez, realizou pesquisa com o balanço dos mandatos de parlamentares negras e incentiva o voto em candidaturas de mulheres negras do campo progressista.
Esse conjunto de ações voltado a impulsionar candidaturas negras é uma resposta ao diagnóstico de que o avanço na representação negra na política segue tímido, especialmente de mulheres negras. A título de exemplo, entre 2014 e 2018, o número de mulheres autodeclaradas “pretas” dobrou nas assembleias legislativas, passando de sete, em 2014, para 15, em 2018. As autodeclaradas “pardas” passaram de 29 para 36. No Congresso, o número de mulheres negras também aumentou, porém, menos significativamente, passando de dez para 13 na Câmara dos Deputados e duas mulheres autodeclaradas “pardas” no Senado Federal.
No total, a representação de negros na Câmara dos Deputados aumentou quase 5% na eleição de 2018, em comparação com 2014. Dos 513 deputados eleitos em 2018, 385 autodeclaram-se brancos (75%); 104 afirmaram ser pardos (20,27%); 21 pretos (4,09%); dois amarelos (0,39%) e uma indígena (0,19%). O resultado eleitoral dessas candidaturas de mulheres e homens negros, em conjunto com o crescimento no número de parlamentares mulheres eleitas (passando de 51, na 55ª legislatura, para 77, na 56ª) mostra como estamos distantes do ideal.
Pesquisa da Uerj, em parceira com o Instituto Peregum, revela que homens brancos (21% da população brasileira) conquistaram 65% e 61% das vagas nas assembleias legislativas em 2014 e 2018, respectivamente. Nas disputas para deputado federal, homens brancos se elegeram em número quatro vezes maior que o de homens negros, seis vezes maior que o de mulheres brancas e 20 vezes maior que o de mulheres negras.
Pesquisa de Machado e colegas (2022), analisando dados das eleições municipais de 2020, revela ainda como a disparidade na distribuição de recursos de campanha afeta a viabilidade eleitoral de candidaturas negras. Segundo os autores, os fundos públicos representaram mais de 50% dos recursos de campanha de candidatas mulheres brancas e não brancas, enquanto para homens esse valor foi de 40%. Ao analisar as vereadoras e os vereadores eleitos, o acesso a fundos públicos apresentou um efeito em escada: representou 39% da receita para mulheres não-brancas; 29%, para mulheres brancas; 23% para homens não brancos, e 15% para homens brancos. Em relação ao autofinanciamento, houve uma inversão na ordem: homens brancos podem prescindir de recursos públicos, pois acessam mais facilmente redes de financiamento privadas e cujos valores são superiores àqueles disponíveis para mulheres brancas e não brancas.
Por essa razão, embora positivas, medidas como a distribuição proporcional de recursos e a emenda constitucional 111 podem não alcançar os objetivos almejados por uma serie de obstáculos, dos quais destaco três. Em primeiro lugar, apesar do número recorde de candidaturas negras para as eleições de 2022 (aproximadamente 49% do total), elas se concentram para os cargos de deputado estadual e distrital, ao passo que brancos são maioria dos candidatos para a Câmara Federal e cargos majoritários.
Em segundo lugar, a maioria das candidaturas negras está em partidos pequenos, com pouco acesso a recursos e/ou de centro-esquerda, enquanto nos partidos maiores e de centro-direita brancos tendem a perfazer a maioria dos candidatos. Uma vez que há maior competição por recursos em partidos grandes e menor participação de negros, pode haver incentivos para que candidatos brancos se reclassifiquem racialmente para acessar recursos destinados às candidaturas negras.
Em Minas Gerais, cinco dos dez candidatos negros a deputado federal que mais receberam recursos do FEFC para 2022 alteraram sua declaração de cor/raça de branco para pardo ou preto. Todos eles são candidatos à reeleição por partidos de centro-direita.
Na Bahia, ACM Neto (União Brasil), ex-prefeito de Salvador e candidato ao governo do estado, se autodeclarou branco em seu registro de candidatura junto ao TSE e, dias depois, solicitou alteração para pardo. Após ser duramente criticado pela opinião pública, ACM Neto negou fazer uso casuístico de sua declaração racial e afirmou que sempre se considerou pardo. O candidato chegou, inclusive, a aparecer bronzeado em um programa de televisão a fim de convencer a todos que realmente é pardo.
Pesquisas de intenção de voto realizadas após essa polêmica, que ativistas negros chamam de afroconveniência, revelaram que a vantagem de ACM Neto sobre Jerônimo Rodrigues (PT) caiu cerca de dez pontos. Uma série de analistas apressou-se a dizer que tal reviravolta fora consequência do efeito desastroso que a reclassificação racial de ACM Neto causou. Contudo, desde 2006, quando Jaques Wagner (PT) foi eleito derrotando o carlismo, apesar de todas as previsões indicarem vitória no primeiro turno de Paulo Souto (União Brasil), os institutos de pesquisa têm dificuldade de mensurar a força do PT nas disputas majoritárias no estado. Por essa razão, embora a reclassificação racial de ACM Neto tenha sido polêmica e possa estar relacionada ao uso indevido de recursos do FEFC, é forçoso afirmar que foi responsável pela redução na intenção de votos do candidato.
Por fim, outro obstáculo enfrentado por candidatos negros nesta eleição tem sido a morosidade dos partidos em liberar recursos do fundo público para suas campanhas. Há, ainda, partidos que têm se recusado a distribuir proporcionalmente os recursos para candidaturas negras e femininas, conforme determinação do TSE, apesar do risco de serem punidos pela Justiça Eleitoral. Conta a favor dos partidos que se insurgem contra a distribuição proporcional de recursos decisão tomada pelo Congresso Nacional que anistiou os partidos que descumpriram a regra em 2020. Há chances reais de que o mesmo ocorra com os partidos que descumprirem ou fraudarem a aplicação do FEFC em 2022.
A perspectiva de ampliação da representação negra, sobretudo no legislativo, é ainda incerta, apesar de provável. Por conta da emenda 111, alguns partidos recrutaram candidatos negros com grande potencial de voto e têm investido fortemente em suas campanhas. Por outro lado, a aplicação da regra de distribuição proporcional de recursos vem sendo descumprida por vários partidos e candidatos à reeleição alteraram sua declaração de cor/raça para acessar indevidamente recursos destinados às candidaturas negras. Haja vista que esse conjunto de legislações e regras estejam sendo testados pela primeira vez em uma eleição geral, é normal que haja imprecisões, fraudes e descumprimentos. A articulação entre a pressão da sociedade civil e o desenvolvimento de mecanismos de controle efetivos e céleres por parte da Justiça Eleitoral serão de suma importância para garantir o aprimoramento contínuo das regras, de modo a que atinjam seus objetivos.
Referência
MACHADO, C. M. ; CAMPOS, B. L. ; VAZ, A. C. ; RODRIGUES, C . Partidos políticos e inclusão: candidaturas coletivas, negros, mulheres e indígenas. In: Superior Tribunal Eleitoral. (Org.). Sistematização das normas eleitorais : eixo temático VIII : partidos políticos.. 1ed.Brasilia: Tribunal Superior Eleitoral, 2022, v. , p. 67-.
Folha de S. Paulo. 26/09/2022. entrevista da 2a: Partidos são ambientes hostis para pessoas negras.
Cristiano Rodrigues é doutor em Sociologia pelo IESP-UERJ e professor do Departamento de Ciência Política da UFMG.