Representação coletiva e plural: desafios das candidaturas e mandatos coletivos
Debora Rezende de Almeida
Publicado na Mídia Ninja
As candidaturas e mandatos coletivos transformaram o cenário eleitoral no Brasil. Desde 2016, a tendência é de crescimento dessas modalidades de campanha eleitoral e de mandatos legislativos. Nas eleições municipais de 2020, levantei informações sobre 319 candidaturas a vereador, em 161 municípios e 24 estados, das quais 34 foram eleitas. Em 2022, são 213 candidaturas coletivas ao legislativo, de acordo com levantamento de Campos e Costa, com o ineditismo de candidaturas para o Senado no Distrito Federal e em quatro estados: São Paulo, Espírito Santo, Rio Grande do Sul e Paraná.
Entre as características que dão vazão à expectativa positiva em relação às candidaturas coletivas destacam-se o potencial de mudarem tanto a lógica personalizada da política como a correlação de forças entre grupos que acessam o sistema representativo brasileiro. Contra a lógica personalizada, com foco na imagem do candidato, no indivíduo e suas habilidades, as candidaturas se apresentam como um projeto coletivo. Em 2020, 85% dos porta-vozes dessas candidaturas pertenciam a movimentos sociais, organizações civis e coletivos das mais diversas temáticas, incluindo a questão racial, gênero, LGBT+, mas também políticas sociais que tradicionalmente mobilizaram a sociedade civil no Brasil.
Para furar a barreira da sub-representação de mulheres, negros e indígenas, as candidaturas coletivas operam a partir de um malabarismo, equilibrando-se entre as regras formais e informais. Até o momento, a criatividade tem revelado bons frutos em termos da pluralização do representante: nas eleições de 2020 e de 2022 as candidaturas coletivas incluem mais mulheres, quando comparado ao perfil geral de candidaturas legislativas, chegando à quase paridade em 2020 e alcançando-a em 2022. Entre os mandatos coletivos eleitos em 2020, o percentual de porta-vozes mulheres é de 64,7%, contra 16% de mulheres eleitas nas câmaras de vereadores do país.
Fonte: Elaboração própria a partir de pesquisa e adaptação dos dados de Campos e Costa (2022).
Em relação à raça/cor, as candidaturas coletivas no nível municipal ainda eram maioria branca (51,1%), mas em 2022, pretos e pardos juntos (57%) superam as candidaturas coletivas brancas (40%). Nas duas eleições (2020 e 2022), a inclusão de pretos na experiência coletiva (29,8% e 36%, respectivamente) é muito superior à de pardos (17,9% e 21%), invertendo a lógica das eleições gerais. Entre as coletivas eleitas, o percentual de brancos (55,9%) é próximo ao perfil de vereadores no país (53.4%), porém, mais vereadores coletivos pretos foram eleitos: 26,5% contra 6,2% do perfil geral. Resta saber como ficará esta equação em 2022.
Raça/Cor | Total 2020 | Coletivas 2020 | Eleitos Coletivas 2020 | Total 2022 | Coletivas 2022 |
Branca | 48,6% | 51,1% | 55,9% | 48,5% | 40% |
Preta | 10,7% | 29,8% | 26,5% | 14,1% | 36% |
Parda | 39,9% | 17,9% | 14,7% | 36,4% | 21% |
Indígena | 0,5% | 0,3% | 0,0% | 0,6% | 3% |
Amarela | 0,3% | 0,9% | 2,9% | 0,4% | 0% |
Fonte: Elaboração própria a partir de pesquisa e adaptação dos dados de Campos e Costa (2022).
Em tentativa inédita de compreender o perfil dos covereadores, em pesquisa que coordeno na Universidade de Brasília, obtivemos dados para 108 covereadores eleitos, do total de 150 distribuídos nos 34 mandatos. É possível ver que o perfil mais plural se reproduz, pois a maioria também é de mulheres: 68 (62,9%), sendo três delas transgênero/transexual/travesti. Apesar de mais brancos (48, ou 44,5%), o percentual dos covereadores que se declaram pretos é maior (37%) do que entre porta-vozes (26,5%).
Um último dado quantitativo relevante é a distribuição partidária. Tal qual encontrado na análise desenvolvida por Bárbara Campos e Mariane Costa, as candidaturas coletivas de 2020 também eram fenômeno distribuído na centro-esquerda partidária, especialmente PSOL, PT, PCdoB e PDT, ainda que haja difusão na direita.
Desafios e dilemas
Em um esforço para compreender o funcionamento desses mandatos, entrevistamos 61 mandatários, cobrindo 31 mandatos eleitos em 2020. Além da inclusão, já destacada, a maioria dos eleitos vê no aspecto coletivo desta representação uma das grandes inovações, pois desafia o modelo liberal com foco no indivíduo e resgata o aspecto deliberativo e coletivo da representação que se constrói no debate em torno de projetos políticos e propostas. Um dos problemas desta dinâmica é a dificuldade de responsabilização do representante, pois se trata de um grupo e não de um indivíduo, mas, na prática, no modelo individual também há uma linha tênue entre preferências do voto, comportamento do eleito e políticas adotadas.
Outros dilemas dizem respeito à dificuldade de levar a cabo esta proposta após as eleições. Dos 31 mandatos entrevistados, um renunciou, quatro deles já se desfizeram e, em outro, o mandatário pediu licença devido a grandes desacordos internos. Algumas questões parecem críticas para o sucesso, entre elas, a forma de aproximação e decisão pelo formato coletivo e as afinidades ideológicas e partidárias entre os atores. Existem candidaturas mais orgânicas formadas a partir de um conhecimento prévio, compartilhamento do ativismo e até afinidade pessoal, fatores que facilitam os acordos no mandato. E outras em que as pessoas pouco se conheciam até formarem a candidatura. Pode ser também difícil deliberar e entrar em acordo quando as candidaturas incluem um número grande de pessoas, o que vai implicar mais questões para acordos e mesmo divisão de recursos.
No que tange à interação partidária, as experiências brasileiras, contrariamente ao que se esperava, não parecem se construir contra os partidos políticos. Em muitos casos, os eleitos eram ativistas de partidos e não veem conflitos na dupla filiação entre partidos e movimentos sociais, com propostas inclusive de construção e democratização do partido. Mas não podemos esquecer que partidos políticos são estruturas hierárquicas e lugar de disputa de visões de mundo e de poder. Essas disputas ocorrem em relação aos partidos concorrentes, o que coloca limites para propostas que se pretendam multipartidárias, mas também internamente, entre outros candidatos que discordam do formato e entre correntes/tendências partidárias divergentes.
Deve-se lembrar igualmente que a maioria desses mandatos situados em campo progressista foi eleita em municípios que tendem a ser mais conservadores e alinhados à direita, o que adiciona desafios a sua atuação. Ademais, como pesquisas vêm mostrando há muitos anos, o ambiente político é muito hostil a mulheres, negros e LGBT+. A violência política é brutal e emerge mesmo entre os supostos aliados, dentro dos partidos e, inclusive, na esquerda. O formato coletivo, muitas vezes, é uma opção para não enfrentar isoladamente essa violência.
Finalmente, candidaturas coletivas representam um esforço hercúleo de movimentos sociais e ativistas para furar a barreira da sub-representação, em um sistema que é extremamente excludente. Um dos efeitos atuais parece ser sua capacidade de alçar e recrutar algumas lideranças. Candidatos antes no formato coletivo estão disputando individualmente. O quanto estas experiências podem gerar efeito de contágio no sistema político, que resiste a se tornar mais democrático, é algo que merece atenção.
*Debora Rezende de Almeida é professora do IPOL/UnB, faz parte do grupo de pesquisa Resocie e é pesquisadora PQ/CNPq