por Helena Dolabela
Helena Dolabela Pereira
Publicado no JOTA
Entramos na última semana que antecede o segundo turno da eleição presidencial de 2022 no Brasil. É preciso recuperar o foco sobre uma das questões atuais mais complexas e urgentes que a humanidade enfrenta: a crise climática. O que o pleito tem a ver com isso?
Noam Choamsky, reconhecido professor de linguística do MIT e ativista político, concedeu uma entrevista há dois dias do primeiro turno para o programa Democracy Now no qual foi perguntado sobre o significado da eleição brasileira. Ele disse: “é muito significativo não apenas para o Brasil mas para todo o mundo. No Brasil, por vários aspectos, mas um deles é o fato de que a maior parte da Região Amazônica está no Brasil. São dois candidatos. Um deles é o presidente em curso, Bolsonaro, que é, basicamente, comprometido com a destruição da Amazônia. (…) É sabido há algum tempo que, cedo ou tarde, se a destruição da Amazônia continuar, não existirão mais nutrientes para a sua reprodução e deixará de ser um sumidouro de carbono e passará a produzir carbono transformando-se em uma savana. Isso é uma catástrofe para o Brasil e, de fato, para todo o mundo”.
A política anti-ambientalista do presidente Bolsonaro ao longo de todo o governo já foi analisada em textos publicados pelo Observatório das Eleições. Uma forma de entender esse direcionamento governamental é utilizando a chave dualista das diferentes concepções de desenvolvimento: de um lado, o crescimento econômico; de outro, o conservacionismo ambientalista. Estas linhas foram borradas pela narrativa do desenvolvimento sustentável aceita pela esquerda e pela direita, mas não resolve os conflitos nos casos concretos já com forte propensão a ceder ao poder dos grupos econômicos.
No caso do governo Bolsonaro, o pêndulo direcionou-se fortemente para os grupos econômicos que se beneficiam da exploração irrefreada dos recursos naturais, algumas vezes de forma irregular. Contudo, não se trata somente da defesa pelo lado econômico (e lucrativo) do desenvolvimento, mas de uma ideologia populista de extrema direita que têm fundamentado várias políticas e ações nos últimos quatro anos. É assim que a questão climático-ambiental no atual contexto brasileiro precisa ser decifrada para que possamos dimensionar o alcance do resultado das eleições de 2022 no Brasil.
O projeto populista de Jair Bolsonaro é baseado na figura de um líder messiânico que representa diretamente a vontade do povo, rejeita as instituições de mediação (como os partidos e a mídia tradicional) e o arranjo constitucional de freios e contrapesos. Este último aspecto ganhou maior destaque na semana que passou pela declaração do presidente a favor do aumento do número de ministros do STF com vistas a conseguir um alinhamento com o seu projeto de poder. Alguns estudiosos também têm apontado como característica de governos populistas a sua faceta negacionista relacionada ao anti-intelectualismo, a inferiorização do saber científico e a afeição a teorias da conspiração. Os cientistas políticos Leonardo Avritzer, Lucio Rennó e Priscila Delgado , em estudo sobre a o populismo e a pandemia da Covid-19 no Brasil, defendem que a conduta do presidente brasileiro neste período não foi uma ação irracional, mas o posicionamento de um líder populista que escolheu o distanciamento da ciência na medida em que esta se alinhava com o sistema político tradicional.
O negacionismo governamental também afetou a política ambiental por meio, entre outras ações, das constantes críticas às metodologias empregadas para aferir os números sobre queimadas e desmatamentos na Amazônia e outros biomas, publicados por instituições oficiais reconhecidas internacionalmente como o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). Neste cenário de uma atuação governamental anti-constitucionalista e negacionista, cresceu a importância das instituições de justiça, especialmente a atuação do Judiciário brasileiro para fazer frente aos retrocessos em matéria climático-ambiental. Houve um aumento expressivo da chamada litigância climática nos últimos quatro anos, com a propositura de ações judiciais por parte do Ministério Público, partidos políticos e associações civis – com destaque para a atuação de associações indígenas – em defesa dos direitos socioambientais e climáticos.
A clara inclinação autocrática do governo Bolsonaro mostra o risco de uma sua eventual reeleição. Não se trata, contudo, de um fenômeno local. O mundo todo vive um processo de autocratização, ainda que a natureza deste tenha se alterado, como mostra o volume da Revista V-Dem – The Democracy Report 2022: The Autocratizachion Changing Nature?. Este relatório nos ajuda a justificar, com base em dados científicos, quais são os dividendos da relação entre democracia e mudança climática. Compilando estudos sobre a relação entre governos democráticos e cooperação para o clima, identificou-se que: democracias de alta qualidade têm um compromisso político quase 20% maior com a mitigação das mudanças climáticas do que autocracias fechadas como a China. Também equivale a uma diferença nas metas da política de redução do Acordo de Paris de 1,6%. Isto é, democracias se comprometem objetivamente mais com medidas para a redução da emissão de gases de efeito estufa. E, ainda, aponta-se que um aumento de 1% nas liberdades civis gera uma redução de 0,05% nas emissões nacionais de CO2.
A conclusão é clara: são as democracias que fornecem a arena para sociedade civil defender as questões relacionadas às mudanças climáticas e, assim, poder pressionar internamente os sistemas políticos. Por outro lado, o tratamento de um problema que não respeita fronteiras depende de comportamentos governamentais cooperativos no âmbito das relações exteriores. O Brasil é um ator político fundamental e fiel da balança na discussão sobre o clima. A sua posição geopolítica em relação às mudanças climáticas é de interesse de todo o planeta. As expectativas mundo afora em relação ao resultado das eleições são opostas.
Se Bolsonaro ganhar, a capacidade de construção de consensos e compromissos em torno de uma pauta climático-ambiental avançada será fortemente prejudicada, colocando em xeque qualquer esforço diplomático global. O Brasil continuará sendo um pária internacional nos organismos multilaterais. Por outro lado, a vitória de Lula é vista como uma retomada mais do que urgente das negociações diplomáticas na questão climática, já prenunciada durante a campanha eleitoral pelo encontro do candidato com parlamentares da União Européia para a construção de um diálogo e o compartilhamento de um termo de cooperação envolvendo a proteção da floresta amazônica.
A nós, eleitoras e eleitores do Brasil, no dia 30 de outubro, será dado o direito de decidir o futuro da presente e das próximas gerações, não apenas do Brasil, mas de todo o planeta.
Helena Dolabela é pesquisadora de pos-doutorado no INCT IDDC. Doutora em Antropologia e mestre em Ciência Politica pela UFMG. Pesquisa temas como conflitos socioambientais e litigância climática.
por Helena Dolabela
Leonardo Barros Soares e Helena Dolabela
Publicado no Jota
Passado pouco mais de uma semana depois dos resultados do primeiro turno das eleições 2022, já é possível fazermos um balanço de seu significado para a pauta do meio ambiente. E aqui já adiantamos nosso diagnóstico: não é possível dourar a pílula – a nova composição do Congresso, das assembleias estaduais e o perfil político dos governadores eleitos, especialmente nos estados da Amazônia, não nos permite otimismo. As políticas públicas e todo o arcabouço legal e institucional em torno do meio ambiente no país saem severamente vulnerabilizadas do pleito.
Comecemos pela expressiva votação de Jair Bolsonaro. Na hora da verdade, quase metade dos votantes optou por apoiar um projeto político que atuou fortemente para o desmantelamento das salvaguardas constitucionais em torno do meio ambiente. Desmatamento recorde, monstruosas queimadas, expansão irrefreada do garimpo ilegal em terras indígenas, inação criminosa no episódio do derramamento de petróleo na costa do Nordeste não foram suficientes, aparentemente, para reduzir o apoio eleitoral ao atual presidente.
O voto para presidente tornou-se uma espécie de plebiscito sobre a vigência ou não da democracia no país. A temática ambiental ficou “escanteada” ao longo da campanha e, embora algumas pesquisas de opinião apontem a ampla adesão da população à proteção da floresta amazônica e a rejeição da exploração desenfreada dos bens naturais, estes elementos não parecem ter pesado na escolha dos cidadãos. Será uma tarefa futura da ciência política construir hipóteses para explicar esse fenômeno.
A nova composição da Câmara dos Deputados continuou falseando o chamado “teorema de Tiririca”, que vaticinava que “pior que está não fica”. Ficou, e muito. Uma avalanche conservadora, fruto da maior bancada que o dinheiro pode comprar, tem condições de se tornar ainda mais efetiva em seus desígnios de desregulamentação da política ambiental brasileira do que a legislatura 2019-2022. Destaque para a expressiva votação que o ex-ministro do Meio-Ambiente, Ricardo Salles, recebeu em São Paulo. Dada sua identificação radical com o projeto de terra arrasada do governo Bolsonaro, talvez não seja exagero dizer que essa forma de ver o mundo foi chancelada por boa parte do eleitorado nacional. Além disso, chamamos a atenção para a eleição de Silvia Waiãpi, a primeira indígena bolsonarista eleita pelo Amapá, que pode ser uma ferrenha defensora de projetos que visem desmontar o que ainda resta de proteção para as terras indígenas.
O Senado, por sua vez, tradicionalmente uma casa revisora mais restritiva e que exerce um importante papel de contenção em algumas propostas mais agressivas da Câmara dos Deputados, será composta por um perfil majoritariamente conservador, alinhado com a proposta anti ambiental de Bolsonaro. Isso significa dizer que, mesmo na hipótese de vitória de Lula, estão abertas as portas para a passagem de projetos de lei e emendas constitucionais que podem desfigurar, de forma irreversível, os direitos ambientais presentes na Carta Magna.
O panorama estadual tampouco é promissor. Em Minas Gerais, Zema, notório aliado de mineradoras no estado, foi reeleito já em primeiro turno. Em Roraima, Antonio Denarium, também reeleito em primeiro turno, continuará com sua política de incentivo ao garimpo ilegal em território Yanômami. A exceção ao combo direitista dos governadores eleitos nos estados da Amazônia é a reeleição de Helder Barbalho (MDB) no Pará que contempla um plano de governo com diretrizes e ações para a proteção ao meio ambiente e o desenvolvimento sustentável.
As assembleias legislativas, que devem decidir sobre questões ambientais estaduais, espelham, em larga medida, a divisão entre esquerda e direita do nível federal. A ver, em cada região, como ficará essa disputa já reconhecidamente desequilibrada em matéria ambiental e que prenuncia dias difíceis para as reservas naturais e os biomas sob responsabilidade dos estados.
É bem verdade que a eleição de uma representante do porte de Marina Silva para a Câmara Federal em São Paulo e de duas lideranças indígenas expressivas – Sônia Guajajara e Celia Xacriabá – deve ser comemorada por todos aqueles que desejam a reversão do atual quadro de descalabro ambiental em que nos encontramos. No entanto, não devemos nos enganar – a bancada pró-meio ambiente no Congresso é minoritária e deverá enfrentar dificuldades nos embates legislativos. O mais provável é que o alinhamento entre Arthur Lyra e as bancadas conservadoras seja reeditada, com efeitos potencialmente devastadores para o meio ambiente.
Reza a lenda que, certa feita, o presidente Fernando Henrique Cardoso teria respondido à pergunta de um repórter sobre como estava o Brasil dizendo que o país ia “de mal a menos mal”. Essa tirada sociológica, infelizmente, não é possível de ser repetida quando estamos falando do futuro da política ambiental, pois tudo parece estar indo de mal a pior. Só vamos ter certeza após o próximo dia 30 de outubro.
Agora é esperar pelo segundo turno presidencial. Se Bolsonaro ganhar, conforme já escrevemos em outros espaços, é difícil imaginar o grau de destruição do meio ambiente a que poderemos chegar. Não por acaso, a eleição presidencial de 2022 no Brasil é vista como decisiva para a questão climática por vários especialistas de todo o mundo, especialmente em função da aproximação acelerada do ponto de não retorno da devastação amazônica.
por Helena Dolabela
Helena Dolabela e Leonardo Barros Soares
Publicado no Jota
A pauta indígena tem tido maior espaço na esfera pública junto a organismos multilaterais e a sociedade civil pela sua relação com a preservação da Amazônia. Lideranças indígenas têm mostrado ao mundo que efetivar os direitos territoriais de povos originários é condição necessária para conter o avanço do desmatamento e das queimadas na Região Amazônica. Um lado reforça o outro. A floresta de pé garante aos povos indígenas a manutenção dos seus modos de vida e existência, e ao mesmo tempo ajuda na regulação do clima na região e no planeta.
No entanto, a questão indígena não tem tido centralidade na disputa eleitoral para a Presidência da República. De certo, na última semana o assunto ganhou maior espaço com o “reencontro” entre Lula e Marina Silva. A retomada da demarcação de terras indígenas está dentro das propostas de avanço na política climático-ambiental trazidas pela recém aliada e que foi acolhida pelo grupo político do candidato petista. No mesmo dia, à noite, Lula foi perguntado pelo jornalista Willian Waack sobre a “reconciliação” e o que ele chamou de “exigências” como a “demarcação de terras indígenas” e “a demarcação de terras quilombolas” para ter o apoio, ainda em primeiro turno, da ex-senadora e ex-ministra do Meio Ambiente no Governo Lula. Lula respondeu que no seu governo foi criado o maior número de reservas ambientais e realizadas demarcações de terras indígenas. Logo foi interrompido pelo entrevistador que afirmou ser esse posicionamento que levava o agronegócio a ser um apoiador político-eleitoral de Bolsonaro.
Seria este “bate-bola”, que relaciona demarcação de terras indígenas e apoio eleitoral, uma chave analítica para explicar o porquê de a pauta indígena não ter centralidade nas campanhas eleitorais dos presidenciáveis? Poderíamos aventar a hipótese da existência de um entendimento partidário/ideológico de que a questão indígena é controversa no seio do eleitorado brasileiro, e que, portanto, um posicionamento a respeito poderia ter algum impacto eleitoral?
Pesquisa realizada pelo INCT-IDDC nos dias 4 a 16 de junho de 2022 intitulada “A Cara da Democracia”, com 2.538 entrevistas presenciais, em 201 cidades de todas as regiões do país veio contribuir para este debate. No conjunto de questões, duas estão relacionadas com meio ambiente e uma delas diretamente com a questão indígena. Mais especificamente, perguntava-se se o entrevistado era a favor ou contra a permissão para mineração nas terras indígenas. De um total de 2.538 entrevistas preseciais, 76,2% dos entrevistados afirmaram-se contra, 22,1% a favor e 1,6% responderam que depende. Dentre os contrários, o público feminino é superior ao masculino, respectivamente, 79,0% e 73,3%. Em relação à faixa etária, os entrevistados mais jovens (entre 16-17 anos) são aqueles que mais rejeitam a mineração em terras indígenas (83,3%); enquanto aqueles com idade mais avançada (acima de 60 anos) alcançam o percentual mais baixo (71,7%).
O nível de escolaridade apresenta uma tendência que vai de uma menor para uma maior rejeição à mineração em terras indígenas. Assim, entre os que se declaram analfabetos ou com primário incompleto/completo 27,6% são a favor da mineração. Já entre os que têm ensino superior incompleto/completo, o percentual é o mais baixo – 18,8%. Em relação ao nível de renda, os dois extremos, que vão de 0-2 salários mínimos a mais de 10 salários mínimos são aqueles que menos rejeitam a permissão de mineração em terras indígenas, respectivamente, 25,4% e 28,2%. Entre as outras faixas de renda intermediárias esses percentuais são menos variáveis e vão de 19% a 22%.
Há uma significativa diferença entre os entrevistados que declaram votos nos dois candidatos que estão à frente nas pesquisas, Lula e Bolsonaro. Embora nos dois casos a maioria seja contra a permissão de mineração em terras indígenas, entre os eleitores de Lula este percentual atinge 78,8% contra 66,2% no caso dos eleitores do Bolsonaro. Estes percentuais aumentam entre os de Ciro e Simone Tebet, respectivamente, 82,2 e 91,3 – este último sendo o maior índice de rejeição entre todo o conjunto de entrevistados. Em pergunta que considera o espectro político, verifica-se que a maior rejeição vai da esquerda para direita, sendo que os que se dizem de centro se aproximam de forma expressiva da esquerda. Na outra ponta, com uma distância bem mais significativa, estão aqueles que se dizem de direita. Assim, entre os entrevistados que se declaram de esquerda, são contra a mineração 82%, entre os de centro 79,7% e entre os de direita 65,9%.
Assim, os dados aqui apresentados nos levam a afirmar que a posição majoritária do eleitorado brasileiro é contrária a propostas de exploração em territórios indígenas. Note-se que, em pesquisa recente sobre o tema, o Instituto Socioambiental verificou percentuais semelhantes de rejeição. Mas, por quê, ainda assim, o tema parece ser controverso?
Uma outra chave explicativa, que tem relação com a primeira, mas aponta uma perspectiva mais histórica do que conjuntural, pode ser a questão fundiária. Herança, bem entendida, de um passado colonialista, que ainda subsiste como uma visão econômica-hegemônica que entende a terra como mercadoria e bem explorável com finalidade lucrativa. Esta é a visão que tem dominado a política tradicional devido ao poder econômico daqueles que usufruem da exploração dos bens naturais. A criação de reservas ambientais e a demarcação de terras indígenas retira este ativo do “mercado” na medida em que protege e valoriza o seu uso ecológico e social, garantindo também a reprodução física, cultural e espiritual dos povos indígenas e tradicionais.
Por isso, os setores extrativistas são os beneficiários do desmantelamento da política indigenista do país levado a cabo sob o governo Bolsonaro e dispõem de recursos para fazer sua mensagem ecoar forte nos meios políticos-institucionais e na grande mídia. A dinâmica fundiária nacional sempre foi extremamente concentradora de terras nas mãos de poucos proprietários, que hoje se vendem como “salvadores” não apenas da pátria, mas do planeta, em termos de segurança alimentar. Esses atores, com influência política secular, querem nos fazer crer que a maioria da população brasileira é contrária à demarcação de terras indígenas ou a favor da exploração econômica de seus territórios, o que simplesmente não encontra respaldo nos dados disponíveis.
Assim, será interessante acompanhar, no caso da eleição de Lula, como o ex-presidente irá equacionar os interesses do agronegócio e das mineradoras – que estão em peso com Bolsonaro – com os compromissos políticos assumidos junto a lideranças indígenas e a opinião da maioria da população brasileira contrária à mineração em terras indígenas. Em suma, a batalha pela efetivação cotidiana dos direitos dos povos indígenas brasileiros deverá ter maior ressonância e visibilidade político-institucional, mas continuará dramática nos próximos anos.
Helena Dolabela é pesquisadora de pós-doutorado no INCT IDDC. Graduada em Direito. Mestre em Ciência Política e Doutora em Antropologia pela UFMG.
Leonardo Barros Soares é professor do Departamento de Ciências Sociais da UFV e colaborador do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFPA. Mestre e doutor em Ciência Política pela UFMG, com período sanduíche na Université de Montréal. Coordenador do Grupo de Pesquisa Política e Povos Indígenas nas Américas.
por Helena Dolabela
Helena Dolabela e Edésio Fernandes
Publicado nos Ninjas
O processo de urbanização no Brasil é antigo, tendo começado na década de 1930. Desde meados da década de 1950 mais da metade da produção econômica do país já se dava nas cidades e o ritmo intensivo de urbanização se consolidou no final da década de 1970. Desde então, as taxas de crescimento urbano têm caído, mas ainda são significativas, sendo que nas últimas décadas esse crescimento passou a se dar também em cidades de porte médio e cidades pequenas, assim como em uma rede crescente de regiões metropolitanas não mais constituídas, como era o caso anteriormente, em torno de algumas capitais. Hoje em dia cerca de 84% dos brasileiros vivem em áreas urbanas.
A urbanização brasileira mudou o país radicalmente em termos econômicos, sociais, culturais e ambientais; contudo, como regra por toda parte o crescimento urbano tem sido marcado por processos combinados de segregação socioespacial, exclusão socioeconômica, degradação socioambiental, informalidade e precariedade habitacional, concentração de serviços, equipamentos e áreas públicas, insegurança e violência. As cidades brasileiras são fragmentadas, irracionais, ineficientes, caras, poluídas, perigosas, injustas. Este padrão tem se agravado e ganhado novas dimensões nos últimos anos como foi evidenciado de forma cruel pela pandemia recente.
No entanto, a ordem constitucional do país continua tratando desse fenômeno estrutural e estruturante de maneira incipiente e inadequada. De fato, há diversos problemas constitucionais profundos a serem enfrentados, como o sistema de representação política que ainda dá mais poder às áreas rurais do que às áreas urbanas. O pacto federativo obsoleto nominalmente favorece os municípios mas sem lhes reconhecer plena autonomia financeira, insiste em uma falsa isonomia formal dos municípios e sobretudo ignora o marcante processo de metropolização do país: de diversas formas o “local” no Brasil é o metropolitano, não o municipal, mas ainda não existe uma base constitucional minimamente adequada para tratar dessas complexas esferas territoriais.
Como resultado da grande mobilização social que resultou na Emenda Popular sobre Reforma Urbana, a Constituição Federal de 1988 introduziu um capítulo pioneiro, ainda que modesto, sobre Política Urbana: até então, as Constituições brasileiras tinham praticamente ignorado o fenômeno da urbanização. Também como resultado da pressão social, em 2001 foi aprovada a importante Lei Federal no. 10.257 que regulamenta esse capítulo constitucional – o ainda pouco conhecido e aplicado “Estatuto da Cidade” – e em 2003 foi criado pelo Governo Lula o Ministério das Cidades, com funções específicas sobre habitação, saneamento, transporte e mobilidade, assim como sobre política urbana e alguma medida de política fundiária. Esse Ministério avançou de maneira significativa na criação de uma ordem jurídico-urbanística nacional ainda que sem recursos financeiros mínimos, mas em 2006 foi sacrificado pelo Governo Federal em busca de uma ilusória “governabilidade”. A agenda mais ampla da reforma urbana foi esvaziada e trocada pela ênfase em um programa habitacional mais restrito, Minha Casa Minha Vida, o qual, apesar de sua importância e escala, tinha lá seus muitos problemas e não contribuiu para mudar o padrão excludente e informal da urbanização no país. A situação piorou nos Governos Temer e Bolsonaro com o desmonte sistemático da ordem jurídico-urbanístico-ambiental, o enfraquecimento das políticas sociais e habitacionais, e a redução do Ministério das Cidades a uma mera Secretaria sem maior expressão.
Cada vez mais cheias de moradores, mas fora da agenda governamental federal, enquanto são diretamente afetadas pelos problemas urbanos, sociais e ambientais tradicionais acumulados e que têm sido agravados pela pandemia e pelos efeitos das mudanças climáticas em curso: eis a tragédia das cidades brasileiras.
Nesse contexto, é fundamental verificar o que os principais candidatos à eleição presidencial têm a propor sobre as cidades e suas muitas questões. Mesmo reconhecendo a necessidade de uma reforma constitucional para criar melhores bases jurídicas, políticas, institucionais e tributárias adequadas para o tratamento dessa questão estrutural, especialmente no que diz respeito ao tratamento das regiões metropolitanas no contexto do pacto federativo, há muito que o Executivo Federal pode, deve e precisa propor e sobretudo fazer para melhorar as condições das cidades brasileiras e seus milhões de habitantes. Uma boa maneira de fazer essa avaliação é a leitura das propostas dos candidatos tal como organizadas pela BBC Brasil no seguinte site: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-61350824
Naturalmente, há propostas que afetam as cidades em diversos blocos – propostas sobre educação, saúde, trabalho, cultura etc. – mas os dois blocos mais diretamente ligados ao tema das cidades são “Programas Sociais e Direitos Humanos” e “Meio Ambiente”. Nesse contexto, vou destacar as propostas dos três principais candidatos com base nas intenções de votos indicadas pelas pesquisas eleitorais recentes, quais sejam, Luiz Inácio Lula da Silva, Jair Bolsonaro e Ciro Gomes.
As principais propostas do candidato Lula da Silva que se aplicam especificamente às questões das cidades e à política urbana são:
- Retomar políticas de garantia do direito à cidade, combatendo desigualdades territoriais, em direção a uma ampla reforma urbana
- Voltar a ter um amplo programa de acesso à moradia, com mecanismos de financiamento adequados a cada tipo de público
- Garantir direito à água e ao saneamento, com universalização dos serviços
- Proteger direitos e territórios dos povos indígenas, quilombolas e populações tradicionais e valorizar sua cultura, tradições, modo de vida e conhecimentos
- Promover a transição ecológica das cidades com investimentos em transporte público, habitação, saneamento básico e equipamentos sociais
Do programa do candidato Jair Bolsonaro a única proposta específica sobre a questão urbana é:
- Consolidar e ampliar ações de regularização fundiária
Já o candidato Ciro Gomes propõe:
- Reduzir o déficit habitacional
- Reforma urbana e regularização fundiária, com financiamento de reformas de moradias populares, preferencialmente com mão de obra da própria família ou comunidade
- Universalizar acesso a saneamento e água potável até 2030, com investimento público e privado
Fica claro que o candidato Bolsonaro pretende manter a questão urbana no mesmo limbo politico-institucional com que o governo do Presidente Bolsonaro a tem tratado, com o esvaziamento das politicas públicas setoriais sobre habitação (o programa Casa Verde e Amarela foi praticamente abandonado com os drásticos cortes orçamentários), saneamento e transporte, temas que governo tem vagamente remetido para a ação da iniciativa privada; a questão socioambiental foi ignorada, e a questão da regularização fundiária urbana, que é certamente de grande importância, deve continuar a ser tratada da mesma forma totalmente inadequada na sequencia da aprovação da Lei Federal no. 13.465/2017 enfatizando soluções legalistas individuais.
As propostas do candidato Ciro Gomes são certamente importantes, mas muito limitadas – dentre outros aspectos, sequer mencionando a questão central do transporte – e não se articulam com qualquer agenda socioambiental.
As propostas do candidato Lula da Silva são obviamente as mais adequadas e as que mais perto chegam das necessidades das cidades brasileiras. Contudo, há dois problemas principais. Em primeiro lugar, não há qualquer menção ao que pretende ser feito para que os objetivos ambiciosos – reforma urbana, direito à cidade – sejam atingidos, especialmente dada a falta de um compromisso com a recriação do Ministério das Cidades e com o restabelecimento dos processos participativos abolidos pelo Governo Bolsonaro – especialmente o Conselho Nacional das Cidades e as Conferências Nacionais das Cidades.
Em segundo lugar, as propostas do candidato Lula da Silva continuam limitadas ao tratamento das cidades através de políticas públicas setoriais, mas sequer mencionam o tema anterior a todas elas e que tem determinado o padrão de urbanização e as condições de vida nas cidades brasileiras: a questão fundiária. Não se fala em função social da propriedade, privada e pública, em recuperação da valorização imobiliária para financiamento do desenvolvimento urbano, em aproveitamento especialmente para a moradia social do estoque gigantesco de terrenos vazios e de construções vazias e/ou subutilizadas existentes pelo país afora, em tributação progressiva etc.
A história – no Brasil e internacionalmente – já nos mostrou que não há como promover reforma urbana sem enfrentar a questão da estrutura fundiária concentrada e excludente. Também não há como promover política habitacional efetiva sem articulá-la com as políticas fundiária, ambiental e de transporte, e que não há como reconhecer o direito à cidade sem promover uma ruptura com o modelo perverso dominante que, ao mesmo tempo que gera um déficit habitacional de cerca de 7 milhões de unidades e remete dezenas de milhões de pessoas para a moradia informal e precária, promove um estoque absurdo de milhões de construções vazias e de terrenos sem qualquer função social nas cidades. A pandemia nos mostrou como a questão fundiária está na base dos problemas sanitários, habitacionais e ambientais das cidades. Reconhecer o valor social da terra urbana é tarefa urgente.
Embora não tenham quaisquer chances eleitorais, é importante registrar que foram os candidatos dos partidos de esquerda os únicos que colocaram o dedo nessa ferida de maneira inequívoca.
Leonardo Péricles da Unidade Popular propõe:
- Garantir moradia digna, saneamento e coleta de lixo para todas as famílias
- Destinar imóveis abandonados para resolver o déficit habitacional
- Garantir a função social das propriedades urbanas com alíquotas progressivas de IPTU, fiscalização e vistorias, combatendo a especulação, para toda a população ter moradia, acesso fácil ao trabalho e ao lazer e viver com dignidade
- Desenvolver reformas Agrária e Urbana sob a ótica de reparação da população negra
Vera Lucia do PSTU propõe:
- Desapropriação dos imóveis dos grandes proprietários que vivem da especulação imobiliária e ocupação desses imóveis por uma parte da população sem teto
- Imediata legalização das ocupações de terrenos, com urbanização e saneamento adequados
- Estatização de todas as empresas de transporte e que ele se transforme em um serviço gratuito
Existe certamente todo um campo de discussão acerca dessas propostas – e outras mais radicais ou menos radicais -, mas é louvável que esses candidatos não tenham se furtado a discutir a questão fundiária. O fato é que a combinação das diversas ordens de crises contemporâneas – sanitária, energética, ambiental, alimentar, urbana, habitacional, social, política, financeira, econômica… – requer que essa questão central do território das cidades – um bem não renovável – seja reconhecida e enfrentada.
Se existe um legado que a atual geração vai deixar para seus filhos e netos é que vão quase todos viver em cidades. Como serão essas cidades, e que qualidade de vida essas pessoas terão, essas são questões políticas fundamentais. Cidade e cidadania são o mesmo tema.
Edésio Fernandes é jurista e urbanista. Membro da DPU Associates.
Helena Dolabela é graduada em Direito e doutora em Antropologia pela UFMG.
por Helena Dolabela
Helena Dolabela e Leonardo Barros Soares
Publicado no Mídia Ninja
Na semana passada foi selado o apoio público de Marina Silva (Rede) ao candidato Lula (PT), ainda em primeiro turno. No escritório da campanha política do presidenciável, em São Paulo, Marina participou de uma coletiva de imprensa ao lado de Lula, Gleisi Hoffman, Aloízio Mercadante e Geraldo Alckmin. Com um discurso baseado na conjuntura político-eleitoral nacional, mas também nos desafios climáticos globais, ela afirmou existir ali um “reencontro político e programático”. O propósito de fundo declarado por Marina é enfrentar “a ameaça das ameaças, a ameaça à democracia”, para ela representada pela candidatura à reeleição de Jair Bolsonaro. Talvez não seja exagero denominá-lo como o evento mais importante para a pauta ambiental durante a campanha presidencial de 2022. O tema, que foi recorrente durante os quase quatro anos do governo Bolsonaro, não apresenta a mesma centralidade nos debates entre os outros candidatos.
Marina Silva tem a sua história política construída na vivência como seringueira e liderança sindical rural na defesa dos direitos dos povos tradicionais e da floresta amazônica. Grande amiga de Chico Mendes, assassinado em 1988, lutou com ele pela criação e consolidação da pauta socioambiental também nacionalmente. Tem conhecimento de causa, de luta e de direitos. Como poucos políticos que alcançam tamanha projeção nacional – foi vereadora, deputada estadual, senadora pelo Acre por duas vezes, ministra do Meio Ambiente no Governo Lula e candidata à Presidência da República por três vezes – nunca se afastou do socioambientalismo como movimento e direito.
Neste momento crucial da história democrática do país, Marina Silva e seu grupo político decidiram pautar uma agenda climático-ambiental avançada e com propostas claras baseada em um tripé: criação de uma Autoridade Nacional de Segurança Climática, a demarcação de terras indígenas e a criação de unidades de conservação. Mostra, portanto, que tem uma visão institucional e operacional sobre a pauta da mudança climática transversal a várias políticas e ministérios. Além disso, dá visibilidade a outras duas pautas incomodamente marginais neste pleito eleitoral até então, mas diretamente relacionadas com a regulação do clima: a retomada da demarcação de terras indígenas e a ampliação das unidades de conservação. Não à toa, Lula afirmou que as propostas de Marina eram “ousadas”.
No mesmo dia, Lula foi entrevistado pela CNN e fez jus à aliança. Perguntado pelo jornalista William Waack sobre a “reconciliação” com Marina e a existência de “contrapartidas”, Lula falou sobre direitos de povos e comunidades tradicionais. Respondeu com firmeza sobre a sua “opção” de efetivar o direito à demarcação de terras para indígenas e quilombolas, lembrando o seu passado de compromisso com a criação de reservas ambientais e direitos territoriais para povos tradicionais. Assim, se apresenta, hoje, como a candidatura à Presidência da República que tem maior envergadura programática para enfrentar e impulsionar o que foi nomeado por Marina como um “imperativo ético para dar conta do grave problema da mudança climática”.
A aproximação tem contornos políticos para além do espectro partidário na medida em que a federação PSOL-Rede já compõe a coligação “Brasil pela Esperança”. As análises no campo da esquerda sobre o anúncio público do apoio de Marina ao ex-presidente Lula convergem: é um jogo de ganha-ganha. Marina Silva traz para perto de Lula a marca da sua trajetória como mulher nortista, evangélica e uma das mais importantes lideranças socioambientais que este país já teve. Por outro lado, Marina ganha ainda mais visibilidade para o pleito à deputada federal em São Paulo, onde não está sua base eleitoral mais fiel. De quebra, como um efeito inesperado, mas bem-vindo para a campanha petista, isola ainda mais Ciro Gomes, que se vê cada vez mais pressionado pela possibilidade de abandono por parte de eleitores desejos de ver a fatura eleitoral liquidada já no primeiro turno.
No entanto, nem tudo são flores e convém moderar as expectativas. Em que pese o inegável fato de que a aliança com Marina dê a robustez que faltava ao compromisso ambiental do programa de governo do candidato Lula, é preciso saber se, na eventualidade de sua vitória, a política ambiental se subordinará, mais uma vez, aos imperativos da realpolitik, assim como aconteceu durante os governos petistas. Lembremos que também fazem parte do legado desses governos o gosto amargo da construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, que permanece intragável para as populações tradicionais afetadas, e a aprovação do Novo Código Florestal, para citarmos apenas dois fatos mais proeminentes.
Os setores que se beneficiaram enormemente nos últimos anos no governo Bolsonaro não deverão vender barato qualquer tentativa de repressão de ilícitos ou diminuição de suas obscenas margens de lucro e poderão pressionar de forma implacável o novo governo, que terá de ceder em alguns dos compromissos assumidos com a pauta ambiental. Em outras palavras, mesmo que, a curto prazo o ganho mútuo da reaproximação seja inegável, o mesmo não pode ser dito para uma perspectiva de médio ou longo prazo. Será preciso esperar a composição de forças no Congresso para que possamos ter mais elementos para um prognóstico político mais claro.
A reaproximação Lula-Marina é, sem dúvida, uma notícia auspiciosa, num ambiente eleitoral extremamente tensionado, e uma cartada política relevante para dois agentes políticos experimentados. Em termos programáticos, Lula se apresenta como um candidato que, de volta ao poder, poderá retomar o protagonismo internacional, destroçado pelo governo Bolsonaro, no campo da política climática, e encaminhar o país para uma vigorosa política ambiental que formate sobre novas bases a matriz energética e as cadeias produtivas do país. A questão é saber em que medida as forças político-econômicas que se beneficiam da degradação ambiental se organizarão para manter e até mesmo ampliar o impulso destruidor em voga em tempos bolsonaristas.
Assim, não é um exagero afirmar que as eleições de 2022 são o “momento da verdade” para o meio ambiente no Brasil. Estamos diante de duas trilhas que levam a dois futuros bastante distintos. O mundo inteiro olha com preocupação para o outubro vindouro, que pode ser a pá de cal nas esperanças de um planeta climaticamente equilibrado ou a retomada da esperança num futuro menos catastrófico. Que a aproximação Lula-Marina seja apenas o início de uma possível – e bem-vinda – mudança de rumos para a política ambiental em nosso país.
Helena Dolabela é pesquisadora de pós-doutorado no INCT IDDC. Graduada em Direito. Mestre em Ciência Política e Doutora em Antropologia pela UFMG.
Leonardo Barros Soares é professor do Departamento de Ciências Sociais da UFV e colaborador do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFPA. Mestre e doutor em Ciência Política pela UFMG, com período sanduíche na Université de Montréal. Coordenador do Grupo de Pesquisa Política e Povos Indígenas nas Américas.