por Leonardo Barros Soares
Leonardo Barros Soares
Publicado nos Ninjas
Em meio ao debate presidencial ocorrido no último dia 16, o candidato Lula afirmou: “vou criar um Ministério para os povos originários nesse país”. Numa campanha eleitoral marcada mais por debates sobre o passado – os legados dos dois governos Lula e do governo Bolsonaro – do que perspectivas de futuro, essa é uma proposta, de fato, novedosa. Trata-se de um aceno importante para os povos indígenas do Brasil, um segmento social historicamente vulnerável, em especial durante os governos Temer e sobretudo nos últimos quatro anos. A ideia já havia sido anunciada para os próprios indígenas durante o Acampamento Terra Livre, a reunião anual do movimento indígena em Brasília, em abril. Dado seu caráter de inovação institucional, neste artigo gostaria de examinar, brevemente, a proposta do candidato Lula, de modo a aprofundar o entendimento sobre as possíveis repercussões de tal sugestão na eventualidade de sua eleição no domingo.
Para começar, vale a pena entender a institucionalidade destinada ao atendimento dos povos indígenas que já existe. É possível que a maioria dos brasileiros conheça ou já tenha ouvido falar da Fundação Nacional do Índio (Funai). Trata-se da agência brasileira responsável pelo desenho, implementação e avaliação da política indigenista do Estado brasileiro desde 1968, quando substituiu o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), cujas origens remontam a 1917. Por política indigenista designamos, grosso modo, uma forma organizada de contato político entre povos indígenas e não-indígenas no âmbito das atividades desenvolvidas pelo Estado, sobretudo aquela que se refere ao reconhecimento administrativo de terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas do país. Esse é o “carro chefe” da política destinada a esse segmento populacional por motivos óbvios: a terra é o lastro material fundamental para a existência desses grupos enquanto tal.
Há uma série de decretos, portarias e leis que regulamentam o rito demarcatório no país cujas tecnicalidades não vem ao caso agora. O importante, para o argumento que desenvolvo aqui, é sabermos que a média de tempo para a conclusão do processo desde sua fase inicial – o estabelecimento de um grupo de peritos para a identificação do território – até o seu final, quando da inscrição da terra indígena no Serviço de Patrimônio da União, é de 15 anos. São vários os casos de demarcações que chegam até a 20 ou 30anos para serem concluídas. Isso é razoável? Claro que não. Isso não quer dizer que o processo demarcatório não seja eficaz – contar com 13% do território nacional como de ocupação tradicional indígena não deixa de ser um feito sui generis num país marcado pela extrema concentração fundiária e violência no campo. Mas, quer dizer, sim, que o processo é altamente ineficiente. E, para alterar isso, certamente são necessárias mudanças institucionais.
A criação de um Ministério resolveria a questão? Tenho minhas dúvidas. Em que pese o fato de que existem poucos estudos comparativos disponíveis abordando os diferentes desenhos institucionais das burocracias indigenistas em diversos países, a evidência disponível nos sugere cautela na análise.
Por um lado, parece-me que pouco importa o modelo institucional. Pode seja uma fundação, secretaria ou instituto voltados para a questão indígena, como nos casos do Brasil, Chile e Argentina, respectivamente. Pode ser também um (ou mais) ministério (s), como são os casos canadense, australiano e neozelandês. O que importa parece ser, no fim do dia, o peso político de suas burocracias e lideranças. Lembremos que, no Canadá, pelo menos dois primeiros-ministros atuaram, em suas carreiras políticas, nos órgãos indigenistas do país. Algo nem remotamente parecido já aconteceu por aqui. Presumindo-se que, no Brasil, o ministro/a ministra da pasta fosse um/uma indígena, a questão que se coloca é a seguinte: quem teria a força política para fazer frente à coalizão de interesses anti indígenas no Congresso?
Por outro lado, se a proposta significar a eliminação da instituição intermediária entre a Funai e a Presidência – hoje, no caso, o Ministério da Justiça – então é possível aventar a hipótese de que o tempo de demarcação possa, sim, diminuir. Pouco se sabe, de fato, em termos acadêmicos, do que se passa nos corredores da pasta quando se trata de decisões relativas aos povos indígenas e, consequentemente, temos pouca capacidade de sugerir melhorias no fluxo administrativo que poderiam impactar a eficiência do processo em tela. No entanto, do ponto de vista meramente formal, é presumível que, quantos menos forem os gargalos burocráticos, melhor.
É evidente que, do ponto de vista simbólico, a proposta tem peso. Alçar a questão indígena a um status ministerial significaria, de forma inédita, o reconhecimento de que os povos originários não se extinguiram nem se “integraram à comunhão nacional” – como pensavam muitos policymakers e intérpretes do Brasil durante o século XX. Eles demonstraram uma capacidade de resiliência, mobilização e articulação política impressionante. No entanto, é forçoso lembrar que só o simbolismo não basta para concretizar os anseios de justiça dessa população. Seria preciso dotar o Ministério de orçamento vigoroso, burocracia especializada, articulação política e capacidade de execução de seus objetivos. Caso contrário, os riscos de inação e ampliação da desconfiança para com a já desgastada política indigenista podem ser consideráveis e, talvez, inescapáveis.
Pessoalmente, penso que a proposta poderia ganhar mais peso se o eventual Ministério não se destinasse apenas aos povos indígenas, mas a todos os povos tradicionais do país, com especial destaque para os quilombolas. A atual divisão do processo de reconhecimento de comunidades entre o Incra e a Fundação Palmares parece ser simultaneamente ineficaz e ineficiente e sua centralização numa única instituição poderia fazê-lo avançar de forma significativa. Quatro anos de ampliação do direito dos quilombolas à ocupação tradicional de seus territórios reforçaria o estoque de terras coletivamente habitadas com foco na reprodução social e cultural desses grupos e na preservação ambiental.
Concluo apontando para o forte contraste entre as duas candidaturas presidenciais no que se refere aos povos indígenas. Se a proposta de Lula pode e deve ser debatida, ela não é, todavia, trivial. Trata-se de uma proposta construtiva, digna e respeitosa, que consagra a crescente relevância política dos povos indígenas no Brasil nas últimas décadas. Caso eleito, Lula poderá marcar de forma definitiva o presente e o futuro dos povos originários.
por Leonardo Barros Soares
Leonardo Barros Soares e Helena Dolabela
Publicado no Jota
Passado pouco mais de uma semana depois dos resultados do primeiro turno das eleições 2022, já é possível fazermos um balanço de seu significado para a pauta do meio ambiente. E aqui já adiantamos nosso diagnóstico: não é possível dourar a pílula – a nova composição do Congresso, das assembleias estaduais e o perfil político dos governadores eleitos, especialmente nos estados da Amazônia, não nos permite otimismo. As políticas públicas e todo o arcabouço legal e institucional em torno do meio ambiente no país saem severamente vulnerabilizadas do pleito.
Comecemos pela expressiva votação de Jair Bolsonaro. Na hora da verdade, quase metade dos votantes optou por apoiar um projeto político que atuou fortemente para o desmantelamento das salvaguardas constitucionais em torno do meio ambiente. Desmatamento recorde, monstruosas queimadas, expansão irrefreada do garimpo ilegal em terras indígenas, inação criminosa no episódio do derramamento de petróleo na costa do Nordeste não foram suficientes, aparentemente, para reduzir o apoio eleitoral ao atual presidente.
O voto para presidente tornou-se uma espécie de plebiscito sobre a vigência ou não da democracia no país. A temática ambiental ficou “escanteada” ao longo da campanha e, embora algumas pesquisas de opinião apontem a ampla adesão da população à proteção da floresta amazônica e a rejeição da exploração desenfreada dos bens naturais, estes elementos não parecem ter pesado na escolha dos cidadãos. Será uma tarefa futura da ciência política construir hipóteses para explicar esse fenômeno.
A nova composição da Câmara dos Deputados continuou falseando o chamado “teorema de Tiririca”, que vaticinava que “pior que está não fica”. Ficou, e muito. Uma avalanche conservadora, fruto da maior bancada que o dinheiro pode comprar, tem condições de se tornar ainda mais efetiva em seus desígnios de desregulamentação da política ambiental brasileira do que a legislatura 2019-2022. Destaque para a expressiva votação que o ex-ministro do Meio-Ambiente, Ricardo Salles, recebeu em São Paulo. Dada sua identificação radical com o projeto de terra arrasada do governo Bolsonaro, talvez não seja exagero dizer que essa forma de ver o mundo foi chancelada por boa parte do eleitorado nacional. Além disso, chamamos a atenção para a eleição de Silvia Waiãpi, a primeira indígena bolsonarista eleita pelo Amapá, que pode ser uma ferrenha defensora de projetos que visem desmontar o que ainda resta de proteção para as terras indígenas.
O Senado, por sua vez, tradicionalmente uma casa revisora mais restritiva e que exerce um importante papel de contenção em algumas propostas mais agressivas da Câmara dos Deputados, será composta por um perfil majoritariamente conservador, alinhado com a proposta anti ambiental de Bolsonaro. Isso significa dizer que, mesmo na hipótese de vitória de Lula, estão abertas as portas para a passagem de projetos de lei e emendas constitucionais que podem desfigurar, de forma irreversível, os direitos ambientais presentes na Carta Magna.
O panorama estadual tampouco é promissor. Em Minas Gerais, Zema, notório aliado de mineradoras no estado, foi reeleito já em primeiro turno. Em Roraima, Antonio Denarium, também reeleito em primeiro turno, continuará com sua política de incentivo ao garimpo ilegal em território Yanômami. A exceção ao combo direitista dos governadores eleitos nos estados da Amazônia é a reeleição de Helder Barbalho (MDB) no Pará que contempla um plano de governo com diretrizes e ações para a proteção ao meio ambiente e o desenvolvimento sustentável.
As assembleias legislativas, que devem decidir sobre questões ambientais estaduais, espelham, em larga medida, a divisão entre esquerda e direita do nível federal. A ver, em cada região, como ficará essa disputa já reconhecidamente desequilibrada em matéria ambiental e que prenuncia dias difíceis para as reservas naturais e os biomas sob responsabilidade dos estados.
É bem verdade que a eleição de uma representante do porte de Marina Silva para a Câmara Federal em São Paulo e de duas lideranças indígenas expressivas – Sônia Guajajara e Celia Xacriabá – deve ser comemorada por todos aqueles que desejam a reversão do atual quadro de descalabro ambiental em que nos encontramos. No entanto, não devemos nos enganar – a bancada pró-meio ambiente no Congresso é minoritária e deverá enfrentar dificuldades nos embates legislativos. O mais provável é que o alinhamento entre Arthur Lyra e as bancadas conservadoras seja reeditada, com efeitos potencialmente devastadores para o meio ambiente.
Reza a lenda que, certa feita, o presidente Fernando Henrique Cardoso teria respondido à pergunta de um repórter sobre como estava o Brasil dizendo que o país ia “de mal a menos mal”. Essa tirada sociológica, infelizmente, não é possível de ser repetida quando estamos falando do futuro da política ambiental, pois tudo parece estar indo de mal a pior. Só vamos ter certeza após o próximo dia 30 de outubro.
Agora é esperar pelo segundo turno presidencial. Se Bolsonaro ganhar, conforme já escrevemos em outros espaços, é difícil imaginar o grau de destruição do meio ambiente a que poderemos chegar. Não por acaso, a eleição presidencial de 2022 no Brasil é vista como decisiva para a questão climática por vários especialistas de todo o mundo, especialmente em função da aproximação acelerada do ponto de não retorno da devastação amazônica.
por Leonardo Barros Soares
Helena Dolabela e Leonardo Barros Soares
Publicado no Jota
A pauta indígena tem tido maior espaço na esfera pública junto a organismos multilaterais e a sociedade civil pela sua relação com a preservação da Amazônia. Lideranças indígenas têm mostrado ao mundo que efetivar os direitos territoriais de povos originários é condição necessária para conter o avanço do desmatamento e das queimadas na Região Amazônica. Um lado reforça o outro. A floresta de pé garante aos povos indígenas a manutenção dos seus modos de vida e existência, e ao mesmo tempo ajuda na regulação do clima na região e no planeta.
No entanto, a questão indígena não tem tido centralidade na disputa eleitoral para a Presidência da República. De certo, na última semana o assunto ganhou maior espaço com o “reencontro” entre Lula e Marina Silva. A retomada da demarcação de terras indígenas está dentro das propostas de avanço na política climático-ambiental trazidas pela recém aliada e que foi acolhida pelo grupo político do candidato petista. No mesmo dia, à noite, Lula foi perguntado pelo jornalista Willian Waack sobre a “reconciliação” e o que ele chamou de “exigências” como a “demarcação de terras indígenas” e “a demarcação de terras quilombolas” para ter o apoio, ainda em primeiro turno, da ex-senadora e ex-ministra do Meio Ambiente no Governo Lula. Lula respondeu que no seu governo foi criado o maior número de reservas ambientais e realizadas demarcações de terras indígenas. Logo foi interrompido pelo entrevistador que afirmou ser esse posicionamento que levava o agronegócio a ser um apoiador político-eleitoral de Bolsonaro.
Seria este “bate-bola”, que relaciona demarcação de terras indígenas e apoio eleitoral, uma chave analítica para explicar o porquê de a pauta indígena não ter centralidade nas campanhas eleitorais dos presidenciáveis? Poderíamos aventar a hipótese da existência de um entendimento partidário/ideológico de que a questão indígena é controversa no seio do eleitorado brasileiro, e que, portanto, um posicionamento a respeito poderia ter algum impacto eleitoral?
Pesquisa realizada pelo INCT-IDDC nos dias 4 a 16 de junho de 2022 intitulada “A Cara da Democracia”, com 2.538 entrevistas presenciais, em 201 cidades de todas as regiões do país veio contribuir para este debate. No conjunto de questões, duas estão relacionadas com meio ambiente e uma delas diretamente com a questão indígena. Mais especificamente, perguntava-se se o entrevistado era a favor ou contra a permissão para mineração nas terras indígenas. De um total de 2.538 entrevistas preseciais, 76,2% dos entrevistados afirmaram-se contra, 22,1% a favor e 1,6% responderam que depende. Dentre os contrários, o público feminino é superior ao masculino, respectivamente, 79,0% e 73,3%. Em relação à faixa etária, os entrevistados mais jovens (entre 16-17 anos) são aqueles que mais rejeitam a mineração em terras indígenas (83,3%); enquanto aqueles com idade mais avançada (acima de 60 anos) alcançam o percentual mais baixo (71,7%).
O nível de escolaridade apresenta uma tendência que vai de uma menor para uma maior rejeição à mineração em terras indígenas. Assim, entre os que se declaram analfabetos ou com primário incompleto/completo 27,6% são a favor da mineração. Já entre os que têm ensino superior incompleto/completo, o percentual é o mais baixo – 18,8%. Em relação ao nível de renda, os dois extremos, que vão de 0-2 salários mínimos a mais de 10 salários mínimos são aqueles que menos rejeitam a permissão de mineração em terras indígenas, respectivamente, 25,4% e 28,2%. Entre as outras faixas de renda intermediárias esses percentuais são menos variáveis e vão de 19% a 22%.
Há uma significativa diferença entre os entrevistados que declaram votos nos dois candidatos que estão à frente nas pesquisas, Lula e Bolsonaro. Embora nos dois casos a maioria seja contra a permissão de mineração em terras indígenas, entre os eleitores de Lula este percentual atinge 78,8% contra 66,2% no caso dos eleitores do Bolsonaro. Estes percentuais aumentam entre os de Ciro e Simone Tebet, respectivamente, 82,2 e 91,3 – este último sendo o maior índice de rejeição entre todo o conjunto de entrevistados. Em pergunta que considera o espectro político, verifica-se que a maior rejeição vai da esquerda para direita, sendo que os que se dizem de centro se aproximam de forma expressiva da esquerda. Na outra ponta, com uma distância bem mais significativa, estão aqueles que se dizem de direita. Assim, entre os entrevistados que se declaram de esquerda, são contra a mineração 82%, entre os de centro 79,7% e entre os de direita 65,9%.
Assim, os dados aqui apresentados nos levam a afirmar que a posição majoritária do eleitorado brasileiro é contrária a propostas de exploração em territórios indígenas. Note-se que, em pesquisa recente sobre o tema, o Instituto Socioambiental verificou percentuais semelhantes de rejeição. Mas, por quê, ainda assim, o tema parece ser controverso?
Uma outra chave explicativa, que tem relação com a primeira, mas aponta uma perspectiva mais histórica do que conjuntural, pode ser a questão fundiária. Herança, bem entendida, de um passado colonialista, que ainda subsiste como uma visão econômica-hegemônica que entende a terra como mercadoria e bem explorável com finalidade lucrativa. Esta é a visão que tem dominado a política tradicional devido ao poder econômico daqueles que usufruem da exploração dos bens naturais. A criação de reservas ambientais e a demarcação de terras indígenas retira este ativo do “mercado” na medida em que protege e valoriza o seu uso ecológico e social, garantindo também a reprodução física, cultural e espiritual dos povos indígenas e tradicionais.
Por isso, os setores extrativistas são os beneficiários do desmantelamento da política indigenista do país levado a cabo sob o governo Bolsonaro e dispõem de recursos para fazer sua mensagem ecoar forte nos meios políticos-institucionais e na grande mídia. A dinâmica fundiária nacional sempre foi extremamente concentradora de terras nas mãos de poucos proprietários, que hoje se vendem como “salvadores” não apenas da pátria, mas do planeta, em termos de segurança alimentar. Esses atores, com influência política secular, querem nos fazer crer que a maioria da população brasileira é contrária à demarcação de terras indígenas ou a favor da exploração econômica de seus territórios, o que simplesmente não encontra respaldo nos dados disponíveis.
Assim, será interessante acompanhar, no caso da eleição de Lula, como o ex-presidente irá equacionar os interesses do agronegócio e das mineradoras – que estão em peso com Bolsonaro – com os compromissos políticos assumidos junto a lideranças indígenas e a opinião da maioria da população brasileira contrária à mineração em terras indígenas. Em suma, a batalha pela efetivação cotidiana dos direitos dos povos indígenas brasileiros deverá ter maior ressonância e visibilidade político-institucional, mas continuará dramática nos próximos anos.
Helena Dolabela é pesquisadora de pós-doutorado no INCT IDDC. Graduada em Direito. Mestre em Ciência Política e Doutora em Antropologia pela UFMG.
Leonardo Barros Soares é professor do Departamento de Ciências Sociais da UFV e colaborador do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFPA. Mestre e doutor em Ciência Política pela UFMG, com período sanduíche na Université de Montréal. Coordenador do Grupo de Pesquisa Política e Povos Indígenas nas Américas.
por Leonardo Barros Soares
Helena Dolabela e Leonardo Barros Soares
Publicado no Mídia Ninja
Na semana passada foi selado o apoio público de Marina Silva (Rede) ao candidato Lula (PT), ainda em primeiro turno. No escritório da campanha política do presidenciável, em São Paulo, Marina participou de uma coletiva de imprensa ao lado de Lula, Gleisi Hoffman, Aloízio Mercadante e Geraldo Alckmin. Com um discurso baseado na conjuntura político-eleitoral nacional, mas também nos desafios climáticos globais, ela afirmou existir ali um “reencontro político e programático”. O propósito de fundo declarado por Marina é enfrentar “a ameaça das ameaças, a ameaça à democracia”, para ela representada pela candidatura à reeleição de Jair Bolsonaro. Talvez não seja exagero denominá-lo como o evento mais importante para a pauta ambiental durante a campanha presidencial de 2022. O tema, que foi recorrente durante os quase quatro anos do governo Bolsonaro, não apresenta a mesma centralidade nos debates entre os outros candidatos.
Marina Silva tem a sua história política construída na vivência como seringueira e liderança sindical rural na defesa dos direitos dos povos tradicionais e da floresta amazônica. Grande amiga de Chico Mendes, assassinado em 1988, lutou com ele pela criação e consolidação da pauta socioambiental também nacionalmente. Tem conhecimento de causa, de luta e de direitos. Como poucos políticos que alcançam tamanha projeção nacional – foi vereadora, deputada estadual, senadora pelo Acre por duas vezes, ministra do Meio Ambiente no Governo Lula e candidata à Presidência da República por três vezes – nunca se afastou do socioambientalismo como movimento e direito.
Neste momento crucial da história democrática do país, Marina Silva e seu grupo político decidiram pautar uma agenda climático-ambiental avançada e com propostas claras baseada em um tripé: criação de uma Autoridade Nacional de Segurança Climática, a demarcação de terras indígenas e a criação de unidades de conservação. Mostra, portanto, que tem uma visão institucional e operacional sobre a pauta da mudança climática transversal a várias políticas e ministérios. Além disso, dá visibilidade a outras duas pautas incomodamente marginais neste pleito eleitoral até então, mas diretamente relacionadas com a regulação do clima: a retomada da demarcação de terras indígenas e a ampliação das unidades de conservação. Não à toa, Lula afirmou que as propostas de Marina eram “ousadas”.
No mesmo dia, Lula foi entrevistado pela CNN e fez jus à aliança. Perguntado pelo jornalista William Waack sobre a “reconciliação” com Marina e a existência de “contrapartidas”, Lula falou sobre direitos de povos e comunidades tradicionais. Respondeu com firmeza sobre a sua “opção” de efetivar o direito à demarcação de terras para indígenas e quilombolas, lembrando o seu passado de compromisso com a criação de reservas ambientais e direitos territoriais para povos tradicionais. Assim, se apresenta, hoje, como a candidatura à Presidência da República que tem maior envergadura programática para enfrentar e impulsionar o que foi nomeado por Marina como um “imperativo ético para dar conta do grave problema da mudança climática”.
A aproximação tem contornos políticos para além do espectro partidário na medida em que a federação PSOL-Rede já compõe a coligação “Brasil pela Esperança”. As análises no campo da esquerda sobre o anúncio público do apoio de Marina ao ex-presidente Lula convergem: é um jogo de ganha-ganha. Marina Silva traz para perto de Lula a marca da sua trajetória como mulher nortista, evangélica e uma das mais importantes lideranças socioambientais que este país já teve. Por outro lado, Marina ganha ainda mais visibilidade para o pleito à deputada federal em São Paulo, onde não está sua base eleitoral mais fiel. De quebra, como um efeito inesperado, mas bem-vindo para a campanha petista, isola ainda mais Ciro Gomes, que se vê cada vez mais pressionado pela possibilidade de abandono por parte de eleitores desejos de ver a fatura eleitoral liquidada já no primeiro turno.
No entanto, nem tudo são flores e convém moderar as expectativas. Em que pese o inegável fato de que a aliança com Marina dê a robustez que faltava ao compromisso ambiental do programa de governo do candidato Lula, é preciso saber se, na eventualidade de sua vitória, a política ambiental se subordinará, mais uma vez, aos imperativos da realpolitik, assim como aconteceu durante os governos petistas. Lembremos que também fazem parte do legado desses governos o gosto amargo da construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, que permanece intragável para as populações tradicionais afetadas, e a aprovação do Novo Código Florestal, para citarmos apenas dois fatos mais proeminentes.
Os setores que se beneficiaram enormemente nos últimos anos no governo Bolsonaro não deverão vender barato qualquer tentativa de repressão de ilícitos ou diminuição de suas obscenas margens de lucro e poderão pressionar de forma implacável o novo governo, que terá de ceder em alguns dos compromissos assumidos com a pauta ambiental. Em outras palavras, mesmo que, a curto prazo o ganho mútuo da reaproximação seja inegável, o mesmo não pode ser dito para uma perspectiva de médio ou longo prazo. Será preciso esperar a composição de forças no Congresso para que possamos ter mais elementos para um prognóstico político mais claro.
A reaproximação Lula-Marina é, sem dúvida, uma notícia auspiciosa, num ambiente eleitoral extremamente tensionado, e uma cartada política relevante para dois agentes políticos experimentados. Em termos programáticos, Lula se apresenta como um candidato que, de volta ao poder, poderá retomar o protagonismo internacional, destroçado pelo governo Bolsonaro, no campo da política climática, e encaminhar o país para uma vigorosa política ambiental que formate sobre novas bases a matriz energética e as cadeias produtivas do país. A questão é saber em que medida as forças político-econômicas que se beneficiam da degradação ambiental se organizarão para manter e até mesmo ampliar o impulso destruidor em voga em tempos bolsonaristas.
Assim, não é um exagero afirmar que as eleições de 2022 são o “momento da verdade” para o meio ambiente no Brasil. Estamos diante de duas trilhas que levam a dois futuros bastante distintos. O mundo inteiro olha com preocupação para o outubro vindouro, que pode ser a pá de cal nas esperanças de um planeta climaticamente equilibrado ou a retomada da esperança num futuro menos catastrófico. Que a aproximação Lula-Marina seja apenas o início de uma possível – e bem-vinda – mudança de rumos para a política ambiental em nosso país.
Helena Dolabela é pesquisadora de pós-doutorado no INCT IDDC. Graduada em Direito. Mestre em Ciência Política e Doutora em Antropologia pela UFMG.
Leonardo Barros Soares é professor do Departamento de Ciências Sociais da UFV e colaborador do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFPA. Mestre e doutor em Ciência Política pela UFMG, com período sanduíche na Université de Montréal. Coordenador do Grupo de Pesquisa Política e Povos Indígenas nas Américas.
por Leonardo Barros Soares
Há menos de um mês para as eleições de 2022 a floresta amazônica registra seu recorde de focos de incêndio nos últimos 12 anos. É um fato que não pode ser encarado com surpresa por ninguém. O governo de Jair Bolsonaro, desde seu primeiro dia, dedicou-se diuturnamente a desmantelar o sistema de proteção normativa e institucional do meio ambiente brasileiro inaugurado pela Constituição de 1988. A famosa “boiada”, tristemente tornada célebre pela fala do então ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles durante uma reunião ministerial, passou e não tardou em deixar evidente seu rastro de destruição.
Não é necessário puxar muito pela memória para perceber que o tema do meio ambiente esteve presente em vários momentos durante os anos do mandato de Jair Bolsonaro. Quem não se lembra do desdém com que o governo recebeu a notícia da suspensão dos repasses ao Fundo Amazônia por parte do governo Norueguês? Ou das queimadas devastadoras no pantanal mato-grossense? Ou, ainda, da insinuação, por um lado, de que as queimadas na Amazônia seriam “fake news” por que a floresta é úmida ou, por outro, de que seriam os próprios ribeirinhos os responsáveis pela devastação? Os exemplos multiplicam-se e não conseguiríamos citar todos eles aqui.
O saldo de quase quatro anos de governo Bolsonaro para o meio ambiente é, portanto, de terra arrasada, literalmente. Desmantelamento dos órgãos de controle e proteção do meio ambiente, violência contra povos tradicionais e ativistas ambientais, expansão desenfreada de atividades ilícitas na região amazônica em que convergiram garimpo ilegal, narcotráfico, milícias, grilagem de terras, desmatamento, poluição dos rios e do oceano, pesca ilegal e toda sorte de crimes. A Amazônia Legal, que já não era conhecida pela força do império da lei, tornou-se um verdadeiro “faroeste verde”. Tudo isso sob os olhos do natimorto Conselho da Amazônia, dos governos estaduais e das forças de segurança nacional.
Do ponto de vista da competição pelo Palácio do Planalto e seus efeitos sobre a questão em tela, dois cenários distintos surgem no horizonte. Na hipótese da eleição de Lula, é possível antever a retomada de uma certa institucionalidade na Amazônia Legal com vistas a tentar reduzir os atuais recordes de desmatamento e queimadas na região, assim como uma maior repressão às atividades do narcogarimpo. Caso Bolsonaro seja reeleito, no entanto, talvez tenhamos de nos despedir da região amazônica como bioma da forma como conhecemos. A devastação, que já é profunda, intensa e extensa, ganhará um impulso inédito com a eventual sanção, nas urnas, da atual tendência de savanização da região. Além disso, Bolsonaro avançará para a última fronteira ainda não completamente explorada pelos agentes econômicos: a liberação de mineração em terras indígenas, com potenciais consequências genocidas para as populações tradicionais.
No que tange à disputa estadual, o panorama político nos estados da Amazônia Legal não é mais animador. Do ponto de vista das oligarquias estaduais que dominam a política local, Bolsonaro significou a liberação de todos os “entraves” – leia-se legislação ambiental e instituições de controle – existentes que impediam, ou pelo menos freavam, o avanço indiscriminado sobre a floresta. Para elas, o governo Bolsonaro representou quatro anos de lucros extraordinários e impunidade máxima. A flexibilização das leis ambientais e o incentivo ao desmatamento beneficiaram muita gente poderosa e com dinheiro. É evidente que desejam perpetuar essa situação indefinidamente e, por isso, apoiam Bolsonaro.
Dois elementos novos chamam a atenção dos analistas e devem ser objeto de estudos nos próximos anos. Por um lado, é forçoso reconhecer que o pleito registrará um grande número de candidaturas de “resistência”. Nesse grupo estão incluídos ativistas ambientais, lideranças indígenas, cientistas e agentes dos quadros da burocracia da política ambiental do Estado brasileiro que se apresentam no processo eleitoral como um sinal de reação da sociedade civil ao panorama catastrófico da política de meio ambiente do governo Bolsonaro a que já fizemos alusão.
Por outro lado, aparentemente, a devastação da Amazônia ganhou uma dinâmica doméstica própria. As sanções internacionais, ainda muito tímidas, não foram capazes de sensibilizar os estados para agirem energicamente contra os ilícitos ambientais. A crise ambiental na região é profunda, multicausal e não será resolvida com bala de prata. É preciso uma concertação de fatores e atores políticos internacionais, nacionais, estaduais e locais atuando em sinergia para que a situação mude.
O próximo governo – caso Bolsonaro não seja reeleito – vai se deparar com o desafio de reconstruir o Ibama e o ICMBio, frear a sanha desmatadora, retomar o controle da região amazônica, voltar a fazer parte dos pactos climáticos e superar a péssima reputação internacional angariada pelo Brasil nos últimos anos.
O que está em jogo nessas eleições, portanto, não é, de modo algum trivial: a manutenção da imensa biodiversidade dos biomas brasileiros, a regularidade de nosso regime de chuvas e, portanto, o abastecimento de água para consumo e a produção agrícola de todo o país, a soberania sobre a região amazônica e, globalmente, a própria estabilidade do clima planetário. Não é pouca coisa e, infelizmente, o cenário que se desenha para o futuro não é animador.
Leonardo Barros Soares é professor do Departamento de Ciências Sociais da UFV (Universidade Federal de Viçosa) e colaborador do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFPA (Universidade Federal do Pará). Mestre e doutor em ciência política pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), com período sanduíche na Université de Montréal (Canadá). Coordenador do Grupo de Pesquisa Política e Povos Indígenas nas Américas.