Com que roupa eu vou? O papel da tática bolsonarista da hegemonia verde e amarela nas ruas

Com que roupa eu vou? O papel da tática bolsonarista da hegemonia verde e amarela nas ruas

Mariana Borges Martins da Silva 

Assim como nas eleições de 2018, a desinformação vem de novo sendo considerada a principal tática de campanha da extrema direita brasileira. Porém, há uma outra tática eleitoral deste grupo que tem recebido menor atenção no debate público e no campo progressista, mas que pode ter um papel determinante no contexto dessa eleição acirrada: a projeção de força eleitoral.

A análise das redes sociais e de grupos de whatsapp bolsonaristas revela que, ao lado da divulgação de notícias falsas sobre Lula, a projeção de força eleitoral por meio de imagens de hegemonia do campo bolsonarista nas ruas é parte constitutiva do portfólio de campanha da extrema direita brasileira. E para construir uma impressão de hegemonia nas ruas, a campanha de Bolsonaro se utiliza de três táticas: exagera o apoio popular à Bolsonaro, desacredita o apoio popular à Lula e faz ameaças de violência para suprimir manifestações públicas de apoio a Lula.

Para criar imagens de hegemonia nas ruas, a campanha de Bolsonaro investe desde muito cedo e de forma constante na produção de imagens que mostram Bolsonaro rodeado de uma multidão de apoiadores. No imaginário bolsonarista, cotidianamente divulgado em seus grupos de Whatsapp e em outras redes sociais, as imagens de grandes multidões que saem às ruas para saudar Bolsonaro seriam a prova cabal de que ele é o líder com maior capacidade de mobilização e apoio entre as massas. 

São essas mesmas imagens que são usadas por bolsonaristas para desacreditar as pesquisas eleitorais, nas quais Lula segue na frente de Bolsonaro. Na lógica sensorial que rege a projeção de força por meio de imagens, não é possível que um candidato que mobilize tamanha multidão por onde anda não esteja em primeiro lugar nas pesquisas. A mesma lógica foi utilizada no primeiro turno para desacreditar as urnas eletrônicas antecipando qualquer resultado que não mostrasse Bolsonaro vitorioso. Ao longo da campanha, Bolsonaro e seus aliados repetiram esse discurso à exaustão: “Em qualquer lugar que eu vá no Brasil, […], a aceitação é simplesmente excepcional, não tem como a gente não ganhar em primeiro turno”, disse Bolsonaro quando esteve em Londres para o enterro da rainha Elizabeth.

Ainda que o campo bolsonarista venha dando menos ênfase à produção de imagens de multidões de verde e amarelo no segundo turno diante da força demonstrada nas urnas, ele não deixou de se preocupar em passar a imagem de hegemonia nas ruas. Tanto que, recentemente, Bolsonaro pediu que eleitores fossem votar de verde e amarelo e permanecessem nos locais de votação até a apuração do resultado. Com isso, Bolsonaro visa incentivar seus eleitores a criarem uma massa de verde e amarelo em cada seção eleitoral criando, assim, para todos os eleitores no dia da votação uma experiência visual e táctil de hegemonia bolsonarista.

As narrativas do campo bolsonarista que jogam dúvidas sobre a confiabilidade tanto das pesquisas eleitorais quanto das urnas eletrônicas também ajudam na segunda tática que Bolsonaro utiliza para construir sua imagem de hegemonia: a de desqualificar o apoio popular de Lula. E novamente aqui o campo bolsonarista usa imagens de rua para embasar sua narrativa de que Lula não é um líder popular. Nas redes sociais, bolsonaristas divulgam constantemente fotos e vídeos que mostram eventos a favor de Lula esvaziados, acusam a campanha de Lula de manipular fotos para o evento parecer mais cheio ou de pagar pessoas para irem aos seus eventos.

Essas são táticas explícitas de projeção de força política. Há, porém, táticas indiretas que ajudam o campo bolsonarista a criar entre os eleitores a sensação de que ele é majoritário. Uma delas é a ameaça velada ou explícita de violência política. Pesquisas de opinião pública mostram que eleitores de Lula tem muito mais medo de violência política do que os eleitores de Bolsonaro. O maior medo de violência política entre os eleitores de Lula é acompanhado de relatos desses eleitores optando por não revelar seu voto publicamente e evitando o uso de adereços associados ao campo lulista. Ao tornar o apoio a Lula quase que um apoio clandestino e invisível em meios sociais e cidades nas quais supostamente o bolsonarismo é dominante, o medo de violência política silencia e apaga o campo lulista. Ele torna impossível uma quebra da hegemonia visual do bolsonarismo e reforça ainda mais a impressão de sua hegemonia, mesmo onde ele seja porventura minoritário. O reforço dessa suposta hegemonia bolsonarista diante do silêncio do campo adversário é semelhante ao fenômeno descrito por Elisabeth Noelle-Neumann como Espiral do Silêncio. Ela se refere à tendência daqueles que se percebem como tendo uma opinião minoritária silenciar, fortalecendo, portanto, a percepção de que o outro campo é supostamente majoritário.  

A criação de uma impressão de hegemonia bolsonarista nas ruas é real e não se deve subestimar os dividendos eleitorais que ela pode gerar. O efeito é real porque a hegemonia do verde e amarelo nas ruas, seja pelas bandeiras nas sacadas ou pela visualização constante de imagens de Bolsonaro em meio a multidões, oferecem aos eleitores uma experiência sensorial da força de Bolsonaro, que pode ser sentida e registrada pelo eleitor de forma muito mais significativa do que a racionalidade dos números de uma pesquisa eleitoral.

Depoimentos tanto de eleitores de Lula quanto de Bolsonaro revelando surpresa com o resultado das urnas no primeiro turno ilustram como a hegemonia visual do verde e amarelo nas cidades cria nos eleitores a forte impressão de dominância do campo bolsonarista. Logo após a apuração dos votos, era ainda frequente nos grupos de whatsapp bolsonaristas a narrativa de que houve fraude nas urnas, uma vez que Bolsonaro não havia ganhado com larga vantagem já no primeiro turno. E, novamente, o argumento usado era de que diante da força do verde e amarelo nas ruas, não era possível que Bolsonaro estivesse atrás de Lula. 

Em um áudio de um grupo de WhatsApp de apoio ao candidato bolsonarista em uma cidade do interior da Bahia onde Lula teve 73%, uma eleitora expressou sua incredulidade nos poucos votos que Bolsonaro teve na sua cidade diante do grande número de pessoas de amarelo que ela viu em seu bairro: “Gente não dá nem pra acreditar, porque aqui o que a gente via era as pessoas chegando de roupa amarela, […] se todos que estavam de verde e amarelo votassem, aqui mesmo tinha estourado de votos no bairro da Urbis.” Do outro lado do país, em Chapecó (SC), um eleitor de Lula dizia à Folha de São Paulo estar surpreso por Lula ter conquistado 36% dos votos em sua cidade, pois pensava que lá “era quase todo mundo eleitor de Bolsonaro”.

Ainda que longe de serem representativos, esses dois depoimentos revelam que a dominação visual de Bolsonaro nas cidades tem o potencial de gerar a impressão de hegemonia do bolsonarismo para além de apoiadores fiéis de Bolsonaro e até mesmo em locais onde o bolsonarismo é numericamente minoritário. E, por que isso importa? Isso importa porque o sucesso em produzir a impressão de hegemonia pode gerar dividendos eleitorais para Bolsonaro, cruciais, sobretudo, em uma eleição disputada em que os dois candidatos têm altos índices de rejeição.

A aparente consolidação das intenções de voto apresentada nas pesquisas eleitorais pode gerar a falsa impressão de que os votos estão consolidados. Como sabemos, em uma eleição em que os dois candidatos têm altos índices de rejeição, uma parcela do apoio de um candidato vem da rejeição ao outro. Porém, é um erro considerar que todo voto anti-Lula ou anti-Bolsonaro esteja consolidado na mesma intensidade que o voto dos apoiadores entusiastas de Lula ou de Bolsonaro. É possível que para essa parte dos eleitores que não são fidelizados a nenhum dos lados e que tenha restrições aos dois candidatos, a opção de voto seja mais volátil e suscetível de ser moldada pela campanha. 

Uma evidência de que há uma parcela significativa de eleitores cujo voto é mais volátil é a quantidade de eleitores que decidiram seu voto de última hora. Pesquisa do Datafolha realizada após o primeiro turno indica que pelo menos 10% dos eleitores confessam ter feito sua decisão sobre o voto na véspera ou no dia da eleição e outros 10% há apenas uma ou duas semanas antes do dia da eleição. Em uma eleição em que os dois candidatos têm alto grau de conhecimento entre os eleitores, a tomada de decisão de último momento não se dá porque os eleitores ainda não conheciam os candidatos, mas porque, diante do alto grau de rejeição dos dois lados, parte dos eleitores não identifica um critério significativo para levá-lo a apoiar um candidato ou rejeitar completamente outro.

Há uma ampla gama de estudos em diversas áreas, do consumo ao comportamento político, que demonstra a tendência dos indivíduos adaptarem o seu comportamento para seguir a maioria. Há diversos motivos que os levam a isso. Um deles é que em situações de incerteza, quando há dificuldades para escolher um lado, o comportamento da maioria serve como um atalho mental para os indivíduos tomarem decisões. E é aí que o sucesso do campo bolsonarista de criar impressões de hegemonia nas ruas e redes sociais pode ser crucial para Bolsonaro angariar o voto desses eleitores voláteis. Como discutido, a extrema direita parece entender a importância de criar a impressão de hegemonia nas ruas a ponto disso ser parte constitutiva de suas táticas eleitorais. Ainda que não esteja totalmente ausente de seu portfólio, a campanha de Lula ainda cambaleia sobre sua estratégia de demonstração de força política. Um dia antes da eleição no primeiro turno, por exemplo, a campanha de Lula lançou um vídeo em suas redes sociais convocando os eleitores às urnas, mas enfatizando que não importava a roupa que vestiriam. Já no segundo turno, a senadora Simone Tebet pede para a campanha de Lula substituir o vermelho pelo branco para diminuir a associação da campanha com o PT. Ainda que compreensíveis diante do medo de violência política e da frente ampla que a candidatura de Lula representa, tais ações não ajudam o campo lulista a sair da Espiral do Silêncio e, eventualmente, a quebrar a sensação de hegemonia visual do verde e amarelo. Para buscar o voto volátil neste fim de campanha, o campo lulista deveria considerar a importância de contrapor nas ruas a aparente hegemonia do verde e amarelo com o seu vermelho.

 

Mariana Borges Martins da Silva é pesquisadora de pós-doutorado no Nuffield College, Universidade de Oxford. Mariana é Ph.D em Ciências Políticas pela Universidade de Northwestern, nos Estados Unidos. 

Por que o Auxílio Brasil turbinado não ajudou Bolsonaro entre os mais pobres? Mariana Borges Martins da Silva

Por que o Auxílio Brasil turbinado não ajudou Bolsonaro entre os mais pobres? Mariana Borges Martins da Silva

Mariana Borges Martins da Silva

Publicado nos Ninjas

Quando o Auxílio Brasil no valor de R$ 600,00 começou a ser pago em agosto deste ano, a expectativa da campanha de Bolsonaro era que sua versão “turbinada” melhoraria o desempenho do presidente nas pesquisas eleitorais, sobretudo dentre a parcela mais vulnerável da população. Já passamos de meados de setembro e as pesquisas parecem indicar que o efeito do auxílio, se é que houve algum, foi mínimo. Segundo dados da Genial/Quaest, desde o início de agosto até o levantamento mais recente, realizado no dia 21 de setembro, Bolsonaro manteve os mesmos 29% das intenções de voto dentre os eleitores de baixa renda. 

Por que o auxílio de R$ 600 não alavancou a popularidade de Bolsonaro dentre os mais pobres? Uma das hipóteses é a perda do poder de compra do auxílio diante da inflação, sobretudo em relação ao preço dos alimentos. Levantamento feito pela Folha de São Paulo indica que o benefício turbinado deveria chegar ao menos a R$732,12 para manter o mesmo poder de compra de 2020, quando o auxílio emergencial foi estabelecido em razão da pandemia. Ainda assim, mesmo defasado, o auxílio de R$ 600 representa um aumento substancial se comparado com a média recebida pelos beneficiários do Bolsa Família, programa de transferência de renda implementado durante os governos do ex-presidente Lula, adversário de Bolsonaro. Fosse o valor dos auxílios de renda tão determinante na definição do voto dos mais pobres, seria difícil explicar por que o atual presidente aparece tão distante de Lula nas pesquisas eleitorais. 

Conclui-se, portanto, que a ausência de efeito do auxílio “turbinado” na popularidade de Bolsonaro dentre os mais vulneráveis não é simples consequência da diminuição do poder de compra. Na realidade, duas razões se complementam na explicação desse fato. A primeira é que, apesar de importantes, as políticas de transferência de renda não são o único parâmetro que os eleitores de mais pobres aplicam para avaliar se um político governou para os estratos vulneráveis. A segunda razão é que os setores populares associam o auxílio com a compra de votos. A percepção de que o aumento tem intenção eleitoreira consolida dentre os eleitores a imagem de que Bolsonaro não é um político verdadeiramente atento a seus interesses.

Desde os tempos dos governos Lula e Dilma, é comum a visão de que a vantagem dos candidatos petistas dentre os eleitores de baixa renda e nordestinos era resultado do Bolsa Família. No entanto, ao contrário do que o senso comum em relação às classes populares pressupõe, os eleitores mais pobres, assim como os eleitores dos demais segmentos de renda, usam uma miríade de experiências cotidianas para julgarem se um governante de fato trabalhou para os mais vulneráveis.

Em conversas com os eleitores de baixa renda do Sertão baiano para minha pesquisa etnográfica, percebi que era recorrente a avaliação, mesmo entre aqueles que diziam não serem eleitores de Lula, de que o ex-Presidente havia “olhado para a pobreza”. O Bolsa Família aparecia apenas como um fator, dentre outros, citados para exemplificar como Lula havia trabalhado pelos mais pobres. Além da transferência de renda, os eleitores mencionavam tanto políticas pelas quais haviam sido diretamente beneficiados, tais como o programa habitacional Minha Casa Minha Vida e programas de acesso a serviços básicos como água e luz, quanto políticas que indiretamente afetavam sua realidade cotidiana. Eram comuns comparações quanto ao poder de compra, acesso a bens de consumo, ou até mesmo a regularidade da merenda escolar em suas comunidades.

Durante o governo Bolsonaro, por sua vez, os eleitores de baixa renda não têm outros exemplos palpáveis em seu dia-a-dia de melhoria de sua condição de vida para além do Auxílio Brasil, sobretudo diante do aumento do custo de vida e do pessimismo com a situação econômica do país nos últimos anos. Visto por este ângulo, não é surpresa que o aumento temporário do auxílio seja insuficiente para que os mais pobres enxerguem Bolsonaro como alguém que tenha de fato “olhado para a pobreza” em seu governo. 

Quanto ao prazo de validade do aumento, trata-se de fator que reforça, dentre as classes populares, a imagem de Bolsonaro como um governante desatento aos mais pobres. Entrevistas com eleitores e sondagens de opinião pública mostram que beneficiários do auxílio encaram o aumento com uma tentativa de manipulação de seus votos. Eleitores de baixa renda classificam como compra de voto aqueles favores e benefícios distribuídos ocasionalmente pelos políticos durante o período eleitoral, sendo a temporalidade fator determinante na percepção popular de que o político tem intenção eleitoreira. Quando início e fim do pagamento coincidem com o período da campanha eleitoral, é quase impossível desfazer a associação estabelecida pelos eleitores entre aumento do auxílio e compra de votos.

Mas, se os eleitores mais pobres fossem de fato suscetíveis a serem “comprados” pelas políticas de transferência de renda da vez, qual seria o problema de eles associarem o aumento do benefício com a compra de votos? O problema é que, ao contrário do que tradicionalmente se pressupõe, eleitores de baixa renda percebem negativamente a compra de voto, exatamente porque tomam como certo que candidatos que compram voto abandonam os eleitores após as eleições. Com o reajuste com hora marcada para acabar, Bolsonaro, sem querer, colou a sua imagem a de políticos chamados popularmente de “políticos de copa do mundo”, que “só ajudam de quatro em quatro anos”. 

O pífio desempenho do auxílio “turbinado” na popularidade de Bolsonaro dentre os setores populares deixa, portanto, duas importantes lições para analistas, políticos, e opinião pública. Em primeiro lugar, é preciso superar a ideia preconceituosa de que o comportamento eleitoral dos mais pobres é movido apenas pela política de transferência de renda da vez. Assim como os eleitores das demais faixas de renda, os eleitores mais vulneráveis fazem uma leitura programática das disputas eleitorais que, ainda que feita com um vocabulário popular, passa por uma avaliação multifacetada do desempenho dos governantes. Em segundo lugar, é preciso refutar a ideia de que eleitores de baixa renda sejam tão carentes a ponto de estarem suscetíveis a terem seu voto determinado por benesses distribuídas durante o período eleitoral. Os mais pobres não apenas sabem identificar as tentativas de manipulação de seu voto, como também sabem tecer duras críticas aos políticos que agem como se pudessem trocar a autonomia política dos eleitores por esmolas. Essa leitura crítica e programática da política pelos setores populares não nasceu nessas eleições, ela sempre esteve presente. Quem sabe agora, com o fracasso do auxílio de R$ 600 para a campanha de Bolsonaro, nossos ouvidos fiquem mais atentos a escutá-la.

Mariana Borges Martins da Silva é pesquisadora de pós-doutorado no Nuffield College, Universidade de Oxford. Mariana é Ph.D em Ciências Políticas pela Universidade de Northwestern, nos Estados Unidos.