por Mariana Dutra
Daniel Menezes
É sintomático que os principais lances da eleição estadual no Rio Grande do Norte tenham ocorrido no momento em que as elites políticas agiam para acomodar interesses e compor os grupos de disputa. Depois da formação das chapas, o pleito se tornou em parte previsível e enfadonho.
A governadora do PT, Fátima Bezerra, articulou para retirar os principais nomes da oposição, oferecendo para o seu oponente em 2018, Carlos Eduardo Alves (PDT), o apoio pela sua candidatura ao senado. Sempre pontuando na segunda posição conforme todas as pesquisas, Carlos Eduardo era a esperança dos adversários de Fátima para impedir que o partido dos trabalhadores não permanecesse no poder a partir de 2023. A incumbente soube insuflar o medo do ex-prefeito de Natal de compor mais uma vez com o campo bolsonarista numa ambiência em que o presidente Jair Bolsonaro apresenta no RN forte rejeição.
Sem Carlos Eduardo, os adversários da governadora, agora liderados pelo postulante ao senado e ex-ministro do desenvolvimento regional, Rogério Marinho (PL), se viram obrigados a lançar o ex-vice governador Fábio Dantas (SD), da rejeitada gestão do antecessor Robinson Faria. A lógica se inverteu – Dantas ingressou para completar a chapa que canaliza recursos e energia para fazer Marinho senador. Fátima Bezerra ainda atraiu o enraizado MDB no interior do estado da tradicional Família Alves, alojando o deputado federal Walter Alves na condição de pleiteante a seu vice; e facilitando acordo com o presidente da Assembleia Legislativa, Ezequiel Ferreira de Souza, pela manutenção da parceria político-administrativa entre os dois. Ezequiel comanda o PSDB, que conta com 12 dos 24 deputados estaduais com mandato.
O ex-governador Robinson Faria, antes no PSD e hoje no PL, representa um retrovisor confortável para a governadora. Ele deixou quatro folhas salariais dos servidores parcialmente abertas e, em que pese ter prometido ser o governador da segurança na campanha de 2014, a violência no estado explodiu durante a sua administração. Ao tentar a reeleição em 2018, Robinson acabou apenas na terceira posição, com 11,85% dos votos válidos. Fátima Bezerra tem justamente como discurso fundamental a quitação dos salários dos servidores, a normalização das contas públicas e a queda dos índices de insegurança no RN.
A pesquisa do Instituto IPEC veiculada pela Rede Globo aponta para uma possível resolução do pleito já em primeiro turno em favor de Fátima Bezerra. Conforme o levantamento que ouviu 800 pessoas entre os dias 6 e 8 de setembro, com margem de erro de três pontos percentuais para mais ou para menos, considerando um nível de confiança de 95% (registro RN-05706/2022), Fátima Bezerra tem 49% dos votos, o Capitão Styvenson 20%, e Fábio Dantas 8%. Os demais seis postulantes somam 7%. A vitória de Fátima representaria a reversão de uma tendência – a última governadora a se reeleger no RN foi Vilma de Faria, em 2006.
Apesar da oposição organizada ter se aglutinado em torno de Fábio Dantas, é o Capitão Styvenson que ocupa a segunda posição, de acordo com sondagem feita pelo IPEC e demais institutos. Styvenson é senador pelo Podemos e chegou a esta condição a partir de fama que construiu como policial “linha dura” à frente das blitz de trânsito “Lei Seca” do RN. Ele se diz não político, recusou o fundo eleitoral, não procurou apoio na classe política estadual e não usa o tempo de TV e Rádio a que tem direito. Sua comunicação se restringe ao uso das redes sociais, em que discursos e lives dividem o espaço no Instagram com fotos do seu cotidiano. Sem foco em um oponente específico – ele confronta a governadora, o oposicionista Fábio Dantas, prefeitos de situação e de oposição –, sua plataforma é principalmente do combate à corrupção e do desperdício do dinheiro público.
Diante de uma disputa central carente de novidades, coube à competição pelo senado o acirramento em busca da vaga disponível a que o estado tem direito em 2022. Ainda de acordo com a já mencionada pesquisa IPEC, Carlos Eduardo lidera com 27%, Rogério Marinho o segue com 21%, e o deputado federal pelo PSB, Rafael Motta, apresenta 14%. Os demais sete postulantes somam 10%.
O dito campo lulista congrega duas candidaturas – a de Carlos Eduardo e Rafael Motta. Em que pese ter votado pelo impeachment da então presidente Dilma Rousseff, Motta passou a atuar fazendo forte oposição ao governo de Jair Bolsonaro e alinhado com Fátima. Jovem, o deputado federal ancora seu discurso no ataque ao apoio concedido por Carlos Eduardo ao presidente Bolsonaro, em 2018, e tenta explorar o papel como relator da reforma trabalhista desempenhado por Rogério Marinho, então deputado federal. O PT não ataca Motta de maneira direta, mas apela para um voto útil em Carlos Eduardo em prol da derrota do representante do bolsonarismo no RN, Rogério Marinho.
Como já enfatizado, a candidatura ao senado de Marinho representa o principal projeto da oposição estadual bolsonarista no Rio Grande do Norte. Como ministro do desenvolvimento regional, Marinho estabeleceu uma agenda de envio de emendas para os prefeitos potiguares. Ele se diz o candidato das águas. Isto porque, segundo ele, parte da transposição do Rio São Francisco chegou através da gestão de Jair Bolsonaro, do qual era o ministro da pasta responsável pela obra. Entretanto, apesar da inegável maior quantidade de recursos de estrutura de campanha, apoios da classe política e das elites estaduais, o ex-ministro segue na segunda posição.
Digno de nota ainda é a competição pelas oito cadeiras de deputado federal a que o Rio Grande do Norte tem direito. Além de cinco dos atuais parlamentares da bancada lutarem pela reeleição, o pleito ainda conta com a participação de três ex-governadores em busca de um assento na casa do povo, prefeitos de cidades importantes do RN, os presidentes das duas principais câmaras municipais do estado e outras lideranças políticas locais de relevo. O temor de não se reeleger federal levou, por exemplo, Rafael Motta a tentar “cair para cima” em disputa pelo senado.
O RN é um estado em que o PT vence a competição presidencial desde 2002. Em âmbito estadual, a onda antipolítica que varreu o país em 2018 enfraqueceu as famílias Alves e Maia, posicionando o ex-governador, ex-presidente do senado e ex-ministro Garibaldi Alves numa vexatória quarta posição em sua tentativa de se manter no senado e gerando a acachapante derrota do ex-governador e ex-senador Agripino Maia, que tentou uma vaga na câmara federal. Ao que tudo indica, o PT manterá sua hegemonia através das vitórias estaduais de Fátima Bezerra e de Lula em terras potiguares. Resta a dúvida se a base bolsonarista conseguirá fazer um representante de peso através de Rogério Marinho. Um indicativo do que está por vir é que a guerra cultural, que já não fez morada confortável em 2018 por aqui, ao contrário do restante do país, e caminha para se encastelar em algumas representações proporcionais.
Daniel Menezes é doutor em Ciências Sociais (UFRN), professor e pesquisador do Departamento de Ciências Sociais da UFRN.
por Mariana Dutra
Priscila D. Carvalho e Mariana Dutra
Publicado na Mídia Ninja
O engajamento e posicionamento político de brasileiros no exterior voltou à agenda eleitoral nesta semana. Na terça-feira, 20 de setembro, enquanto Jair Bolsonaro visitava Nova York para a Assembleia-Geral da ONU, manifestantes brasileiros fizeram ações de alta visibilidade na cidade de Nova York. Projetaram imagens do rosto de Jair Bolsonaro com a palavra vergonha escrita em quatro idiomas no prédio da ONU. Enquanto isso, no centro da cidade, as frases “tchutchuca do centrão” e “broxonaro” foram projetadas no famoso prédio do Empire State Building. Estas imagens se alastraram nas redes, sendo compartilhadas até pelo ator hollywoodiano Mark Ruffalo.
Há outros casos de articulações prévias sendo reativadas em períodos eleitorais – ou quando novos temas relevantes para o grupo entram na agenda nacional. O grupo de Nova York, Defend Democracy in Brazil, ativo desde de 2015 no contexto de organização de ativistas no exterior contra o impedimento da presidenta Dilma Rousseff, atualmente conta com quase 19 mil seguidores nas redes sociais. Em outras cidades estadunidenses, alguns grupos que também vinham articulados desde 2015 incorporaram-se aos “Comitês Populares de Luta”. Os comitês são estratégia da própria campanha de Lula para mobilização de base com apoio de parceiros históricos como movimentos sociais e que superaram as fronteiras nacionais.
Em Genebra, os protestos começaram em 11 de setembro, com uma bicicletada em apoio a Luiz Inácio Lula da Silva. A agenda segue a cada domingo, até o dia 25 no Bains des Pâquis, onde acontece uma feira – ou mercado de pulgas. Organizadoras do evento prepararam também placas para casas e para bicicletas. Não faltaram toalhas do Lula: os objetos viajam rápido nesses tempos. O grupo que organiza os protestos de Genebra identifica-se como Comitê Lula Livre e reúne-se desde 2018.
A estratégia de protestos no exterior vem sendo usada também por entusiastas de Jair Bolsonaro. Em setembro, seus apoiadores fizeram motociatas em cidades como Miami, reproduzindo um dos principais formatos de manifestação no solo nacional. Ali, as atividades aconteceram no dia 5 de setembro, e o cenário era parecido com o das manifestações vistas no dia 7, no Brasil: verde e amarelo dominava a cena e apoiadores cantaram o hino nacional. O protesto foi registrado no YouTube.
Apoiadores do candidato à reeleição também mantém grupos fechados no facebook, tais como Brasileiros de direita nos Estados Unidos e Brasileiros de direita no Exterior. Organizam-se também presencialmente. Realizaram o evento Congresso Conservador Brasileiros – US em junho, na região metropolitana da cidade de Boston, nos EUA. O objetivo, segundo organizadores, foi divulgar ideias de direita e promover um dia de imersão em valores e pautas conservadoras.
Os enfrentamentos entre os diferentes grupos políticos são visíveis no exterior. Na semana passada, um grupo expressivo de apoiadores de Bolsonaro esteve sob a sacada da embaixada do Brasil em Londres, onde ouviu o discurso do presidente com fortes reações de apoio. Ao mesmo tempo, ambientalistas brasileiros e não brasileiros protestavam contra o presidente, na capital da Inglaterra.
O tema é importante pois, de acordo com as últimas estatísticas do Itamaraty , entre 2015 e 2020 o número de brasileiros residentes no exterior aumentou em 55%. São aproximadamente 4,2 milhões de brasileiros morando fora do país, dos quais quase 700 mil estão aptos a votar nestas eleições.. A comunidade emigrada é territorialmente dispersa, mas permanece unida e até mesmo engajada em questões nacionais, por afinidades ideológicas e políticas.
A presença de protestos relacionados às eleições em outros países reforça a ideia de que a ação coletiva pode ocorrer além das fronteiras e, ainda assim, manter-se conectada à política doméstica. O teórico Kym Barry, ao analisar o fenômeno da cidadania e território, observa que “a migração dissocia cidadania e residência, rompendo com as concepções organizadas de Estados-Nação como entidades territoriais limitadas com populações fixas”.
A imagem de um bumerangue foi usada para explicar como funciona a pressão internacional para temas nacionais. Grupos da sociedade civil sem acesso aos governos nacionais buscam aliados internacionais – organizações do sistema ONU, outras ONGs – para pressionar governos e identificado no influente trabalho das pesquisadoras Margareth Keck e Kathryn Sikkink, ainda nos anos 2000.
As manifestações e protestos eleitorais nem sempre chegam a angariar parceiros internacionais, mas podem ganhar atenção da mídia internacional ou, quando são bem conectados em redes sociais, chegar a influenciar brasileiros – aqui ou no exterior.
Nesta eleição, quando a adesão ao nacionalismo é um dos temas em disputa, é curioso que as disputas nacionais sejam, também elas, afetadas pelo aumento da circulação de pessoas para além das fronteiras nacionais. A globalização se apresenta nas dinâmicas eleitorais por meio dos eleitores.
Priscila Delgado de Carvalho é pequisadora no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (pós-doutorado) e pesquisadora associada do INCT Instituto da Democracia. Investiga a atuação de atores coletivos em processos democráticos, com ênfase na transnacionalização de movimentos sociais e sindicatos rurais, e percepções de cidadãos sobre autoritarismo e democracia. Doutora em Ciência Política pela UFMG.
Mariana Dutra é Mestre em Políticas Públicas pela FLACSO e graduada em Ciências Sociais pela UFPR. Atua como Pesquisadora & Gestora de Projetos em organizações sociais nacionais e internacionais nas áreas de Cidadania, Políticas Públicas e Migrações. Está Diretora Executiva do Instituto Diáspora Brasil.
por Mariana Dutra
Mariana Dutra, Alvaro Lima e Rachel Callai Bragatto
Publicado no Congresso em Foco
Os imigrantes brasileiros têm direito ao voto sob as mesmas regras e condições que os brasileiros residentes no Brasil. Nas eleições de 2022, são mais de 697 mil eleitores brasileiros vivendo no exterior que estão aptos a votar, representando 0,45% do eleitorado total. Um número maior do que o colégio eleitoral de alguns estados brasileiros, como Amapá (550.687), Acre (588.443) e Rondônia (366.240) – conforme publicação do Tribunal Superior Eleitoral.
O conjunto desses imigrantes está organizado na chamda zona eleitoral ZZ. Nos últimos quatro anos, ela cresceu de 500.727 em 2018 para 697.078 em 2022, um aumento de 39,21%. A zona eleitoral ZZ é transterritorial e engloba 181 cidades estrangeiras. As mesas eleitorais no exterior são abertas quando a repartição consular da região registra no mínimo 30 eleitores. Nas seções com até 99 eleitores, o voto é feito por meio de cédula impressa e urna de lona. A cada grupo de cem a 800 eleitores, uma urna eletrônica é instalada sob a jurisdição do Tribunal Regional Eleitoral do Distrito Federal (TRE-DF) com apoio da rede consular de cada país.
O crescimento no colégio eleitoral de brasileiros residentes fora do país acompanha um aumento no número de brasileiros que têm deixado o Brasil para residir em outros países também. Número que mais do que dobrou desde 2015. O último relatório sobre as comunidades brasileiras no exterior, publicado em julho de 2021, indica que são cerca de 4,2 milhões de imigrantes brasileiros vivendo em mais de 150 países.
Este conjunto de cidadãos brasileiros vivendo fora do território nacional, chamado de diáspora brasileira, mantém vínculos, em maior ou menor grau, com a vida nacional. São vínculos sociais, envio de remessas financeiras, propagação da cultura, empresas e produtos brasileiros, participação política por meio do comparecimento eleitoral e de organizações comunitárias.
Apesar disso, brasileiros que moram no exterior não contam com nenhum tipo de representação parlamentar específica, aos moldes do que ocorre em outros países, como a Itália, na qual os imigrantes que vivem no exterior elegem representantes específicos no parlamento (o colégio dos eleitores residentes no exterior vota nos cargos executivos e em candidatos específicos no parlamento que são elegíveis apenas por essa comunidade). Além disso, o acesso ao voto é relativamente difícil devido a ausência ou baixo número de sessões eleitorais em algumas regiões. Por fim, a comunidade imigrante recebe pouca ou nenhuma atenção das campanhas dos partidos políticos.
Os eleitores brasileiros no exterior se deparam com dificuldades específicas para participar do processo eleitoral nacional. São questões que só atingem a diáspora e, portanto, precisam ser tratadas levando em consideração suas especificidades. A começar pela questão elementar no processo político democrático: a garantia do direito ao voto. A comunidade imigrante na maioria de seu território não tem acesso às seções eleitorais. Votar pode requerer um deslocamento longo tornando o voto presencial quase impossível.
Este não é um problema exclusivo apenas da diáspora brasileira, porém outras diásporas já o enfrentaram e criaram soluções. Atualmente cerca de 150 países permitem múltiplas formas de voto para seus cidadãos que vivem no exterior, como Alemanha, África do Sul, Angola Bélgica, Austrália, Japão, Holanda e Reino Unido.
O crescimento exponencial da diáspora brasileira coloca em questão conceitos chave do Estado e da cidadania, que têm se ressignificado na contemporaneidade devido às transformações das condições materiais de vida. A globalização e a revolução nos meios de transporte e comunicação mudaram profundamente as dinâmicas de mobilidade humana. Os conceitos de espaço e tempo passaram a ter novos sentidos, criando outras possibilidades de existir e coexistir. Pessoas e comunidades em movimento são sujeitos ativos neste processo criativo, coexistindo lá e cá, no país de origem e no país de destino. As chamadas imigrações transnacionais são comunidades que têm vida social, econômica, cultural e política ativa em mais de um território geográfico, simultaneamente.
Este é um dos desafios das democracias representativas contemporâneas. Como garantir o sufrágio universal frente aos crescentes deslocamentos populacionais que rompem a conexão território-cidadão? Como, no caso dos brasileiros residentes no exterior, alargar o direito ao voto para além de presidente e vice-presidente?
O transnacionalismo é um fenômeno das migrações contemporâneas teorizado por Paggy Levitt – professora de sociologia da Wellesley College e da Universidade de Harvard. Fenômeno do qual a diáspora brasileira é parte. Esta teoria explica, entre outras coisas, como estas pessoas vivendo fora do território geográfico nacional nutrem motivações suficientes para participar do processo político e eleitoral em seus países natais. Essas motivações têm suas origens categorizadas por Levitt como de (1) natureza econômica: relacionados com a preocupação com os investimentos financeiros, bem estar da família, planos de um futuro retorno para o país de origem; (2) institucional: no caso brasileiro, a obrigatoriedade do voto traz penalidades administrativas para a vida civil que, para quem mora no exterior, são muito difíceis de resolver; (3) política: são os mobilizadores ideológicos do voto e da participação política, como por exemplo, a identificação partidária.
O pertencimento a sociedades democráticas é possível para sujeitos portadores de direitos. Ou seja, pela garantia dos direitos civis, sociais e políticos – clássica concepção de cidadania. Ainda que seja importante assegurar tais direitos nas normas, isso não é o suficiente, como já apontava Carole Pateman referindo-se aos direitos sociais e políticos das mulheres. É preciso assegurá-los na prática. Nesse sentido, se faz necessária uma crítica reforma eleitoral de forma a viabilizar a participação política dos emigrantes brasileiros no espírito da Constituição Cidadã de 1988.
Álvaro Lima é é diretor de Pesquisa da Boston Planning and Development Agency (BPDA), Doutor em Economia Política pela New School for Social Research, e fundador do Instituto Diáspora Brasil.
Mariana Dutra é bolsista do INCT/ IDDC, diretora do Instituto Diáspora Brasil, socióloga pela UFPR e mestra em Políticas Públicas pela FLACSO.
Rachel Callai Bragatto é pesquisadora em estágio pós-doutoral no INCT IDDC. Jornalista, mestre e doutora em Sociologia pela UFPR, foi visiting researcher na University of California – Los Angeles, sob a supervisão de Carole Pateman. Investiga temas como democracia e internet, participação política e cibercultura.
por Mariana Dutra
Thiago Silame*
Diogo Tourino de Sousa**
Publicado na Carta Capital
As eleições de 2018 foram marcadas por discursos antipolítica e antissistema. Elas mobilizaram do descontentamento com a política, sentimento difundido em boa parte da população brasileira, contra as elites políticas tradicionais. A opinião pública encontrava-se à época saturada com informações negativas sobre as atividades dos representantes políticos, em decorrência do “sucesso” da Operação Lava-Jato que até aquele momento – antes do conjunto de reportagens que colocaram em xeque a credibilidade da operação – aparecia como responsável por desvelar relações pouco republicanas entranhadas na gestão pública, com incontornável atuação de empresários.
Os reflexos da onda antipolítica se fizeram perceber não apenas na disputa nacional, mas igualmente nas eleições nos estados. Diversos outsiders, mais ou menos íntimos das disputas políticas, obtiveram êxito nas urnas. Nessa direção, a região Sudeste, onde encontram-se os maiores colégios eleitorais do país, testemunhou a ascensão de dois nomes até então desconhecidos do mundo da política, além do sucesso eleitoral de um “cristão novo” do cenário partidário. João Dória (PSDB) em São Paulo, Wilson Witzel (então no PSC) no Rio de Janeiro, e Romeu Zema (NOVO) em Minas Gerais, foram eleitos para os cargos de governador dos seus estados, coroando a surpresa de parte expressiva dos analistas ocupados com o processo. O descontentamento geral com a política foi traduzido, ainda, na alta renovação observada na Câmara dos Deputados, no Senado e nas Assembleias Legislativas por todo o país, conformando um cenário que fulminou, ao menos em parte, quadros tradicionais da política nacional.
Em linhas gerais, 2018 trouxe para a disputa um repertório de argumentos estranhos às disputas anteriores, unindo nomes como Dória, Zema e Witzel por meio da defesa da boa gestão dos negócios públicos, com enganosa analogia à forma como são conduzidas as empresas privadas, da mobilização da agenda moral, da defesa das “conquistas” da Lava-Jato, ou mesmo da sanha punitivista que criminaliza a política como um todo, tópicos presentes na agenda de Jair Bolsonaro e que compunham o humor geral da população em relação aos políticos tradicionais. Não por acaso, colar a própria imagem à de Bolsonaro em 2018 figurou como estratégia bem-sucedida na busca por votos, por vezes alçando desconhecidos ao favoritismo em poucas semanas.
O cenário para as eleições de 2022 apresenta, contudo, um contexto distinto, no qual o sentimento negativo contra os políticos parece ter cessado ou mesmo regredido. As eleições municipais de 2020 já sinalizaram nessa direção. Muitos fatores concorrem para explicar a mudança, mas a forma como os representantes políticos se portaram diante da pandemia de Covid-19, aliada ao despreparo evidente de muitos dos outsiders eleitos em 2018 na condução da administração pública, ou mesmo à recorrência de práticas então aventadas como “superadas” pelos novos nomes – especial atenção para o tema da corrupção – parecem ter sido fatores decisivos para o restabelecimento de parte do prestígio perdido pelos políticos. Fato é que se em 2018 não ser político compunha um critério poderoso nas campanhas, esses improváveis vitoriosos foram, por caminhos distintos, fracassando nos quatro anos que nos separam do pleito presente.
Apenas para nos determos nos governos estaduais do Sudeste, no Rio de Janeiro Witzel sofreu um processo de impeachment na Assembleia Legislativa do estado, motivado por denúncias acerca de um esquema “amador” de corrupção já no âmbito do enfrentamento do novo coronavírus. Em São Paulo, Dória, que nunca escondeu suas pretensões de disputar a Presidência da República, renunciou ao governo do estado, mas não conseguiu se cacifar junto ao seu partido como um provável nome para o pleito nacional em 2022, mesmo tendo capitaneado, ainda que com doses generosas de vaidade, a produção da primeira vacina a ser utilizada no país no enfrentamento da pandemia.
Em Minas Gerais, Romeu Zema, porém, figura como um ex-outsider que disputará as eleições de 2022. Saindo de um relativo anonimato – talvez contornado pelo seu sobrenome, presente em lojas de departamento e postos de gasolina pelo interior do estado –, azarão em 2018, que declarou voto em Bolsonaro em cena nada comum num debate televisivo, o governador tentará a reeleição, agora como favorito. Nas sondagens de opinião até o momento, seu principal oponente, o ex-prefeito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil (PSD), figura em segundo lugar e não apresenta tendência de subida.
O que fez do improvável Zema de 2018, considerado um azarão frente aos políticos tradicionais que disputavam aquele pleito – o então governador Fernando Pimentel (PT), candidato à reeleição, sequer passou para o segundo turno – favorito em 2022? Em outras palavras, se o sentimento antipolítica e antissistema, colado ao sucesso do bolsonarismo, ajudam a explicar a vitória de Zema em 2018, o que poderia explicar seu favoritismo em 2022, num contexto agora marcado pelo “retorno” da política tradicional?
Candidatos à reeleição conservam, via de regra, vantagens comparativas frente os desafiantes. O atual ocupante do executivo estadual não precisa se descompatibilizar do cargo e ao mesmo tempo detém o controle da máquina pública, bem como a iniciativa do orçamento, para realizar ações e implementar políticas. Por sua vez, o desafiante Kalil, no exemplo em questão, precisou se descompatibilizar do cargo de prefeito de Belo Horizonte para disputar a eleição para governador. O governador conta, ainda, com uma vantagem poderosa em se tratando de campanhas com curto espaço de tempo em estados com um expressivo número de municípios. Ainda que suscetível de maior rejeição, Zema é mais conhecido em todo o estado de Minas Gerais, ao passo que seu desafiante conserva uma base política na região metropolitana de Belo Horizonte, mas ainda é pouco conhecido no restante do estado.
Esses fatos isolados, porém, não esgotam a explicação para o favoritismo de Zema. Ao longo dos últimos anos, o governador foi capaz, mesmo sem o traquejo próprio do mundo da política, de construir uma rede de apoio envolvendo prefeitos e vereadores. Rede esta amparada em boa medida pela injeção de recursos nos municípios do interior. Importa lembrar que o estado recebeu uma expressiva indenização da empresa Vale do Rio Doce, em função dos desastres ambientais ocorridos logo no início da gestão de Zema. A relativa saúde financeira permitiu, por sua vez, o avanço de práticas de grande valor eleitoral, como a manutenção do salário do funcionalismo público em dia, por exemplo.
Segundo dados da pesquisa da Quaest, Zema é avaliado positivamente em todas as faixas etárias e em todos os níveis de escolaridade, sendo que as maiores diferenças se dão entre eleitores de 35 a 59 anos e aqueles com curso superior. A avaliação do governo também é positiva em todas as faixas de renda, sendo a menor diferença apresentada entre aqueles que recebem até dois salários mínimos. Ele também é bem avaliado na capital, região metropolitana e no interior do estado, mas a maior diferença encontra-se no interior. Zema tem boa entrada no eleitorado de classe média e classe média alta.
É curioso notar como substantivamente o governador não alterou sua imagem frente à opinião pública, ainda que no presente ele paute sua candidatura a partir de dois afastamentos decisivos quando comparado ao que operou em 2018. Por um lado, Zema não endossa mais a postura de “CEO” dos negócios públicos, assimilando o susto sofrido logo nos primeiros meses do governo, quando a interrupção do andamento da máquina pública o fez perceber que a gestão do estado dista dos negócios privados. A aceitação do jogo legislativo, por meio dos(as) deputados(as) estaduais e o aproveitamento da janela de oportunidades que se abriu com a relativa saúde financeira, permitiu com que o governador ganhasse pontos na comparação com as gestões anteriores.
Por outro lado, ainda que Zema pessoalmente aparente guardar proximidades ideológicas e de agenda com o presidente Bolsonaro, é interessante observar seu surpreendente pragmatismo na disputa presente. Isso porque ele tem se distanciado tacitamente de Bolsonaro, na sincera torcida para que o pleito se encerre no primeiro turno, o que o desobrigaria de manifestar predileções num eventual segundo turno. Caso este ocorra, a nacionalização da disputa, com Kalil aliado ao ex-presidente Lula, pode complicar uma eleição aparentemente tranquila para o atual governador. Até agora, porém, Zema que figurou em 2018 como um sucesso inesperado, em 2022 apresenta-se como favorito num cenário quase de inércia.
Thiago Rodrigues Silame é doutor em Ciência Política pela UFMG, professor da Universidade Federal de Alfenas e pesquisador do Centro de Estudos Legislativos da UFMG (CEL-DCP).
Diogo Tourino de Sousa é doutor em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro/IESP e professor da Universidade Federal de Juiz de Fora e um dos editores da Revista Escuta.