por Priscila Carvalho
No esforço de manter a dianteira após o primeiro turno, a campanha de Lula mudou a estratégia com relação a um dos pontos sensíveis da eleição: a relação entre valores, religião e política. O Observatório das Eleições tem acompanhado postagens de atores ligados às duas campanhas nas redes sociais, onde essa mudança é bastante clara.
Até o início de outubro, postagens no Twitter relacionadas ao tema da religião representavam 18% do total de publicações dos perfis bolsonaristas acompanhados. Entre os atores do campo lulista, não passavam de 10%. No período de 3 a 20 de outubro, no entanto, essa porcentagem sobe para 20%, superando a do campo bolsonarista. No YouTube vemos dados similares: a comparação entre os temas dos vídeos publicados no primeiro e no segundo turno mostra que religião foi o tema que mais cresceu entre atores do campo lulista.
A mudança da estratégia petista vai além de simplesmente falar mais sobre o tema, no entanto. A ampliação das menções à religião pode ser entendida a partir de dois movimentos distintos. Primeiro, a contraofensiva, desencadeada em boa medida por fora dos perfis oficiais da campanha, que associa Bolsonaro à maçonaria, à intolerância religiosa e até ao satanismo, virando assim a mesa da narrativa bolsonarista. Em paralelo, há também um movimento de aproximação a setores religiosos, em especial evangélicos, cujo maior símbolo é uma carta divulgada no dia 19 de outubro.
Logo no início do segundo turno, vídeos sobre Bolsonaro e a maçonaria repercutiram tanto entre apoiadores de Lula, como entre atores do outro campo. O episódio foi um raro momento da campanha em que o campo progressista obrigou o adversário a defender-se sobre um tema que envolvia religião. E foi o primeiro de vários que se sucederam.
A partir da semana do 12 de outubro, vídeos feitos por apoiadores de Lula circularam amplamente, mostrando fiéis bolsonaristas indignados, interrompendo, aos gritos, missas do dia de Nossa Senhora Aparecida, hostilizando outros fiéis ou questionando homilias. Um desses vídeos mostra, por exemplo, a reação à menção a Marielle Franco por um padre. Aos berros, duas mulheres interrompem a missa para dizer que o padre não poderia mencionar o nome de uma homossexual. Também bradam notícias falsas sobre Marielle, já fartamente desmentidas. Uma internauta comentou “mais uma apoiadora de Bolsonaro interrompendo uma missa e hostilizando o padre. Eles querem destruir a Igreja Católica”. É o feitiço voltando-se contra o feiticeiro, porque até então a única narrativa anti-Igreja era uma narrativa anti-Lula.
Um olhar detalhado para o conteúdo das mensagens ratifica a mudança. Algumas das que foram mais reencaminhadas antes do primeiro turno tendiam a questionar a aproximação entre evangélicos e Bolsonaro, com textos como: “saudade quando os evangélicos queriam que a gente aceitasse Jesus e não o Bolsonaro”. No segundo turno, as mais retuitadas no campo de atores acompanhado pelo Observatório das Eleições são de ataque e de construção de contra-narrativas: “EITA! Vídeo de Bolsonaro na maçonaria vem à tona. A sociedade discreta tem como membros Carla Zambelli, Jorginho Mello (…)”. E, ainda: “se Lula ganhar, Igrejas NÃO serão fechadas. Se Bolsonaro continuar, Universidades SERÃO fechadas.”
Neste segundo movimento, pela primeira vez nesta campanha, viu-se o campo lulista demonstrar sua força no campo das discussões morais, ou religiosas.
Além disso – e esse é um aspecto que foi menos comentado -, ficou visível a existência de divisões ideológicas também entre os católicos. Há tempos sabemos que evangélicos, católicos e outros grupos religiosos são internamente heterogêneos e que também têm muitas divergências entre si. Isso, porém, vinha passando ao largo dos debates eleitorais de 2022. Texto de cientistas políticos publicado recentemente no Nexo apontava para isso ao discutir possibilidades de diálogo da campanha petista com evangélicos. Desde a fundação do PT, também se sabe que o partido tem raízes nos setores progressistas da Igreja Católica.
Menos do que uma contraposição entre uma ou outra religião, é o conjunto de valores no interior de cada uma delas que está em disputa. E o PT, para se manter na liderança, precisa superar a percepção construída durante a campanha de que pode ser ameaça aos valores conservadores. Daí o segundo movimento.
A divulgação da “Carta Pública ao Povo Evangélico” em 19 de outubro abre mais um capítulo dos esforços petistas para angariar apoios entre cristãos, ou pelo menos neutralizar o discurso bolsonarista. No primeiro turno já houve, como se sabe, aproximação com lideranças evangélicas e a preparação de materiais de campanha voltados especificamente a este público. Até ali, a principal tendência era disputar interpretações de textos bíblicos – a disputa entre armas e amor, autodefesa e o valor da vida, por exemplo.
Comparada com alguns desses materiais, nos quais a questão dos direitos e do papel do Estado para garantir direitos era o tom central, a nova carta faz um movimento mais intenso de aproximação das pautas conservadoras. Primeiro, reafirma o compromisso com a liberdade de culto e de religião, depois posiciona-se diretamente sobre questões de valores com ênfase nas famílias e jovens. Menciona políticas públicas apenas na parte final do texto, e também ali a ênfase é no lar: a casa para a família, com referência ao programa Minha Casa Minha Vida.
Desloca-se o foco da atuação do Estado na proteção das populações mais vulneráveis para a possibilidade de cada pessoa – ou família – “adquirir necessários e suficientes meios para viver dignamente por seu trabalho, sem ter que depender da ajuda do Estado”. Há aí uma visível mudança de tom.
Detectar esses movimentos, porém, não significa dizer que terão impactos nas urnas. Aliás, essa segunda virada pode complicar a vida dos petistas com seus apoiadores de primeira hora, em caso de eleição, mas a campanha parece confiar que a ampliação do espaço para outras pautas não vai minar a adesão de seus apoiadores mais estáveis.
Do outro lado, a campanha bolsonarista precisou pela primeira vez atuar reativamente no campo dos valores, sem deixar de apostar suas fichas na mobilização da pauta conservadora. A questão, agora, é qual dos dois conjuntos vai convencer os poucos indecisos e os muitos ausentes a tomar partido.
Marisa von Bülow é professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília e doutora em ciência política pela Universidade Johns Hopkins (EUA). Suas publicações tratam do tema do ativismo digital, das estratégias digitais eleitorais e das relações entre sociedade e Estado.
Priscila Delgado de Carvalho é pós-doutoranda no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (Inova Juntos) e pesquisadora do INCT-IDDC (Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação). Investiga a atuação de atores coletivos em processos democráticos, com ênfase na transnacionalização de movimentos sociais e sindicatos rurais e percepções de cidadãos sobre autoritarismo e democracia. Doutora em ciência política pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).
por Priscila Carvalho
Priscila Delgado de Carvalho
Publicado no Congresso em Foco
Mulheres, evangélicos e agronegócio já eram atores coletivos esperados para a campanha eleitoral de 2022. Indígenas e sem terra ganharam visibilidade ao longo do pleito, nos debates sobre reforma agrária e meio ambiente, e também ao eleger candidatos próprios. Resultados do primeiro turno acabaram por evidenciar os grupos armamentistas, que em 2022 articulam estratégias de apoio a candidatos de peso com mobilizações de rua e angariaram visibilidade na imprensa.
Grupos armamentistas são conhecidos pelo lobby em defesa da flexibilização da política de armas. Apresentar demandas diretamente aos parlamentares é uma das principais atividades de grupos de pressão que se organizam para defender seus interesses. Em geral, a estratégia de contato direto é usada por quem tem maior poder econômico, que se traduz em acesso mais direto a parlamentares via relações pessoais ou assessorias contratadas.
Desde 2018, grupos pró-armas ganharam visibilidade com a facilitação do acesso a armas para caçadores, atiradores e colecionadores (CACs) e pelo expressivo apoio da família Bolsonaro, mas em 2022 foram além dessa conexão.
Uma das atividades, em 2022, foi a divulgação de uma lista de candidaturas alinhadas com a agenda armamentista pela principal associação da área, a Proarmas. A lista – que não está mais no ar – chegou a 88 nomes, incluindo mais de trinta deputados estaduais e federais, dez senadores e seis governadores – estes últimos, todos do PL. Havia ali tanto candidatos diretamente ligados às organizações pró-armas, como outros sabidamente apoiadores de suas plataformas. O sucesso eleitoral de pessoas apoiadas pelo movimento, mas não diretamente associadas a ele, acabou sendo divulgado como vitória dos armamentistas – ao que parece, então, a estratégia da lista deu certo para gerar visibilidade sobre o tema na imprensa.
A estratégia de campanha gerou também resultados eleitorais diretos. Marcos Pollon, fundador do Proarmas e candidato pelo PL, foi eleito o deputado federal mais votado em Mato Grosso do Sul. Da lista, foram eleitos ainda sete senadores, 16 deputados federais e dez deputados estaduais. Cinco candidatos disputam o segundo turno, segundo levantamento da Folha de S. Paulo, que menciona também o financiamento às campanhas por proprietários de clubes de tiros e lojas de armas. Até aqui, foram três estratégias: candidatos diretos, visibilidade a apoiadores da causa e do próprio movimento e financiamento de campanhas.
Há uma quarta: o Proarmas, de Pollon, também foi às ruas, defendendo uso de armas sob o enquadramento da liberdade. Em julho, o III Encontro Proarmas reuniu centenas de apoiadores em Frente à Catedral de Brasília para uma manifestação, com carro de som e uma performance, difundindo seu enquadramento de que a defesa das armas é defesa da liberdade. Ativistas posicionaram-se a distâncias idênticas, formando quadrados no gramado da Esplanada, em frente a uma bandeira verde-amarela. Dois meses depois, nas comemorações do 7 de setembro, integraram ato pró-Bolsonaro na Esplanada dos Ministérios.
A mobilização de apoiadores no espaço público, para dar visibilidade à sua agenda e mostrar que tem apoio numérico relevante, é a principal estratégia de movimentos sociais, desde o século 19. O uso dessas estratégias por organizações e associações da direita e extrema-direita cresceu no Brasil a partir de 2013, alterando a configuração da sociedade civil no Brasil, com a chegada de temas antes inexistentes ou, pelo menos, pouco visíveis.
A eleição de candidatos simpáticos à flexibilização da legislação sobre porte e uso de armas não é novidade. A bancada da segurança pública – também conhecida como bancada da bala – cresceu paulatinamente no Congresso: de 210 deputados em 2011, para 306 na legislatura 2019-2023. A expectativa é que, em 2023, siga crescendo: o número de policiais e militares eleitos na Câmara aumentou 35,7% em 2022, segundo levantamento da CNN: dez candidaturas além das 28 do pleito anterior, a maioria do PL.
O empenho de ativistas armamentistas para chegar diretamente a cargos representativos dá pistas de como buscarão seguir influenciando a política institucional. A julgar pelos apoios entre políticos eleitos e em setores da sociedade, pode-se esperar que a agenda armamentista continue visível nos próximos anos.
* Priscila Delgado de Carvalho é pós-doutoranda no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (Inova Juntos). Pesquisadora do INCT IDDC. Investiga a atuação de atores coletivos em processos democráticos, com ênfase na transnacionalização de movimentos sociais e sindicatos rurais e percepções de cidadãos sobre autoritarismo e democracia. Doutora em Ciência Política pela UFMG.
por Priscila Carvalho
Priscila D. Carvalho
Publicado no Brasil de Fato
Cerca de 54% do eleitorado que habita em zonas rurais pretende votar em Luiz Inácio Lula da Silva, no próximo domingo, e outros 30% afirmam que escolherão Jair Bolsonaro. A diferença de 24 pontos percentuais está bem acima dos 8 pontos percentuais encontrados entre a população urbana. Entre os últimos, há 42% de intenção de votos em Lula e 34% em Bolsonaro, de acordo com dados da pesquisa “A Cara da Democracia no Brasil”, conduzida pelo Instituto da Democracia (IDDC-INCT) entre 9 e 14 de setembro. A explicação para a diferença pode estar relacionada à alta presença, nas áreas rurais, de cidadãos das menores faixas de renda, bem como à concentração de áreas rurais no Nordeste (onde estão 27% delas, contra 7% no Sudeste).
O dado permite sugerir que, apesar da visibilidade do apoio de boa parte do agronegócio ao candidato Jair Bolsonaro, essa preferência não reflete, necessariamente, a opção nas urnas dos brasileiros vivendo em áreas rurais, que somam 13,9% entre os entrevistados na pesquisa do INCT.
Outros dados da pesquisa também oferecem um olhar sobre a complexidade do Brasil Rural. Cerca de 42% dessa população se diz satisfeita com a democracia, contra 37% dos urbanos (somadas as respostas muito satisfeito/satisfeito).
O quadro é diferente quando se trata da preferência pela democracia. Perguntados sobre com qual das afirmativas concordam mais, apenas 51% dos habitantes de áreas rurais dizem que a democracia é preferível a qualquer outra forma de governo, abaixo da preferência da população urbana (60%) e do total nacional (59%). Este dado traz uma novidade, pois entre 2018 e 2019 a preferência pela democracia entre os rurais esteve levemente mais alta do que entre a população urbana, mas já tinha sido detectada em junho de 2022, como se vê no gráfico abaixo.
Por fim, nas áreas rurais, a confiança nas instituições se mostrou um pouco mais alta do que nas urbanas. Há uma expressiva confiança nas igrejas, que, entre a população rural, chega a 76%, indicando a permanência do já conhecido padrão de mais forte religiosidade nessas áreas. Entre as instituições do Estado, a Polícia Militar, que em geral está envolvida em atividades de patrulhamento em áreas rurais, é objeto de confiança – 10 pontos percentuais a mais do que entre populações urbanas. Em todas as outras questões sobre confiança – na presidência da República, no Congresso, nos partidos, no Supremo Tribunal Federal, nas Forças Armadas – há forte proximidade entre ambos, inclusive dentro da margem de erro da pesquisa, que é de 2 pontos percentuais, para mais ou para menos.
A maior confiança nas igrejas e na Polícia Militar parece indicar que a população rural confia mais nas instituições que estão mais presentes nas áreas menos concentradas do país. Também dá pistas de que as instituições propriamente políticas são vistas com menos apreço do que ambas. Para interessados no fortalecimento das instituições relacionadas à democracia, pode ser uma boa pista no sentido de que a percepção de presença seja um elemento importante para angariar confiança entre populações rurais.
Na pesquisa “A Cara da Democracia no Brasil” foram realizadas 1.535 entrevistas presenciais em 101 cidades de todas as regiões do país, realizadas entre 9 e 14 de setembro.
Priscila Delgado de Carvalho é pesquisadora no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (pós-doutorado) e pesquisadora associada do INCT Instituto da Democracia. Investiga a atuação de atores coletivos em processos democráticos, com ênfase na transnacionalização de movimentos sociais e sindicatos rurais, e percepções de cidadão
por Priscila Carvalho
Priscila Zanandrez e Priscila D. Carvalho
Publicado no Jota
Se não é novidade a crescente importância de eleitores e políticos evangélicos no Brasil, a campanha eleitoral de 2022 parece ter tornado mais visível a existência de diferentes posicionamentos políticos entre esse segmento da população. A existência de visões políticas distintas é perceptível por grupos que apoiam candidatos à direita ou à esquerda, que expressam valores conservadores ou progressistas ou que defendem maior ou menor presença do Estado no apoio a populações carentes.
Foram grupos à esquerda, defendendo políticas públicas e com tom crítico ao governo Bolsonaro que se reuniram com o candidato a governador de Minas Gerais, Alexandre Kalil (PSD), nesta terça-feira, 27, em um pequeno auditório na região central de Belo Horizonte. Kalil e seu candidato a vice, André Quintão (PT), repetem o esforço da campanha presidencial de Lula de aproximação a figuras evangélicas, indo de pastores no Rio de Janeiro a Marina Silva.
Para além das demonstrações de apoio, as falas deixaram visíveis alguns temas que permeiam as disputas pelo eleitorado evangélico: armas versus paz, um estado presente na pandemia versus a negação do Coronavírus, a presença da religião como formadora de laços versus a ausência do Estado.
O primeiro pastor a discursar, Antonio Carlos Ferrarezi, da igreja Metodista, ressaltou não estar falando em nome da igreja e respeitar a liberdade dos membros para votar de acordo com sua consciência política, mas não deixou de criticar o discurso armamentista: “Armas ferem a palavra de Deus”. Na plateia, jovens usavam camisetas pretas com os dizeres “A(r)mai-vos uns aos outros” João 13:34. A arte cortava o R da palavra “armai-vos”, transformando-a em “amai-vos.”
Dados da pesquisa “A Cara da Democracia no Brasil”, realizada pelo INCT – Instituto da Democracia, mostram que pautar o tema entre evangélicos pode ser um desafio. Perguntados pelo INCT, em setembro, sobre armas de fogo, 33% dos evangélicos e protestantes disseram ser a favor da proibição da venda de armas, menos do que os 39% de outras religiões.
Ainda no evento da campanha para governador de Minas Gerais, o pastor Ariovaldo Ramos partiu da defesa da vida como valor prioritário, afirmou que a pandemia foi a maior prova à vida e aos governantes e que o tema deveria ser chave para orientar as escolhas políticas: “qual governante agiu de tal maneira que hoje tem mais gente viva? Quem salvou vidas?” Ramos é um dos fundadores da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito, que desde 2016, durante o impedimento de Dilma Rousseff, posicionou-se em defesa do Estado de Direito, por inclusão, igualdade e justiça.
Dados do survey mostram, igualmente, o desafio de levar o tema a eleitores evangélicos: entre a população em geral, 47% concordam muito com a afirmação “o presidente deu pouca importância ao impacto do novo coronavírus, prejudicando o combate à pandemia no país”. Já entre evangélicos e protestantes, esse número cai para 35%. No entanto, outros 29% discordam muito da afirmação: é, possivelmente, essa a parcela dos fiéis evangélicos e protestantes com a qual os discursos de pastores como Ariovaldo podem conversar.
A cientista política, negra e evangélica, Lorraine Araújo Inácio ressaltou a relação entre capital social adquirido nas comunidades evangélicas e as relações entre economia, religião e política. O debate passou, ainda, pelos laços de cooperação entre pobres evangélicos que, na ausência do Estado, oferecem apoio mútuo e constroem relações de confiança que acabam sendo levadas para a política. Entre a população mais pobre,”quando o Estado não está, a religião está por ele.” afirmou Lorraine.
A fala da pesquisadora toca em um ponto de tensão entre a demanda por ação do Estado e a força da teologia da prosperidade entre o público evangélico, em especial o neopentecostal. A questão é visível também no material preparado pelo PT especialmente para o público evangélico e distribuído no encontro. Ali, a insistência na atuação do Estado em políticas para saúde, educação, emprego e renda ou pelo fim da fome, deixa entrever o desafio de propor um Estado de bem estar social para uma parcela da população que, apesar das políticas públicas implementadas pela Nova República, ainda depende fortemente das práticas de apoio mútuo oferecidas pela religião para enfrentar desafios para acesso ao emprego e renda, ou à autonomia econômica, no caso das mulheres.
Priscila Delgado de Carvalho é pesquisadora no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (pós-doutorado) e pesquisadora associada do INCT Instituto da Democracia. Investiga a atuação de atores coletivos em processos democráticos, com ênfase na transnacionalização de movimentos sociais e sindicatos rurais, e percepções de cidadão
Priscila Zanandrez Martins Morgado é pesquisadora em estágio pós-doutoral no INCT IDDC. Doutora e mestre em Ciência Política pela UFMG. Investiga temas sobre participação, cultura democrática e associativismo.
por Priscila Carvalho
Priscila Zanandrez e Priscila D. Carvalho
Publicado no Jota
Brasileiros estão mais propensos a ir às ruas contra a corrupção do que para defender a democracia. Também percebem que nem todo uso político das ruas é positivo para candidatos, pois a maioria da população avalia que não foi adequada a participação do presidente Jair Bolsonaro nas manifestações em Brasília e no Rio de Janeiro, em 7 de setembro. E uma maioria expressiva da população, 71,7%, considera que eventuais fortes protestos não seriam justificativa para um golpe de estado. Os dados são da nova pesquisa “A Cara da Democracia”, conduzida pelo Instituto da Democracia (IDDC-INCT) com 1.535 entrevistas presenciais em 101 cidades de todas as regiões do país realizada entre 9 e 14 de setembro.
As informações ajudam a traçar um perfil da opinião pública sobre a relação entre protestos e política no país. Indicam uma percepção consolidada de que protestos são parte integrante da democracia. Também mostram que as pessoas são capazes de avaliar criticamente o significado de protestos, mas, sobretudo, que sabem bem por quais motivos poderiam ir – ou não iriam – às ruas, e que a pauta da corrupção continua sendo relevante para a opinião pública, mesmo que tenha perdido espaço para outros temas nesta campanha.
Protestos e democracia
Quase 72% dos brasileiros e brasileiras não concordam com a afirmação de que muitos protestos poderiam justificar um golpe militar. A cifra repete pesquisa anterior, realizada em junho deste ano, e também aponta queda (de 22% para 17%) entre aqueles que defendem uma ruptura democrática em casos de muitos protestos.
O dado mostra a percepção de que protestos são forma legítima de expressar demandas, e que mesmo em situação de muitos protestos isso não deve afetar a democracia.
Historicamente, este dado varia menos do que a questão sobre aceitação de golpe militar em caso de instabilidade política: aqueles que não aceitariam passaram de 61% para 66%, e caiu de 31% para 23% a porcentagem de pessoas que dizem ser justificável um golpe em situações de instabilidade.
Em uma eleição marcada por manifestações pela democracia, em agosto, e pelas manifestações de apoio a Jair Bolsonaro, no início de setembro, a percepção de que protestos são parte do jogo democrático traz boas perspectivas para o futuro, no que depender da opinião pública, ao menos.
Disposição para protestos
No entanto, ao olhar para os temas capazes de mobilizar a sociedade brasileira, observa-se que a defesa de direitos democráticos mobiliza menos do que a luta contra a corrupção. Ainda que a rejeição a uma ruptura militar tenha crescido entre os brasileiros, é a corrupção que parece instigar a maioria a se manifestar.
Ao comparar a disposição para ir à rua com a intenção de voto, observa-se que tanto os eleitores de Lula quanto de Bolsonaro estão muito mais dispostos a ir para a rua lutar contra a corrupção do que em defesa dos direitos democráticos. Quando o caso é o combate à corrupção, 61% dos eleitores do Bolsonaro estão completamente dispostos a se manifestar, enquanto entre os eleitores do Lula o número chega a 53%. O mesmo não acontece em torno do tema da defesa da democracia: apenas 30% dos eleitores tanto do Lula quanto do Bolsonaro estariam plenamente dispostos a ir às ruas para defenderem seus direitos democráticos.
Destaca-se ainda que dentre aqueles que disseram votar em ninguém, branco ou nulo, mais de 50% não estão nem um pouco dispostos a se manifestarem em defesa da democracia.
No cruzamento entre disposição em ir para a rua por sexo, fica evidente que os homens, independentemente da temática que os mobilize, estão mais dispostos a se manifestar do que as mulheres. Quando o assunto é defender seus direitos democráticos, apenas 23% das mulheres (contra 32% dos homens) estão dispostas a participar de manifestações. No entanto, quando se fala em lutar contra os abusos da corrupção o número chega a 58% entre os homens e a 49% entre as mulheres.
A menor propensão pela mobilização entre mulheres contrasta com o papel que tiveram na campanha presidencial anterior em 2018, marcada pelos protestos do #Elenão.
Já a importância da corrupção como mote para mobilizações mostra uma permanência. O tema, que esteve muito presente nas grandes manifestações em junho de 2013 e durante o processo de impedimento da presidenta Dilma, continua encontrando fôlego entre os eleitores brasileiros.
Protestar contra a corrupção é legítimo. No entanto, o debate da corrupção não pode ser desvinculado do debate sobre democracia, pois o combate efetivo e duradouro à corrupção se faz através de ações de instituições democráticas fortes.
Priscila Delgado de Carvalho é pesquisadora no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (pós-doutorado) e pesquisadora associada do INCT Instituto da Democracia. Investiga a atuação de atores coletivos em processos democráticos, com ênfase na transnacionalização de movimentos sociais e sindicatos rurais, e percepções de cidadão
Priscila Zanandrez Martins Morgado é pesquisadora em estágio pós-doutoral no INCT IDDC. Doutora e mestre em Ciência Política pela UFMG. Investiga temas sobre participação, cultura democrática e associativismo.