por Priscila Carvalho
Priscila D. de Carvalho
Publicado no Nexo
Passado quase um mês de campanha, a presença dos atores coletivos nas eleições se expressa em dois eixos: um compreende disputas entre preferências políticas e, outro, disputas sobre as regras do jogo.
Explico: disputar preferências por determinadas políticas públicas ou pela aplicação de recursos estatais em determinadas agendas é o que se faz no dia a dia da política. A ideia de preferências pode encobrir que valores e afetos importam, mas cabe aqui para falar do que se espera que ocorra após o resultado de cada eleição. Já disputar as regras do jogo em período eleitoral é menos usual, ao menos em democracias de fato consolidadas. Os relevantes protestos que vimos nas primeiras semanas de campanha, com as cartas pela democracia, e as recentes manifestações no Dia da Independência, misturadas com parada militar e campanha eleitoral, se adequam mais a esse segundo perfil. Os dois eixos caminham paralelamente e singularizam este período eleitoral.
A cada pleito, grupos com interesses definidos se organizam para pressionar possíveis candidatos. Apresentam propostas, fazem reuniões, trocam promessas de apoio por compromissos sobre ações que os agradem nos anos vindouros. Sociedade civil organizada e sociedade política interagem. Nada mais legítimo do que uma fundação obter a assinatura de um candidato em defesa da sua pauta pelos direitos das crianças – como fez, digamos, Simone Tebet (MDB) na Fundação Abrinq. Ou que apoiadores sentem para discutir a inserção de suas agendas nos programas dos candidatos – como fizeram Lula com o Campo Unitário e Bolsonaro com a Confederação Nacional da Indústria.
Nesse sentido, está em jogo a continuidade mais ou menos normal de disputas. Talvez o mais inusitado, nesse ponto, seja a visibilidade que vêm tendo as disputas internas aos grupos. Não é suficiente falar “do agronegócio”: Lula e Bolsonaro têm entrada em setores específicos do agro, e suas falas sobre o tema, em momento de disputas acirradas, podem afetar alianças. Também se mostra insuficiente falar “dos evangélicos”, pois há preferências entre denominações e lideranças, e uma emergente relevância das evangélicas, no feminino. Divisões internas ganham importância neste cenário de intenções de voto estáveis, no qual os candidatos – principalmente Lula e Bolsonaro – não podem arriscar perder apoios vitais.
Ainda na toada das disputas por preferências, as candidaturas coletivas são uma entrada interessante para olhar a eleição pela lente dos grupos, que se articulam para ocupar espaços antes destinados a indivíduos. Como mostram análises produzidas para o Observatório das Eleições, foram registradas no TSE (Tribunal Superior Eleitoral) 213 candidaturas coletivas, em todas as regiões do país. Esse formato vem sendo usado como estratégia para grupos com pouco acesso à política, em especial mulheres e pessoas autodeclaradas pretas, encontrarem caminhos de entrada na política. Caberá observar, nos resultados eleitorais, se a estratégia se refletirá de fato na eleição dos candidatos.
Em paralelo, a eleição de 2022 segue dando sinais de que está em jogo algo diferente do que a pressão por preferências. Protestos já se mostraram relevantes desde o primeiro mês de campanha. Agosto foi marcado pelas cartas em defesa da democracia e pelos atos de lançamento realizados em diversas capitais. Ali se articularam atores coletivos diversos, cuja nova proximidade pode ter usos no futuro próximo, em caso de questionamentos aos resultados das eleições.
Ainda em agosto, aqui e ali, houve protestos contra urnas eletrônicas, que têm potencial de questionar o funcionamento das eleições no país. Setembro começou com as manifestações do bicentenário da Independência, que deixaram evidente o apoio de setores da sociedade à agenda bolsonarista e tiveram forte tom eleitoral. Inúmeros candidatos discursaram nos carros de som, enquanto a multidão em verde-amarelo era pontuada, aqui e ali, por demandas pela intervenção militar e uma perceptível ênfase religiosa que coloca em dúvida o apoio de setores da população à ideia de Estado laico.
A pressão pela democracia, aliada à necessidade de Jair Bolsonaro de não afastar eventuais eleitores moderados, parece ter contribuído para manter certa moderação nas falas do candidato à reeleição. Mas não evitaram frases de questionamento de outros poderes. Não faltaram nos atos de 7 de Setembro menções à Câmara, ao Senado, e ao STF (Supremo Tribunal Federal) – o que levou a multidão a vaiar a Corte: “vocês sabem como funcionam”, disse Bolsonaro. Embates sobre o funcionamento das instituições da República, portanto, estiveram na fala do presidente durante as manifestações transformadas em comício. Enquanto falava dos atos de governo e fazia promessas para um eventual próximo mandato, Bolsonaro tentava dar um ar de normalidade eleitoral ao momento, mas a mistura entre comício e parada militar complica essa narrativa.
No início da campanha, sugerimos que valia atentar para se o pleito reforçaria ou traria alterações ao padrão de protestos no país, que foi reformulado após 2013, tornando-se mais heterogêneo e polarizado, como definiram Luciana Tatagiba e Andréia Galvão. Até agora, não houve alterações relevantes no padrão polarizado anterior. Além disso, a forma dos protestos não foi desafiada – ainda que a relevância dos abaixo-assinados seja interessante e possa apontar para uma redescoberta dessa ferramenta. Por outro lado, a relevância que manifestações nas ruas ganharam durante esta eleição chama a atenção. Caberá refletir, ao fim do período, se as conexões entre protestos e período eleitoral estão sendo reconfiguradas.
Cabe observar se protestos relacionados à eleição nos acompanharão até o final da campanha, em que tamanho e expressão políticas. Vale manter especial atenção para se, com a aproximação do dia das eleições, manifestações de rua se tornarão mais violentas – algo que não pode ser descartado inclusive pelo fato de a posse e o porte de armas durante o dia de votação ser, em si, um tema em disputa. Adicionalmente, há que se atentar para se os resultados eleitorais serão aceitos ou contestados, se essas posições engendrarão outros protestos, e em que escala. Também há que se analisar como as forças que estiveram nas ruas em 2022 – em especial o movimento conservador, que se consolidou como ator importante nos últimos anos – estarão presentes no próximo governo.
Com essa agenda em aberto, não parece que as interações entre grupos organizados em ações coletivas para dar visibilidade às suas demandas e expressar a força de seus números sairão de pauta nos próximos períodos.
Priscila D. de Carvalho é pós-doutoranda no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (projeto Inova Juntos). Pesquisadora associada do INCT Instituto da Democracia. Investiga a atuação de atores coletivos em processos democráticos, com ênfase na transnacionalização de movimentos sociais e sindicatos rurais, e percepções de cidadãos sobre autoritarismo e democracia. Doutora em ciência política pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).
por Priscila Carvalho
Períodos de eleições gerais tendem a reduzir protestos, porém, podemos estar presenciando uma mudança de padrão no Brasil.
Priscila Delgado de Carvalho, Luciana Tatagiba, Larissa Melo*
Publicado no Jota
Protestos estão na ordem do dia das campanhas eleitorais desde 2018, com o levante das mulheres no #Elenão. A campanha de 2022 já teve cartas em defesa da democracia e verá hoje, no 7 de setembro, um desfile militar que é também local para mobilização e ato de campanha do candidato à reeleição. Com tantos eventos simultâneos, o Dia da Independência traz um bom exemplo de como estão tênues as fronteiras entre formas de ação contenciosa e a institucionalização das disputas que caracteriza as eleições, principalmente em contextos nos quais as próprias regras do jogo são o alvo dos manifestantes.
Eleições são processos rotineiros para seleção das elites políticas, estruturados por regras bem definidas. Já os protestos são a eclosão de demandas por vias extra institucionais, frequentemente protagonizados por grupos que, sem acesso direto ao poder, buscam influenciá-lo a partir da expressão pública de demandas. A literatura de movimentos sociais tem sustentado a hipótese de que protestos em época eleitoral são mais comuns em períodos de transições para a democracia do que no andamento de democracias consolidadas. Nesse segundo caso, a literatura aponta uma tendência de diminuição dos protestos em anos eleitorais, seja porque os movimentos sociais estão eles próprios envolvidos, desde dentro do sistema representativo, com a defesa de candidaturas próprias ou apoio aos seus aliados, seja porque temem que eventuais protestos, ao incorrer em algum tipo de desordem, possam ser usados por seus adversários na disputa. A tendência seria um crescimento dos protestos no primeiro ano de governo, tanto por parte dos que venceram a disputa e vão cobrar a fatura, quanto daqueles que foram derrotados e buscam meios para fazer sua voz ser ouvida.
A pesquisa inédita La Protesta/Brasil – realizada pelo Núcleo de Pesquisa em Participação, Movimentos Sociais e Ação Coletiva (Nepac-Unicamp) e pelo INCT – Instituto da Democracia –, sistematizou notícias sobre protestos publicadas na Folha de S.Paulo entre 2011 e 2020 (estamos agora ampliando a base para 2022) e traz elementos interessantes para essa discussão, embora ainda com um recuo temporal que não é suficiente para afirmações definitivas.
Em 2014, houve um terço dos protestos verificados ao longo de 2013, que foi um ano atípico, de todo modo. Em 2018, a redução foi em torno de 10%, quando comparado com o total do ano de 2017. Nos anos posteriores ao pleito, tivemos um alto nível de conflitividade social. Em 2015, os perdedores foram às ruas exigindo o impeachment da presidenta recém eleita. Em 2019, as ruas explodiram com os protestos contra os cortes na educação e a reforma da previdência.
A princípio, esses dados confirmam a tendência geral indicada pela literatura que é de redução de protestos em anos de eleições nacionais. Mas, há elementos novos que podem estar apontando para uma mudança de padrão, precipitada pela ascensão da extrema direita e sua natureza de um governo em campanha permanente. Quando olhamos para as demandas que são levadas para as ruas, vemos que a partir de 2018 as usuais pautas dos movimentos sociais – voltadas a demandas de emprego, saúde, educação, moradia, segurança etc – cedem espaço para reivindicações que miram o próprio sistema político e o jogo eleitoral.
Os registros de 2014 mostram conexão com o padrão de ativismo estabelecido desde a democratização. Entre agosto e outubro, no período eleitoral, sem-teto ocuparam prédios e protestaram por moradias, vizinhos se uniram por saneamento, trabalhadores foram às ruas pelo aumento de salários, mulheres defenderam igualdade de gênero e indígenas pediram melhoria de estradas. O tradicional Grito dos Excluídos, protagonizado por setores católicos e de esquerda, marcou as notícias do 7 de setembro.
Entre 2014 e 2018, há uma visível mudança no perfil dos protestos nos meses de campanha. A eleição de 2018, é bom lembrar, teve elementos inusitados: primeira após um conturbado impeachment, foi marcada pelo afastamento de um dos principais candidatos, com a inviabilização da candidatura de Lula, e pelo atentado à faca ao candidato Bolsonaro, que acabou afastado de boa parte dos debates.
Em 2018, no primeiro dia de agosto registaram-se mobilizações encabeçadas pelos sem-terra, defendendo a candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva. Seguem os atores clássicos na nova república, porém, a demanda é diretamente ligada à disputa eleitoral. Ao longo dos três meses de campanha, em 2018, mulheres defenderam seus direitos reprodutivos, estudantes pediram verbas para a educação, negros questionaram desigualdades raciais no serviço público: questões e formas de protestos clássicas. Porém, no conjunto dos protestos registrados, o apoio ou a rejeição à candidatura de Lula marcou a agenda de agosto. Em setembro, ganham visibilidade as manifestações protagonizadas por mulheres contra a candidatura de Jair Bolsonaro – no movimento #Elenão – e, em paralelo, outras manifestações de mulheres em apoio ao candidato. Em outubro, a tônica foi de manifestações contra e a favor de Jair Bolsonaro.
Já em agosto de 2022, nota-se reduzido registro de protestos não relacionados às eleições, tais como manifestações por reajuste salarial e paradas LGBT+. A cobertura concentrou-se nas diversas cartas a favor da democracia – assinadas por organizações empresariais, profissionais, mas também por intelectuais, artistas e cidadãos em geral. Além dos abaixo-assinados, ganharam visibilidade os atos de leitura dos textos, combinados a protestos em diversas capitais. Vê-se também movimentos contrários, a exemplo de uma carta de advogados em apoio ao governo Bolsonaro, mas sem a visibilidade obtida pelas anteriores.
Setembro começa com convocações de apoiadores de Bolsonaro para as ruas, no dia 7. Agora é acompanhar se os protestos irão se traduzir em força social capaz de empurrar ainda mais o sistema político para a crise, desacreditando as eleições e, portanto, as possibilidades de saída mediada e não violenta para os conflitos que cortam nossa sociedade, ou se serão paradas patrióticas incorporadas ao repertório do confronto eleitoral das direitas em movimento.
Priscila D. de Carvalho é pós-doutoranda no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Doutora em Ciência Política pela UFMG.
Luciana Tatagiba, professora do Departamento de Ciência Política, da Unicamp.
Larissa Melo é doutoranda na Unicamp e pesquisadora do tema movimentos sociais e crise da democracia na América Latina.
por Mariane Costa
Cleyton Feitosa*
Publicado no Midia Ninja
Em 16 de agosto recebi a newsletter da Nexo com o assunto “Recorde de Diversidade”. Em seguida, acessei a reportagem da Folha de São Paulo sobre o mesmo assunto: o aumento inédito de candidaturas de mulheres e negros nas eleições nacionais desse ano. Imediatamente fui frustrado com o gritante silêncio a respeito das candidaturas de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, queers, intersexos, assexuais e outras identidades não-heterossexuais e não-cisgêneras (LGBTQIA+) nessas matérias.
A partir disso, recorri diretamente à base de dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para verificar se o silêncio sobre essas candidaturas teria sido das reportagens ou do órgão oficial e, de fato, a responsabilidade pela lacuna dessa informação não havia sido do jornalismo (embora este, também, nada tenha falado sobre a questão, ainda que sob o título de “Recorde de Diversidade”).
As informações do TSE que permitem analisar a presença de grupos vulneráveis nas eleições são compostas por gênero, cor/raça, faixa etária, pessoas com deficiência e nome social. Logo, é possível saber quantas mulheres, negros/as, indígenas, jovens, idosos/as, pessoas com deficiência. A informação sobre o “nome social”, que mais se aproximaria da questão LGBTQIA+, e poderia indicar pessoas trans que estão pleiteando mandatos em 2022, é incompleta porque nem toda pessoa trans utiliza o nome social após a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de 2018 que passou a permitir retificação do nome civil em cartórios sem a necessidade de cirurgias ou decisões judiciais. Assim, não existe, de fato, informação relativa à orientação sexual e à identidade de gênero das candidaturas.
A ausência desses dados produz efeitos indesejáveis, entre os quais destaco a invisibilidade desse perfil de candidaturas. Tal invisibilidade impõe obstáculos a pesquisadores e a ativistas do movimento social, que têm feito esforços para registrar a presença do segmento em artigos e relatórios. Redes nacionais e organizações que integram o movimento, como a ABGLT, Aliança Nacional LGBTI+, ANTRA, Vote LGBT, entre outras, têm buscado mapear essas candidaturas a partir da elaboração de formulários virtuais e divulgação de relatórios com os resultados.
No entanto, pelos limites da comunicação e dos métodos de levantamento, muitas vezes os números são díspares de uma rede para outra. Gustavo Gomes da Costa Santos, da UFPE, e Pedro Barbabela, da UFMG, têm desenvolvido importantes análises sobre candidaturas LGBTQIA+ no Brasil, com artigos científicos publicados em periódicos sobre o tema. Eles refletem sobre essas dificuldades de obter a quantidade real de candidaturas “coloridas” no país.
As dificuldades percebidas por ativistas e acadêmicos poderiam ser facilmente solucionadas se a orientação sexual e a identidade de gênero dos candidatos fossem declaradas pelos partidos políticos quando apresentam candidaturas ao TSE. Isso tornaria, inclusive, essa população mais visível nas organizações partidárias, também repletas de barreiras e contradições.
Entre os efeitos indesejáveis dessa invisibilidade estatística está a invisibilidade social e política, as quais o movimento LGBTQIA+ vem lutando para enfrentar há muitas décadas por meio da arte, cultura e disputa de narrativas na mídia. Há mais de duas décadas, o movimento vem atuando também por meio das massivas Paradas do Orgulho nas capitais e interiores do país. Além disso, a invisibilidade numérica atrapalha políticas de inclusão, quer sejam políticas de presença – ações que almejam a presença de grupos excluídos nos espaços de decisão, nos termos da contribuição teórica de Anne Phillips –, quer sejam iniciativas de proteção contra a forte violência política que atinge em cheio candidatos/as e representantes políticos/as LGBTQIA+.
Relendo a entrevista do ministro Luiz Edson Fachin concedida à professora e ativista trans Jaqueline Gomes de Jesus, publicada na Revista Brasileira de Estudos da Homocultura (REBEH) por ocasião de um dossiê temático sobre participação política LGBTQIA+ que tive a oportunidade de coordenar com outros pesquisadores das Ciências Sociais, é possível ver que o TSE instituiu em 2019 um grupo de trabalho sobre Sistematização das Normas Eleitorais. Um dos temas foi a participação de minorias no processo eleitoral e, nele, houve um subgrupo de trabalho LGBTQIA+, com participação da ABGLT e da Aliança Nacional LGBTI+, que recomendaram o respeito às terminologias adequadas e às bases teóricas e políticas nas normativas do tribunal, além de treinamento para mesários e servidores da Justiça Eleitoral.
Como resultado da interação socioestatal, foi publicada a Resolução 23659/21, que trata do cadastro eleitoral, prevendo o uso do nome social e a identidade de gênero, bem como inexigibilidade de quitação militar por mulheres trans. Também foi incluída a possibilidade de preencher duas mães e dois pais no campo “filiação” do formulário Requerimento de Alistamento Eleitoral (RAE), avançando no reconhecimento de famílias homoparentais. Em relação ao combate à violência política contra LGBTQIA+, o ministro mencionou apenas o combate às fake news que o tribunal vem realizando.
São medidas importantes que revelam maior abertura da Justiça Eleitoral à participação social da população LGBTQIA+, mas ainda insuficientes para a promoção dos direitos políticos do segmento nas eleições brasileiras. É preciso avançar na institucionalização de políticas eleitorais que incluam verdadeiramente esses sujeitos nas disputas políticas, com foco no incentivo à LGBTQIA+ se candidatarem a cargos de representação política e gestão governamental, nas condições materiais dessas candidaturas (financiamento eleitoral público assegurado pelos partidos), na proteção eficaz contra a violência política LGBTIfóbica e no compromisso com a visibilidade da diversidade sexual e de gênero nas instituições políticas. Para tanto, o quantitativo oficial de candidaturas é dado básico e primordial para a formação da opinião pública, para a efetiva justiça eleitoral e para a democracia brasileira.
*Cleyton Feitosa é doutorando em Ciência Política pela Universidade de Brasilia e mestre em Direitos Humanos pela Universidade Federal de Pernambuco. Autor do livro “Políticas Públicas LGBT e Construção Democrática no Brasil”. Integrante do Grupo de Pesquisa Resocie – Repensando as Relações entre Sociedade e Estado do IPOL/UnB.
por Bárbara Campos
Bárbara Lopes Campos *
Mariane dos Santos Almeida Costa**
Publicado no JOTA
São 213 candidaturas coletivas registradas ao legislativo no pleito de 2022. As candidaturas estão espalhadas em todas as regiões do país, e concentram-se em partidos de centro-esquerda com forte participação do PSOL e PT. Entre titulares, há mais mulheres e pessoas autodeclaradas pretas do que a média nacional, o que reforça a percepção de que podem facilitar a inserção de grupos com difícil entrada na política. Os dados foram obtidos a partir do site Divulgação de Candidaturas e Contas Eleitorais, que traz informações detalhadas sobre todos os candidatos que pediram registro à Justiça Eleitoral, suas contas eleitorais e as dos partidos políticos.
A maioria das candidaturas destina-se a vagas do legislativo estadual: 64%. Outras 34% são para o cargo de deputado(a) federal, e 2% para o Senado – essas últimas, um fato inédito. É o caso da candidatura “Mancha Coletivo Socialista”, encabeçada por Luiz Carlos Prates (PSTU) em São Paulo; e da candidatura liderada por Rosane Ferreira (PV) no Paraná. Esta última representa uma candidatura coletiva pluripartidária, com postulantes à suplência pelo PT e pelo PCdoB.
Distribuição regional
Candidaturas coletivas foram apresentadas em todas as regiões do país, porém, as regiões do Nordeste (37%) e Sudeste (24%) concentram a maior parte destas candidaturas, em especial a partir dos estados de São Paulo, Maranhão e Pernambuco. A Figura 1, apresenta a distribuição a nível nacional e regional das candidaturas mapeadas.
Figura 1: Distribuição de Candidaturas Coletivas ao Legislativo no Brasil
(Eleições 2022)
Fonte: elaboração própria, adaptado de BRASIL (1988), a partir de dados disponíveis em BRASIL (2022).
Apesar de a proposição de candidaturas coletivas não ter sido encontrada em todos os estados da federação, nas eleições de 2022 elas apresentam uma dispersão relativamente homogênea, corroborando com a percepção sobre um crescente número de candidaturas compartilhadas por um grupo ou coletivo nos últimos anos. Tais evidências apontam que esta modalidade de candidatura tem ganhado cada vez mais espaço no cenário político brasileiro.
Em relação aos partidos políticos aos quais as candidaturas coletivas mapeadas pertencem, o PSOL (33%) e o PT (16%) concentram as maiores quantidades (Figura 2). No que tange ao PSOL, a filiação pode significar uma escolha por um partido que possui uma maior abertura para a experimentação coletiva, em termos da proposição de candidaturas diversas e da atuação de mandatos independentes. Essa relação pode fortalecer o argumento de que, em geral, as candidaturas coletivas possuem um perfil atrelado a minorias políticas, que buscam na modalidade compartilhada uma forma de viabilizar a inserção de diversos(as) representantes de lutas sociais na arena política formal.
Figura 2: Partidos das Candidaturas Coletivas ao Legislativo no Brasil
(Eleições 2022)
Candidaturas Coletivas e Gênero. Elaboração da autora.
Fonte: elaboração própria, a partir de dados disponíveis em BRASIL (2022).
A concentração em partidos tradicionais de esquerda, no entanto, não impede a difusão de candidaturas coletivas em partidos de outras colorações políticas: são encontrados também na centro-direita em partidos como PRTB, Patriotas, MDB e Avante, entre outros.
Perfil de cor/raça e gênero
Adentrando no perfil das candidaturas mapeadas, na Figura 3, observa-se que há uma pequena, porém, significativa diferença quanto à raça/cor dos titulares das candidaturas nas eleições de 2022. Segundo dados do TSE divulgados no dia 18 de outubro de 2022, dos 28.501 candidatos registrados para as eleições, 50% declararam-se negros, 48,7% identificaram-se como brancos, e menos de 1% como indígenas. Entre os negros, 36% disseram ser pardos, e 14% pretos. Assim, a coleta de dados das candidaturas coletivas corrobora para as informações supracitadas, com a diferença de que 36% se declararam pretos (22% a mais do que no número total); além de apresentarem uma proporção maior de candidaturas lideradas por pessoas indígenas (BRASIL, 2022).
Figura 3: Comparação de Raça/Cor – Total e Candidaturas Coletivas ao Legislativo no Brasil (Eleições 2022)
Raça/Cor |
Total |
Coletivas |
Branca |
49,3% |
40% |
Preto/a |
14% |
36% |
Pardo/a |
36% |
21% |
Indígena |
0,7% |
3% |
Fonte: elaboração própria, a partir de dados disponíveis em BRASIL (2022).
Ainda, por mais que a quantidade de pessoas que se declaram brancas (40%) seja superior ao de pessoas pretas nas candidaturas coletivas, quando somados pretos e pardos, percebe-se que o total de candidaturas lideradas por pessoas negras é de 57%. Apesar de serem a maioria dos habitantes do país, com cerca de 55% da população, pessoas negras ainda são minorias quando se trata de porcentagem de eleitos no país, refletindo as dificuldades democráticas do país.
A distribuição de candidaturas coletivas por gênero (ver Figura 4) demonstra o predomínio e manutenção de candidaturas lideradas por mulheres, dado que confirma a tendência identificada em 2020. Segundo levantamento da RAPS (2019), quando consideradas as 110 candidaturas coletivas mapeadas de 1994 a 2018, apenas 13% eram representadas por mulheres. Contudo, em levantamento recente, onde foram analisadas as candidaturas coletivas para as eleições de 2020, os dados encontrados demonstram que 51,99% das candidaturas eram lideradas por mulheres, enquanto 48,01% eram lideradas por homens.
Figura 4: Gênero das Candidaturas Coletivas ao Legislativo no Brasil
(Eleições 2022)
Fonte: elaboração própria, a partir de dados disponíveis em BRASIL (2022).
Candidaturas Coletivas. Elaboração da autora.
Os dados encontrados revelam um equilíbrio entre os representantes legais das candidaturas coletivas. Acredita-se que tais dados possam ser justificados diante do êxito eleitoral que diversas candidaturas coletivas tiveram nas últimas eleições e da aprovação da Resolução nº 23.3675, que passou a autorizar a menção do grupo ou coletivo no registro do nome de urna.
Reeleições e portas de entrada na política
Algumas experiências inaugurais de candidaturas coletivas no Brasil se replicam em 2022. Jô Cavalcanti (PSOL) continua liderando as “Juntas” para a reeleição ao cargo de deputada estadual em Pernambuco. Enquanto isso, em São Paulo, Mônica Seixas (PSOL) se lança à reeleição a partir de uma nova candidatura coletiva: a “Monica do Movimento Pretas” .
Por outro lado, algumas integrantes de candidaturas coletivas de eleições passadas lançaram, em 2022, candidaturas próprias. É o caso de Carol Vergolino (PSOL), integrante das “Juntas”, que se lança a deputada federal por Pernambuco; assim como Erika Hilton (PSOL), ex-integrante da “Mandata Ativista” e vereadora de São Paulo, que se lança agora a deputada federal. Esse movimento pode indicar que as candidaturas e mandatos coletivos são uma estratégia potente para dar início à carreira política, ou para a formação de lideranças, de mulheres e ativistas ligadas às amplas maiorias sociais diversas do país.
Bárbara Lopes Campos é doutora em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professora de Relações Internacionais na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas – PPC).
Mariane dos Santos Almeida Costa é mestranda de Direito Eleitoral pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
por Bárbara Campos
Bárbara Lopes Campos*
Mariane dos Santos Almeida Costa**
Publicado no JOTA
Inovações na condução do mandato político não são um fenômeno restrito aos últimos anos. Pesquisadores da área identificaram estratégias de participação popular na atuação parlamentar, como os “mandatos abertos”, desde o período da redemocratização no Brasil. No entanto, as candidaturas com caráter compartilhado, onde o(a) eleitor(a) deposita a confiança em um coletivo, cresceram de fato no cenário eleitoral brasileiro desde 2016. Essas candidaturas passaram a assumir especificamente o compromisso, durante a campanha eleitoral, de conduzir o mandato com um grupo (ou coletivo) previamente definido de “coparlamentares”. Levantamento recente da Rede de Ação Política pela Sustentabilidade mostrou que as eleições de 2016 e 2018 somam 89% das candidaturas que elegeram mandatos tidos como coletivos no país no período entre 1994 e 2018.
As eleições municipais de 2016 trouxeram a primeira experiência de candidatura compartilhada do país. João Yuji, do Podemos (Pode), foi eleito vereador em Alto Paraíso de Goiás (GO) com mais cinco “covereadores”. Nas eleições de 2018, mais duas experiências de candidaturas compartilhadas se destacaram, ambas do PSOL, dessa vez nos estados de Pernambuco e São Paulo: são as candidaturas da Juntas e da futura Mandata Ativista. Em Pernambuco, as “Juntas” foram eleitas nas urnas, registradas com o Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) de Jô Cavalcanti. Estratégia parecida foi adotada pela candidatura da “Mônica da Bancada”, com o CPF de Mônica Seixas sendo utilizado para viabilizar a eleição do grupo paulista que originalmente contou com oito “codeputados(as) ativistas”.
Em 2020, no entanto, foi registrado o maior número de candidaturas coletivas até então nos país: 313 candidaturas ao legislativo nas eleições municipais. As candidaturas coletivas representaram, naquele ano, 0,06% das candidaturas e 0,34% dos votos, obtendo – em termos percentuais – um desempenho médio de votos superior ao das candidaturas individuais tradicionais.
A partir da eleição, as iniciativas estruturadas nesse modelo de coparticipação contam com o protagonismo de “coparlamentares” na gestão dos mandatos, que, apesar de possuírem formatos e alcances diversos, envolvem a incorporação destes na equipe do gabinete, sua participação na rotina parlamentar, a definição de dinâmicas decisórias entre eles e a distribuição de responsabilidades e deveres políticos. Nesse sentido, esses mandatos são mais despersonalizados e trazem inventividades que desafiam o rito parlamentar tradicional.
Historicamente, a disputa eleitoral no Brasil possui um caráter personalista e individualista, a partir da projeção de lideranças políticas vagas. O domínio dos espaços de poder, e das estratégias eleitorais, geralmente asseguram a perpetuação das elites políticas nos cargos legislativos. Na dimensão da representação política descritiva, a democracia brasileira conta sistematicamente com a exclusão de mulheres e de populações marginalizadas. Isso evidencia como as aparentes “democracias raciais” na América Latina, são palco de gritantes desigualdades, o que no Brasil se traduz na exclusão política de pessoas pretas, pardas, amarelas e indígenas.
Nesse sentido, as candidaturas coletivas possuem um potencial de diversificar o cenário da representação política, trazendo importantes contribuições democráticas. Experiências que emergem a partir de 2016 compartilham da percepção sobre a necessidade de subverter os atuais arranjos de proposição de candidaturas praticadas pelas instituições partidárias, centralizados em suas respectivas lideranças. A possibilidade de compartilhar os fardos da candidatura, da campanha e, eventualmente, do mandato, também se torna uma motivação importante para mulheres e grupos minoritários, uma vez que minimiza a aversão de ter que “fazer sozinha” ou de “encarar a política”.
Entendemos os mandatos coletivos inspirados nas demandas por maior representatividade como sendo “tecnologias sócio-políticas inovadoras” que provocam mudanças no campo político brasileiro ao diversificar os quadros de parlamentares eleitas/os, desafiar o personalismo e o individualismo das candidaturas, “hackear” a institucionalidade política e, por fim, promover dimensões não menos significativas de “reencantamento” político.
Ao mesmo tempo, essas iniciativas enfrentam desafios em relação à sua viabilidade jurídica. A tentativa de impugnação da candidatura coletiva “Nossa Cara” (PSOL) pelo Ministério Público do Ceará nas eleições municipais de 2020 – candidatura coletiva eleita em Fortaleza/CE nas eleições municipais de 2020 –; assim como a impugnação do registro do nome da candidatura coletiva liderada por Layla Jéssica Pessoa de Andrade (PT) pelo Tribunal Regional Eleitoral de Pernambuco (TER-PE) – pré-candidata pelo Município de João Alfredo/PE – revelam as incertezas e inseguranças que cercam as experiências na falta de uma regulamentação própria.
O aspecto jurídico e o cenário para as candidaturas coletivas
O ordenamento jurídico brasileiro não prevê a existência formal de candidaturas coletivas. Ou seja, dentro do conjunto de normas, resoluções e procedimentos que regulam o exercício da ocupação de cargos eletivos, não há determinações expressas de quais normas ou procedimentos devem ser observados para registrar candidaturas ou exercer mandatos coletivos. Mesmo porque, para a legislação brasileira, apenas uma única pessoa pode ser denominada como mandatária de um cargo eletivo. Ao mesmo tempo, a legislação brasileira não veda a possibilidade de que o candidato indique, desde a campanha, que, caso eleito, desenvolverá seu mandato de forma que os demais integrantes de sua chapa exerçam poder deliberativo.
Diante da inexistência de uma norma jurídica aplicável a toda situação suscitada pelas iniciativas coletivas, tem-se uma lacuna jurídica. Na ausência de norma específica para fundamentar quaisquer análises quanto às iniciativas coletivas, desde 2018 o Tribunal Superior Eleitoral, bem como os Tribunais Regionais Eleitorais, vêm se manifestando incidentalmente em casos de pedido de registro de candidaturas com inclinações coletivas. Diante de lacunas jurídicas, o Poder Judiciário deve proceder com a tentativa de solucionar a demanda tomando por base outros mecanismos hermenêuticos.
Em 2018, foi protocolado, junto ao TRE-PE, pedido de registro de candidatura de Jô Cavalcanti e nome de urna declarado como “Juntas” para o cargo de Deputada Estadual por Pernambuco. Houve manifestação favorável do Ministério Público Federal, posteriormente confirmado pelo ministro Alexandre de Moraes em decisão monocrática, deferindo o pedido de registro de candidatura nos termos apresentados no requerimento inicial.
No precedente firmado no RE 0600101-37.2020.6.17.0088, o termo “Juntas” foi considerado precário para identificar com clareza a pessoa do candidato que efetivamente concorrera ao cargo pleiteado. Decidiu, ainda, que o nome do candidato na urna ou as manifestações de propaganda deveriam guardar direta relação com a pessoa que pediu o registro de candidatura. Reforçou que candidato é unicamente aquele que preenche as condições de elegibilidade, que tem seu nome aprovado em convenção partidária e tem deferido o registro.
O precedente considerou, também, que a Constituição não prevê nenhuma forma de exercício coletivo do direito de sufrágio, na medida em que a dimensão coletiva dos direitos políticos se manifesta por meio dos partidos políticos, sem a previsão de outro tipo de legitimação associativa. Para o desembargador relator do caso, o nome de urna que sugere uma candidatura de natureza coletiva não tem condão para trazer a candidatura compartilhada à existência, somente a lei teria esta capacidade. Nesta interpretação, o nome de urna é algo informal e assim deveria ser interpretado.
Ocorre que, em 16 de dezembro de 2021, o plenário do TSE aprovou, por unanimidade, Resolução nº 23.3675, alterando o art. 25 da Resolução TSE nº 23.609, que passou a autorizar, em caso de candidatura coletiva, a menção do grupo ou coletivo de apoiadores na composição do nome de urna do candidato ou candidata. Nos seguintes termos:
Art. 2º O art. 25 da Resolução-TSE nº 23.609, de 18 de dezembro de 2019, para a vigorar acrescido dos seguintes §§ 2º a 4º, renumerando-se o atual parágrafo único como § 1º:
“Art. 25. …………………………………………………………………………….. §1º……………………………………………………………………….. §2º No caso de candidaturas promovidas coletivamente, a candidata ou o candidato poderá, na composição de seu nome para a urna, apor ao nome pelo qual se identifica individualmente a designação do grupo ou coletivo social que apoia sua candidatura, respeitado o limite máximo de caracteres.
- 3º É vedado o registro de nome de urna contendo apenas a designação do respectivo grupo ou coletivo social.
- 4º Não constitui dúvida quanto à identidade da candidata ou do candidato a menção feita, em seu nome para urna, a projeto coletivo de que faça parte” (NR).
O relator da resolução, ministro Edson Fachin reforçou que “a chamada candidatura coletiva representa apenas um formato de promoção da candidatura, que permite à pessoa que se candidata destacar seu engajamento em movimento social ou em coletivo”. Para o ministro, tal engajamento não é suficiente para confundir o eleitor, mas visa esclarecer sobre o perfil da candidata ou candidato.
Ainda, destaca-se que a regulamentação da candidatura coletiva não coincide com a do mandato coletivo. Apesar de um ser consequência do outro, o primeiro está relacionado ao processo eleitoral propriamente dito, enquanto, o segundo se refere ao exercício das competências e atribuições do cargo eletivo.
Nesse sentido, vale ressaltar que desde 2017 tramita na Câmara dos Deputados uma proposta de Emenda à Constituição (PEC 379/2017), “que permite a existência de mandatos coletivos para cargos do Legislativo (vereador, deputado estadual, distrital, federal e senador)”. De acordo com a proposta, se aprovado, a regulamentação do mandato – a ser compartilhado por mais de uma pessoa – será feito por lei.
As eleições 2022 constituem a primeira corrida eleitoral a ser realizada após a aprovação da Resolução nº 23.3675, representando um marco importante no monitoramento de candidaturas coletivas, principalmente as que incluem a menção de grupos ou coletivos no registro do nome de urna. Vale, ainda, observar se o potencial eleitoral dessas candidaturas se manterá, tendo em vista os parâmetros dos últimos resultados eleitorais.
*Bárbara Lopes Campos é doutora em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professora de Relações Internacionais na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas – PPC).
**Mariane dos Santos Almeida Costa é mestranda de Direito Eleitoral pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
por Ellen Gallerani Corrêa
Ellen Gallerani Corrêa*
Priscila D. Carvalho**
A cada eleição, setores ligados à agricultura apresentam pautas a candidatos de diferentes colorações políticas. No Brasil de 2022, a dinâmica é outra: as pautas são endereçadas diretamente às candidaturas de preferência. Neste texto, comparamos as demandas de dois setores: o patronal, pela agenda da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), e a dos trabalhadores(as) rurais e povos do campo, reunidos no chamado Campo Unitário. Os documentos deixam visíveis as disputas entre os setores, mesmo quando os grandes temas parecem semelhantes.
A construção das agendas
O Campo Unitário é formado por mais de 30 organizações, entre elas os Movimentos dos Sem Terra e dos Pequenos Agricultores, Confederação de Extrativistas (CNS) e Conselho de Quilombolas (Conaq), Confederações Sindicais de Agricultores Familiares (Contag) e Assalariados (Contar), e por entidades como a Comissão Pastoral da Terra. A relação do Campo com a candidatura de Lula vai além da apresentação de suas pautas, já que a coalizão participa da construção das diretrizes do programa de governo do candidato. Em conjunto com a Secretaria Agrária e o Núcleo Agrário do PT na Câmara dos Deputados e com o Núcleo de Acompanhamento de Políticas Públicas Agrícola e Agrária da Fundação Perseu Abramo, o Campo Unitário elaborou a “Plataforma de Governo dos Povos do Campo, da Floresta e das Águas para Ganhar as Eleições e Governar o País” . No dia 06 de maio, o documento foi entregue a Aloizio Mercadante, coordenador do programa de governo, para uma primeira rodada de discussão e, em 16 julho, houve um segundo encontro.
A CNA, por sua vez, apresentou uma primeira versão do documento “O que esperamos dos próximos governantes” durante seu Encontro Nacional do Agro, em Brasília, no dia 08 de agosto. Estavam no evento o presidente Jair Bolsonaro e diversos ministros. Eles ouviram de João Martins, presidente da CNA, o apoio à reeleição. Martins conclamou o público a “sinalizar bem claro que não tem mais espaço neste país para uma equipe corrupta e incompetente, e muito menos do retorno de um candidato que foi processado e preso como ladrão”. Desde maio, foram realizados debates para subsidiar o texto, destinado a candidatos à presidência e ao parlamento. Agora, o documento será levado a debate entre as federações estaduais, e a versão final apresentada aos candidatos à Presidência e a parlamentares.
Os temas
O documento do Campo Unitário é composto por propostas emergenciais, para serem efetivadas nos primeiros seis meses do novo governo federal, e propostas estruturantes para os temas: direito à terra e territórios; fortalecimento da capacidade produtiva da agricultura familiar para a soberania e segurança alimentar; políticas de infraestrutura e qualidade de vida; políticas e direitos para os assalariados e assalariadas rurais; estrutura de Estado para promover e implementar as políticas públicas. São centrais demandas como a demarcação e proteção dos territórios das comunidades tradicionais e a criação ou retomada de políticas públicas para os povos dos campos, das florestas e das águas, principalmente aquelas voltadas à produção e comercialização de alimentos.
O documento da CNA é dividido em quatro eixos: segurança alimentar e desenvolvimento econômico, social e sustentável. Traz, pela primeira vez, sugestões para áreas como economia e políticas sociais, para além da agricultura. Com vistas ao desenvolvimento econômico, defende reformas administrativa, tributária sem onerar o setor agrícola, e política – nessa, contra o financiamento público de campanhas. Para o desenvolvimento social, traz posições sobre educação, segurança em áreas rurais e saúde. Na última, enfatiza avanços na telemedicina.
Alimentos
No Campo Unitário, o debate sobre alimentos tem como foco a segurança e a soberania alimentar – este último, termo difundido pela Via Campesina para falar não apenas do acesso aos alimentos, mas do papel estratégico de agricultores nas decisões sobre a produção. Para garantir segurança e soberania alimentar, demanda-se políticas de estímulo à produção de alimentos saudáveis a partir de modelos produtivos que promovam a sustentabilidade, justiça social e o respeito às matrizes culturais e territoriais. Enfatizam o fomento à produção agroecológica e orgânica, efetivando a Política e o Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica. Sobre fertilizantes, demandam a criação de um Plano de fertilização natural e proteção do solo para uma matriz sustentável de bioinsumos e a criação de um plano nacional de produção, conservação, melhoramento e comercialização de sementes crioulas, com a estruturação de Bancos Comunitários de Sementes. Marca-se posição sobre agrotóxicos, sugerindo a revisão da atual política de desoneração e uma Política Nacional de Redução de Agrotóxicos (PNRA).
Fertilizantes e agrotóxicos também estão no topo da agenda da CNA, mas com a demandas opostas: aprovar a lei de defensivos agrícolas e bioinsumos (PLs 1459/2022 e 658/2021) e ampliar a produção nacional de fertilizantes, reduzindo a dependência externa – tema que ganhou destaque desde a guerra na Ucrânia. O foco aqui é garantir a oferta de fertilizantes, ampliando conhecimento sobre produtos disponíveis no subsolo e estruturando programa para a área – o Profert. Na CNA, estes debates aparecem sob a chave da segurança alimentar, dividida entre os polos da produção – que além dos pontos anteriores inclui irrigação e logística para escoamento dos produtos, apontando a relevância das commodities para a agenda patronal. Para a irrigação, toca-se na crescente demanda por água e aponta-se como solução liberar o uso de áreas de proteção permanente para estruturas de reserva de água.
O outro polo é o do consumo. Programas de transferência de renda são o caminho para ampliar o acesso das famílias a alimentos – pontuando que sejam transitórios. Já o Campo Unitário enfatiza políticas de compras públicas – o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) e a volta da política de estoques públicos de alimentos – que, além da regulação dos preços, permite oferecer comida a populações vulneráveis. Ainda para ampliar a oferta de alimentos, propõe-se estimular as feiras e as cozinhas comunitárias.
Na área de crédito, o Campo Unitário concentra-se no Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar e demanda tanto a ampliação do orçamento quanto a reformulação do programa, visando a distribuição equilibrada dos recursos por região, ampliação do público atendido e maior atratividade de determinadas linhas de crédito (semiárido, microcrédito, agroecologia, bioeconomia, floresta, mulher e jovem). Também pede a retomada do Plano Safra específico para a agricultura familiar, abandonado desde o governo Temer, em 2019. Na CNA, o Plano Safra é elogiado, e demanda-se apoio à ampliação de fontes de financiamento no mercado privado, com redução de custos do financiamento – menores taxas de juros – e redução de custos cartoriais.
Terra
Nessa discussão, o Campo Unitário visa a garantia do direito à terra e territórios dos povos do campo, das florestas e das águas. Propõe-se a identificação, demarcação, regularização e proteção de terras e territórios indígenas, quilombolas, de comunidades pesqueiras e extrativistas e dos demais povos e comunidades tradicionais. A ênfase nos territórios de povos tradicionais indica a força que tais grupos vêm ganhando nas articulações contemporâneas. Também são requeridas medidas para combater a grilagem de terras públicas e a violência gerada pelos conflitos socioambientais e para proteger os direitos humanos, especialmente de pessoas e comunidades ameaçadas.
A bandeira histórica da reforma agrária é reafirmada, solicitando que sejam destinadas para essa finalidade terras públicas federais e estaduais. Propõe-se a elaboração de um plano nacional com ações, metas e prazos para a criação de assentamentos, revisão dos índices de produtividade, organização da produção de alimentos saudáveis e acesso a mercados. Chama atenção, contudo, que o plano proposto, apesar de prever metas e prazos, não explicita números para esses objetivos.Também se menciona a regularização fundiária da agricultura familiar – outro dos temas em que as demandas do Campo Unitário e da CNA se mostram diametralmente opostas.
O Campo Unitário expressa divergências com aspectos da Lei nº 13.465/2017 (oriunda da MP nº 759/2016), aprovada pelo governo Temer. A lei anterior, de 2014 (nº 13.001), previa a concessão de créditos de instalação e a conclusão dos investimentos para considerar os projetos de assentamento como consolidados e aptos à titulação. Desde a legislação de 2017, o único critério para a consolidação é de que os assentamentos atinjam o prazo de 15 anos desde a sua implantação. Quando da discussão da MP que originou a lei, as organizações do Campo Unitário manifestaram preocupação com a consolidação, e consequente titulação, de assentamentos com infraestrutura precária, pois isso poderia estimular a transferência de terras para o mercado. Defendem, ao contrário, que a titulação seja precedida da garantia de infraestrutura e políticas públicas que permitam o pleno desenvolvimento das famílias na área. Outra demanda é pela autonomia dos(as) assentados(as) e de suas organizações na escolha da forma da titulação – Título Definitivo ou Concessão de Direito Real de Uso individual ou coletivo -, permitindo que seja levada em consideração a organização social e produtiva estabelecida desde o início do assentamento. Pela legislação de 2017, as condições e a forma de outorga dos títulos fica remetida a regulamento.
A CNA, por sua vez, elogia a aceleração do processo de titulação empreendida desde o governo Temer, e intensificada por Bolsonaro. Demanda, ainda que se acelere a indenização de produtores desapropriados por demarcações de terras e assentamentos de reforma agrária.
Boa parte dos embates, atualmente, passa pelos poderes legislativo e judiciário. Está nas mãos do Supremo Tribunal Federal (STF)a definição sobre o primeiro item mencionado pela CNA ao falar de regulação fundiária, que é a garantia da tese do Marco Temporal e das “19 condicionantes”. Trata-se da defesa da demarcação de terras indígenas apenas se ficar comprovada a presença dos povos nas áreas em 1988. As condicionantes referem-se às restrições colocadas pelo STF na demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, demandando-se que sejam válidas para todos os processos demarcatórios. O Marco Temporal é objeto também de um Projeto de Lei que tramita no Congresso – projeto este que o Campo Unitário pede que seja “retirado de pauta”, evidenciando as posições opostas sobre o tema.
O tema ambiental, por fim, aparece nos dois documentos, novamente em contraste. No Campo Unitário, entra-se no tema a partir da demanda por políticas de recuperação, preservação e conservação ambiental, geração de energia sustentável e proteção aos biomas. Na CNA, o agro – como se denominam – é apresentado como setor que já atua no desenvolvimento sustentável, mas precisa receber retorno por isso, capitalizar o investimento. Para isso, pedem a implantação da política nacional de carbono e regulamentação do pagamento por serviços ambientais. Simplificação do licenciamento ambiental também é parte da agenda.
A análise das agendas da CNA e do Campo Unitário mostra que ambas apresentam pautas relacionadas ao desenvolvimento econômico, social e ambiental. No entanto, a comparação entre as agendas indica divergências quanto ao significado deste desenvolvimento. As propostas da CNA não colocam questionamentos quanto ao modelo dominante de produção agrícola no país: a grande produção, associada ao uso generalizado de agrotóxicos, e destinada à exportação. As propostas do Campo Unitário tensionam esse modelo. Isto se verifica, por exemplo, na abordagem da questão social e da segurança alimentar. Para a CNA, a questão da segurança alimentar se resolve pela viabilização do consumo por meio de programas de transferência de renda. Além de não mencionar questões sociais específicas do rural brasileiro, a proposta pressupõe que os problemas sociais e de fome no campo são somente uma questão de renda, sem se preocupar em fortalecer a produção das famílias mais vulneráveis. Para o Campo Unitário, o fortalecimento da produção familiar é pauta relevante e deve ser associado ao incentivo à produção de alimentos destinados a grupos mais vulneráveis por meio de políticas como o PAA. Com relação ao meio ambiente, a CNA se concentra em medidas de redução da emissão de carbono e não aborda os impactos ambientais do uso de agrotóxicos. Já o Campo Unitário propõe uma política de redução do uso de agrotóxicos e problematiza seus impactos no meio ambiente e na saúde dos consumidores de alimentos. Em resumo, as intervenções da CNA para pautar os atuais debates sobre alimentação e meio ambiente apontam para a conservação do atual modelo de produção agrícola, enquanto o Campo Unitário procura reformá-lo.
É patente a relevância que a questão dos territórios indígenas ocupa em ambas as agendas, apontando para o deslocamento das questões fundiárias para esta pauta. Contudo, as preocupações são distintas. No documento do Campo Unitário, as demandas por demarcação e proteção dos territórios já demarcados são reafirmadas diversas vezes. Na CNA, a questão também é relevante, mas o foco é na defesa de medidas que freiem as demarcações em favor da expansão das terras do agronegócio.
*Ellen Gallerani Corrêa é professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Alagoas (IFAL). Doutora (2018) e mestre (2012) em Ciência Política pela Unicamp. Pesquisa sobre trabalho e sindicalismo rural, agricultura familiar e movimentos sociais do campo.
**Priscila D. Carvalho é pesquisadora no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (Projeto Inova Juntos). Pesquisadora do INCT IDDC. Investiga a atuação de atores coletivos em processos democráticos, com ênfase na transnacionalização de movimentos sociais e sindicatos rurais e percepções de cidadãos sobre autoritarismo e democracia. Doutora em Ciência Política pela UFMG.