por Eduardo Barbabela
Helena Martins*
Eduardo Barbarela**
Ataques às urnas, defesa de tratamento precoce contra o coronavírus, desmatamento como resultado de causas naturais. Essas e outras alegações já fartamente repetidas – e desmentidas – vieram novamente à tona na entrevista concedida por Jair Bolsonaro (PL) ao Jornal Nacional, a primeira da série de entrevistas com os presidenciáveis. Ainda que num tom mais comedido, o candidato à reeleição manteve a estratégia de falar para seu público, sem mudar o discurso que vem desenvolvendo ao longo do mandato. Ao contrário, as teorias conspiratórias foram acompanhadas de frases rápidas replicáveis nas redes sobre “liberdade de expressão” e fazer “cumprir a lei”. Nem mesmo a suspeição sobre as eleições foi deixada de lado, apesar da insistência do âncora William Bonner em arrancar compromisso com o resultado das eleições. No máximo, Bolsonaro afirmou que “serão respeitados os resultados das urnas, desde que tenhamos eleições limpas e transparentes”.
Nas redes, a conversação sobre a entrevista foi expressiva, o que mostra a importância da TV e do Jornal Nacional, que registrou 32 pontos em média durante a participação de Bolsonaro. Logo no início, em uma tentativa de direcionar críticas que tem recebido ao interlocutor, Bolsonaro disparou contra William Bonner: “Fake news da sua parte”, afirmou, ao ser questionado sobre xingamentos contra ministros do Supremo Tribunal Federal. A resposta gerou réplica de Bonner, que insistiu na validade de sua afirmação. Nas redes, o confronto entre o presidenciável e o jornalista já estava anunciado. Antes de a entrevista começar, o Twitter registrava 34 mil postagens com a hashtag #BolsonaroNoJN e 23 mil sobre Bonner, 2o e 6o lugares no ranking dos principais assuntos às 20h23. Depois do embate, Bonner era o tema de 72,8 mil tweets. #BolsonaroNoJN, de 47,3 mil, 1o e 3o no ranking, respectivamente. Uma hora e meia após o início da entrevista, havia 446 mil tweets sobre Bonner, o assunto mais comentado de então. Em segundo, #GloboLixo, com 187 mil menções. #JornalNacional já ocupava a 3a posição, seguida de temas tratados na entrevista, como Amazônia e centrão. As hashtags e os principais posts mostram uma disputa nessa rede, com predomínio de conteúdos críticos ao atual presidente.
Dados do monitoramento do Observatório das Eleições apontam que há um desequilíbrio enorme entre os pólos políticos no Facebook. Acompanhando 44 perfis de destaque das redes bolsonarista e lulista nas 12 horas que se seguiram à entrevista, percebemos que o conjunto dos principais agentes do campo do atual presidente publicou 64 postagens, gerando 2.423.686 interações. A rede de Lula, por sua vez, publicou 57 posts e gerou 159.851 interações nessas publicações. O bolsonarismo aparece com uma média de interações 13,5 vezes maior do que a lulista.
Tabela 1. Engajamento no Facebook do lulismo e do bolsonarismo 12 horas após a entrevista
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Nº de postagens |
Total de Interações |
Média de Interações por post |
Bolsonarismo |
64 |
2.423.686 |
37.870,09 |
Lulismo |
57 |
159.851 |
2.804,40 |
Os conteúdos com maior repercussão foram postados pela conta oficial de Bolsonaro, sem concorrente à altura. Em primeiro lugar, Bolsonaro reproduz um vídeo de seu encontro com apoiadores no Projac, em Curicica, no Rio de Janeiro. O vídeo, transmitido ao vivo após a entrevista, apresenta uma pequena fanfarra que esperava o presidente nos estúdios da Globo. Ao final, já dentro de um carro, Bolsonaro convida seus apoiadores a participarem dos eventos do dia 7 de setembro no Rio de Janeiro. A postagem obteve mais de 1,18 milhão de visualizações nas 12 horas que se seguiram à participação na Globo.
A segunda publicação com maior taxa de interações é também de Bolsonaro. Trata-se de um texto em que critica a Globo de forma irônica: “Foi uma enorme satisfação participar do pronunciamento de William Bonner Kkkkk. Na medida do possível, com muita humildade, pudemos esclarecer e levar algumas informações que raramente são noticiadas em sua emissora”. Às 8h50 do dia seguinte ao debate, o conteúdo registrava 214 mil reações, 28 mil comentários e 9,9 mil compartilhamentos. Também obteve muito engajamento o vídeo com trecho da entrevista em que o candidato afirma ter enfrentado dificuldades como guerra, pandemia e seca, mas ressalta que “nós fizemos todo o possível para que a população sofresse o menos possível”. O post, que busca dar respostas aos impactos da crise econômica que afeta os brasileiros, somava, na manhã da terça-feira, 125 mil reações, 14 mil comentários e 19 mil compartilhamentos. A postagem de Bolsonaro assistindo ao SBT nos bastidores da Globo, antes da entrevista, recebeu 7,3 mil comentários e 3,6 mil compartilhamentos.
Tabela 2. Publicações do lulismo e do bolsonarismo 12 horas após a entrevista no Instagram
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Nº de postagens |
Total de Interações |
Média de Interações por post |
Bolsonarismo |
14 |
2.329.363 |
166.383 |
Lulismo |
27 |
3.175.032 |
117.594 |
No Instagram, a disputa foi menos desigual e com menos postagens, apenas 41. Do total de posts, 27 foram do núcleo lulista (66%), enquanto 14 foram do núcleo bolsonarista (34%). O núcleo do ex-presidente Lula conseguiu maior quantidade bruta de interações: 3.175.032, contra 2.329.363 da rede bolsonarista. No entanto, quando comparamos as médias, o resultado é pró-Bolsonaro: a rede do atual presidente teve uma média de 166.383 interações por post, enquanto a rede Lulista teve uma média de 117.594 interações por publicação.
Bolsonaro e seus apoiadores também dominaram o topo das publicações com maior número de interações no Instagram. Em primeiro lugar, está uma reprodução de um tweet do presidente agradecendo a audiência de sua entrevista no Jornal Nacional e ironizando a atuação de William Bonner. Publicações de Bolsonaro também aparecem na segunda e terceira posições.
Em suma, podemos concluir que tanto no Facebook como no Instagram, o bolsonarismo atuou de forma mais eficiente do que o lulismo. Mesmo que não seja possível avaliar se as publicações furaram as respectivas bolhas ou se as interações foram impactadas pela presença ou não de robôs, os dados demonstram que o bolsonarismo aproveitou melhor o evento para fortalecer sua narrativa dentro das redes sociais, principalmente no Facebook. No Instagram, a situação se demonstrou mais equilibrada, apesar de a rede de Bolsonaro se apresentar mais eficaz na média – a rede de Lula alcançou maior número de interações e publicou um maior número de posts. A estratégia de overposting pode ser uma alternativa para conseguir superar os altos números de seguidores que as páginas bolsonaristas têm, hipótese que se mostrará válida ou não nos próximos passos da campanha.
- Helena Martins é professora de Comunicação Social – Publicidade e Propaganda da UFC e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFC. Pesquisadora do Telas e do Obscom-Cepos.
- Eduardo Barbabela é doutor em Ciência Política pelo IESP-UERJ. Pesquisador do IESP-UERJ e subcoordenador do Projeto Manchetômetro.
por Eliara Santana
Eliara Santana*
Em um culto em Belo Horizonte para homenagear um pastor, no começo de agosto, a primeira-dama Michelle Bolsonaro, ao lado do marido, disse que há no Brasil uma “guerra do bem contra o mal” e que o Palácio do Planalto já foi um lugar “consagrado aos demônios”.
Também em agosto, o pastor bolsonarista Marco Feliciano disse que o PT é expressão do mal e que, se Lula ganhar, vai fechar templos e igrejas e calar os pastores.
O jornal Folha Universal, no ano passado, fez vários editoriais comparando o ex-presidente Lula ao demônio e ao mal.
Em janeiro deste ano, circulou pelas redes sociais um vídeo editado para simular que o ex-presidente Lula conversava com o demônio.
A ideia do demônio, como vemos, volta com força à cena nacional e ao processo eleitoral, por vários atores. Uma ideia forte que se alinha muito bem ao potente sistema de desinformação que sacode o Brasil com intensidade desde as últimas eleições, em 2018. Nesse contexto, eu quero convidar vocês a percorrerem o caminho da construção discursiva do demônio no escopo do ecossistema das fake news para entendermos porque, de fato, ele é um “personagem” importante.
Um poderoso ecossistema
O Brasil vivencia, com as eleições de 2018, a intensificação de um processo de desinformação que se torna pouco controlável a partir de 2020, com a pandemia de Covid-19. É um processo bem estruturado que não se restringe ao Brasil, um fenômeno mundial que solapa democracias de Norte a Sul. Nesse contexto, a desinformação precisa ser entendida como um fenômeno estruturado, intencional, que se consolida nas sociedades contemporâneas e que tem fortes impactos em vários contextos – social, político, econômico, de saúde –, o que compromete seriamente o funcionamento da esfera pública, como ressalta Carlsson (2019).
Partindo desse sistema macro, eu situo o ecossistema brasileiro de fake news, que tem características bem marcantes: aporte e sustentação do poder público e de setores do empresariado, grande financiamento, produção intencional e profissional de conteúdo falso envolvendo diversos atores (por exemplo, sites com estrutura de produção de conteúdo, influenciadores que recebem benesses, representantes do poder público, entre outros) e enorme capilaridade para disseminar o conteúdo. Esse ecossistema, que nada tem de aleatório ou casual – pois é muito bem estruturado –, encontrou no país um campo bastante fértil para se desenvolver (lembrando que a capilaridade envolve a interface com outros sistemas – portanto, não se trata somente de “espalhar conteúdo” pela internet).
É um ecossistema que, com essas características, tem conseguido causar enormes estragos ao Brasil, em vários setores. Recentemente, está contribuindo para tumultuar bastante o processo eleitoral, colocando em xeque instituições já consolidadas em sua atuação e processos exitosos, como é o caso do sistema eleitoral brasileiro, além de propagar ataques a atores institucionais, como ministros do STF e do TSE.
O fenômeno das fake news, em seu ecossistema brasileiro, não se esgota, portanto, apenas na disseminação das notícias falsas ou falseadas – há um processo de produção profissional de conteúdo que envolve muitos atores e financiamento. Além disso, esse ecossistema se retroalimenta e está em interface com outros sistemas, como o de informação (tradicional – mídia corporativa) e o religioso, numa capilaridade gigantesca.
E então voltamos ao demônio da primeira-dama e seu papel nas eleições.
O demônio é o inimigo a combater
O demônio, como construção discursiva, liga-se à ideia de um inimigo poderoso e que precisa ser combatido. Nós, ao nos comunicarmos, não pronunciamos palavras somente – pronunciamos verdades ou mentiras, coisas boas ou más, certezas inquestionáveis, pois a palavra comporta valores e crenças e visões de mundo. Portanto, o demônio trazido à tona recentemente pela primeira-dama e por outros atores funciona muito bem nesse ecossistema de fake news, pois o termo cristaliza a ideia de um inimigo a combater a partir de um apelo a valores cristãos num cenário de disputas polarizadas.
Essa ideia se consolida e se espalha por várias instâncias, numa retroalimentação que envolve vários sistemas – o demônio como ideia não se restringe à fala de Michelle naquele momento no culto, mas se espalha pelas redes sociais, pelos sites bolsonaristas, pela pregação do pastor na igreja, pelos artigos no jornal de maior circulação no país (que é da igreja). Portanto, não é uma expressão aleatória e nem um demônio qualquer – é uma entidade capaz de provocar os eleitores religiosos ainda indecisos, ou que estavam migrando para outros candidatos que não Bolsonaro, e interpelar fortemente esse eleitor naquilo que é sua crença ou seu medo.
As categorias religiosas não são levadas aleatoriamente para o discurso num país bastante religioso como o Brasil. Elas dialogam de perto com as crenças, os valores, os medos, as incertezas das pessoas, e por isso são tão presentes no escopo das fake news – vale lembrar que a visão de mundo dos indivíduos não é racional todo o tempo. E em tempos de incertezas, medo do futuro, precarização da vida, a ideia de um demônio a combater pode ser efetiva sim.
E no bem estruturado ecossistema brasileiro de fake news, essas construções discursivas encontram um caminho para se consolidarem, para se dissiparem, para se reproduzirem, para alcançarem mais e mais pessoas, fortalecendo-se contra os desmentidos e provocando a manifestação apenas reativa e tardia dos atingidos.
Portanto, é imperioso entendermos o demônio de Michelle no contexto desse ecossistema brasileiro de fake news no cenário de um acachapante sistema de desinformação – estruturado e estruturante. Uma ideia de bem contra o mal, de combate ao inimigo que destrói famílias; ideia que é trazida por uma mulher jovem, que defende a família, que se posta ao lado do marido presidente, aquele que perdeu uma parte expressiva do eleitorado feminino exatamente por ser abertamente machista e misógino.
Sobretudo, o discurso que traz o demônio à cena nacional serve muito bem para consolidar a agenda ultra-conservadora da extrema-direita e para tirar o foco de temas e pautas que realmente interessam ao país e que deveriam estar sendo muito discutidas: fome, desemprego, economia estagnada, aumento acentuado da depressão na população, corte de verbas públicas para a educação e a saúde, entrega da Petrobras, privatização da Eletrobrás, entre tantos outros.
Mas, por ora, metaforicamente ou não, o capeta está roubando a cena no Brasil de Bolsonaro.
*Eliara Santana é Jornalista, doutora e mestre em Linguística e Língua Portuguesa, com foco na Análise do Discurso. É pesquisadora do Observatório das Eleições (INCT IDDC), pesquisadora colaboradora do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL/UNICAMP) e pesquisadora do grupo de estudos Multilinguismo e Interculturalidade no Mundo Digital (CLE/UNICAMP). É colunista do portal de notícias Viomundo e produz o blog Eliara Santana (www.eliarasantana.com.br), onde mantém análises sobre o Jornal Nacional, a mídia em geral, desinformação e letramento midiático, entre outros temas.
por Alexandre Arns Gonzales
O papel das mídias sociais na construção da comunicação eleitoral – tendo em vista o interesse das empresas no crescimento de seus negócios
Alexandre Arns Gonzales*
A eleição brasileira de 2022 coloca o papel das mídias digitais em evidência, não somente pela relevância que cada tipo de mídia tem na construção da comunicação eleitoral, mas também pelo fato de que essas mídias constituem uma infraestrutura de serviços de propriedade de empresas com interesses econômicos e políticos. Não são serviços isentos dos interesses de crescimento dos seus negócios.
A Justiça Eleitoral, ao firmar memorandos de cooperação com as empresas, reconhece a sua relevância, enquanto atores influentes no processo eleitoral do país. Neste ano, foram formalizados com oito empresas o compromisso delas com a integridade eleitoral: Google e Facebook (hoje rebatizado de Meta) e suas respectivas subsidiárias, Twitter, TikTok, Kwai, LinkedIn, Telegram e Spotify.
Fonte: Elaborado pelo autor a partir de dados do TSE
Embora o serviço de cada empresa seja diferente em suas funcionalidades e especificidades, os chamados “Memorandos de Entendimentos” firmados têm um padrão comum em suas diretrizes. Esse padrão está estruturado em três eixos: 1) disseminar informações oficiais e confiáveis; 2) capacitar as equipes dos órgãos da Justiça Eleitoral e os eleitores para compreensão do fenômeno da desinformação e comportamento inautêntico; e, por fim, 3) adotar medidas preventivas e repressivas em casos de desinformação.
As medidas previstas nos documentos, bem como as descritas no Programa Permanente de Enfrentamento à Desinformação, refletem o acúmulo obtido a partir das políticas ensaiadas desde 2018, primeiro ano em que houve esse tipo de cooperação.
O ineditismo, em 2018, da cooperação das empresas com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) ocorre em um contexto em que a contradição da “promessa” está exposta: ao invés de assegurar os meios para aprimorar as eleições e a participação da cidadania, as mídias digitais e o modelo de negócios viabilizaram o emprego de técnicas para desestabilização dos processos eleitorais.
Quem firmou, em 2018, o compromisso de “combater a desinformação” foram Google e Facebook, mas o Twitter também participou dos diálogos iniciais com o TSE. O Twitter, junto com as outras duas empresas, apresentou ao Conselho Consultivo sobre Internet e Eleições, criado pelo TSE, as medidas que a empresa pretendia implementar à época para tratar o fenômeno da desinformação. Contudo, a empresa não assinou o memorando, justificando mais tarde à imprensa que não considerou possível implementar suas políticas em tempo para as eleições.
Ainda assim, tanto Google, Facebook e Twitter participaram do Fórum Nacional da Propaganda Eleitoral nas Mídias Digitais, realizado no dia 1º de março daquele ano, gravado pelo Tribunal Regional Eleitoral (TRE) do Mato Grosso. Já naquela ocasião, o dilema da transparência era abordado pelas empresas e a justificativa apresentada era que a exposição de informações sobre o funcionamento de seus algoritmos e ferramentas poderiam ser abusadas pelos atores maliciosos. Em 2020, durante uma oficina do Google com servidores da Justiça Eleitoral, visando as eleições municipais, a justificativa pela falta de transparência.
Na perspectiva dos interesses privados das empresas, o argumento é coerente e, por isso, não se pode esperar que o avanço desta discussão ocorra de modo voluntário por parte delas. A cobrança por transparência sobre a tomada de decisão das empresas no que diz respeito à definição dos critérios para a moderação de conteúdo, bem como da remoção, suspensão ou sanção sobre determinado conteúdo ou conta, não diz respeito somente a garantir ao usuário acesso a informações sobre o serviço que ele está utilizando.
A transparência é necessária para orientar o debate público sobre o papel que essas empresas e seus serviços desempenham em processos políticos, como as eleições, e construir mecanismos de controle pelo interesse público sobre elas, sobretudo se optam por priorizar seus lucros em detrimento da integridade eleitoral.
Por exemplo, documentos tornados públicos por Frances Haugen, ex-funcionária do Facebook, informam que a empresa estimava que estava removendo menos de 5% do conteúdo identificado como discurso de ódio. Em depoimento ao congresso estadunidense, Haugen relatou que medidas para intervir nestes conteúdos foram apresentadas à presidência da empresa, mas a decisão foi por não implementá-las porque afetariam as métricas gerais de engajamento da empresa e, consequentemente, os rendimentos financeiros.
Esse caso exemplifica a importância de mecanismos que tragam informações acerca de como as medidas são tomadas, como atuam no trabalho humano e como funcionam as ferramentas de automação na moderação; mas destaca, também, a necessidade de mecanismos de auditoria dessas informações. A própria Justiça Eleitoral poderia exigir a instituição de mecanismos que avançassem na direção de tornar pública estas informações para as eleições no Brasil. Os acordos da Justiça Eleitoral com as empresas já são um avanço no tema da transparência das plataformas digitais nas eleições, mas são insuficientes para fiscalizar efetivamente o compromisso que elas assumiram.
**Alexandre Arns Gonzales – Doutor em Ciência Política, pesquisador colaborador do Instituto em Ciência Política (IPOL) da UnB e bolsista de pós-doutorado pelo CNPq
por Helena Martins
Publicado na Mídia Ninja
Há quatro anos, o Brasil foi surpreendido com a eleição de Jair Bolsonaro, mobilizada, entre outros fatores, pela avalanche de desinformação que promoveu. De lá para cá, cresceram os debates sobre o tema, que passou a ser mais estudado pela academia e enfrentado por instituições como o Supremo Tribunal Federal (STF) e a sociedade civil. Uma situação que gerou ampliação da conscientização da população, como tratado no texto que inicia a cobertura sobre desinformação e redes neste Observatório das Eleições. Apesar disso, a preocupação com a possível repetição do fenômeno de 2018 é crescente. Três questões devem nos deixar em alerta: a manutenção de estruturas desinformativas, a ausência de regulação efetiva e a atuação das plataformas digitais.
Não houve o desmonte das estruturas de desinformação. Grupos organizados e financiados por recursos públicos e privados, fábricas de likes, vazamento e venda de dados, entre outros elementos, permanecem uma realidade facilmente verificável nas redes. Não houve resultados efetivos da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das Fake News. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) também não condenou Bolsonaro pelas ações nas eleições presidenciais. As investigações levadas a cabo pelo Supremo Tribunal Federal (STF) resultaram em prisões e vigilância, mas trataram apenas dos ataques ao sistema eleitoral e às instituições, desinformação que o próprio Bolsonaro, como no pronunciamento para embaixadores, continua a propagandear. Por outro lado, as defecções no interior do grupo que levou Bolsonaro à Presidência devem ser consideradas, assim como uma melhor compreensão do Judiciário no trato com esses problemas.
A manutenção das estruturas desinformativas alcançam, portanto, também as instituições, governo federal em primeiro plano, e veículos de mídia tradicional, que se beneficiam pela ausência histórica de acompanhamento do setor e de responsabilização em caso de problemas, ao passo que constroem novas estratégias de disputa ideológica. Reportagem da revista Piauí deste mês sobre a Jovem Pan é bastante esclarecedora. A matéria da jornalista Ana Clara Costa trata da adesão do grupo ao bolsonarismo, detalhando as relações políticas e estratégias levadas a cabo para dar visibilidade aos discursos de extrema direita, inclusive golpistas.
A Jovem Pan possui 66 afiliadas em vinte estados brasileiros, de acordo com dados de 2017, e no último período estreou na TV, com lançamento da TV Jovem Pan News em 2021. Acessível pela TV por assinatura e parabólica, lançou-se afirmando chegar “ao mercado como antídoto contra a desinformação no país”. Uma estratégia que nos faz lembrar Donald Trump, que se referia aos conteúdos midiáticos críticos ae seu governo como “fake news”. A revista também ganhou destaque no YouTube, onde alcançou liderança entre as rádios com transmissão ao vivo pela plataforma. Como a Piauí revela, tamanha projeção foi alcançada com o apoio do Google, que direcionou 300 mil dólares para a Jovem Pan em 2018. O grupo conseguiu, a partir de negociação com a plataforma digital, vender publicidade diretamente em seu canal e obter benefícios na moderação efetivada por ela. Em vez do uso de inteligência artificial para possível remoção de conteúdos, a Jovem Pan tem o privilégio de contar com uma equipe responsável pela parceria. Assim, a despeito de possíveis infrações à regulação, tanto os canais tradicionais como o virtual alcançaram ampla projeção.
Questões como transparência e o poder de derrubar ou não conteúdos de forma unilateral poderiam ter sido amenizadas com a aprovação do Projeto de Lei 2630, que ficou conhecido como PL das Fake News. O projeto, após anos de debate e várias modificações, muitas propostas por grupos da sociedade civil atentos ao tema, como a Coalizão Direitos na Rede, incorporou como eixo central a transparência das plataformas. Caso tivesse sido tornada lei, obrigaria a exposição de informações que, hoje, apenas as corporações possuem. Além disso, estavam previstas outras medidas, como a instituição de um devido processo para que os usuários não fiquem de mãos atadas diante de decisões questionáveis das empresas. A manutenção de links desinformativos no YouTube e em outras redes sociais, que chegou ao conhecimento da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid, é um exemplo do tipo de problema que poderia ser evitado. Havia uma expectativa de que o projeto fosse votado no fim de 2021, mas interesses de políticos e a pressão das plataformas criaram obstáculos para isso. Com forte lobby no Congresso Nacional e uma campanha pública nas redes que controlam, tais corporações contribuíram para que chegássemos às eleições mais frágeis.
É fato que algumas medidas foram tomadas pelas plataformas no combate à desinformação, motivadas especialmente pela circulação de conteúdos negacionistas sobre a pandemia e devido à preocupação com as eleições. Nesse sentido, firmaram acordo de cooperação com o TSE. No Facebook e no Instagram, alertas passaram a acompanhar conteúdos sobre temas sensíveis. O WhatsApp tem feito campanha pública informativa nas redes. O Twitter incluiu o Brasil em programa teste de ferramenta que indica publicações que podem levar a fraudes eleitorais ou colocar saúde pública em risco. O YouTube, por sua vez, disponibilizou página especial para combater a desinformação na qual trata de “Mitos e fatos sobre desinformação e conteúdos impróprios no YouTube” e presta esclarecimentos sobre políticas de conteúdo da plataforma.
Há, portanto, alguns avanços, mas a efetividade dessas medidas é questionável, sendo verificadas brechas que permitem desinformação. Ademais, não houve mudanças na lógica de funcionamento das redes, principalmente quanto ao uso de dados para produção de públicos segmentados e possibilidade de impulsionamento de anúncios, fatores centrais para as campanhas desinformativas alcançarem seus alvos e se beneficiarem da opacidade dos dark posts. Ao contrário, o TSE liberou o impulsionamento já na pré-campanha. A Biblioteca de Anúncios do Facebook registra que R$209,412,085 foram empregados em anúncios sobre política e eleições desde agosto de 2020. O principal anunciante da categoria é o Brasil Paralelo. Apenas nos últimos noventa dias, a produtora, também vinculada a conteúdos desinformativos, investiu R$ 3,716,069 na promoção de posts.
O Brasil Paralelo também é o principal anunciante no Google, segundo a reportagem. Todavia, como a campanha “BlackRock Do Something” alerta, a versão brasileira do Relatório de Transparência de Publicidade Política da corporação está incompleto, apresentando dados apenas de parlamentares federais e de candidatos a cargos nessa esfera, daí a cobrança para que a segunda principal acionista, a BlackRock, faça algo. A desigualdade no tratamento conferido a países como o Brasil também é apontada por Frances Haugen, ex-funcionária do Facebook que denunciou políticas da empresa, como a ausência de profissionais para lidar com moderação em países não anglófanos. No Brasil no último mês, Haugen falou da preocupação com as eleições que se aproximam e ajudou a divulgar uma carta assinada por mais de noventa organizações pedindo mudanças nas plataformas.
Ainda que essas questões não esgotem o problema das redes, elas são centrais porque impactam a organização de um ambiente fundamental para o debate público, especialmente neste período eleitoral. Poderíamos estar mais preparados para lidar com ele, mas os riscos ainda devem nos manter alertas.
* Helena Martins é professora da UFC. Doutora em Comunicação pela UnB, com sanduíche no Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade de Lisboa (ISEG). É editora da Revista EPTIC. Coordenadora do Telas – Laboratório de Tecnologia e Políticas da Comunicação e integrante do Obscom / Cepos.
por Marisa von Bülow
Marisa von Bülow
Publicado no GGN
Quando se fala sobre redes sociais e eleições no Brasil, um tema sempre mencionado é o do impacto negativo da difusão de notícias falsas. Não é à toa. As eleições presidenciais de 2018 serão para sempre lembradas como o pleito no qual as mentiras dominaram os debates, sendo ampla e rapidamente difundidas via redes sociais. Em 2022, as notícias falsas continuam sendo um desafio importante, mas temos outros desafios que vão além dessa questão e que merecem toda a nossa atenção.
Apesar de as notícias falsas continuarem sendo tema central, há mudanças relevantes em termos da consciência da opinião pública sobre esse fenômeno. Em 2018, dados da pesquisa A Cara da Democracia, produzida pelo Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação, mostraram que apenas 23% dos entrevistados admitiam ter lido, ouvido ou visto notícias falsas sobre política nos seis meses anteriores. A mesma sondagem, realizada em nova rodada da pesquisa em 2022, mostrou que essa porcentagem subiu para 54% dos entrevistados.
Essa mudança deve muito à mobilização da sociedade civil brasileira sobre o tema. Desde antes de 2018, acadêmicos, ONGs, jornalistas e movimentos sociais têm promovido campanhas de checagem de fatos e denunciado sistematicamente notícias falsas. Mas ela também tem a ver com a experiência traumática vivida no país durante a pandemia. Frente a uma verdadeira avalanche de notícias falsas, que iam das teorias da conspiração sobre a origem do vírus à defesa criminosa de remédios cuja eficácia não estava comprovada, houve uma ampla mobilização de internautas. Profissionais da área da saúde, cidadãos comuns e organizações da sociedade civil foram às redes sociais para oferecer conteúdo confiável e de fácil compreensão para uma população que, em contexto de isolamento, passou a depender ainda mais da internet para obter informações. Segundo a pesquisa TIC Domicílios, 81% da população conectou-se à Internet em 2021, um aumento de 7 pontos em relação ao período pré-pandemia.
A ampliação da consciência da opinião pública sobre notícias falsas é positiva, porque, para combatê-las, não basta a atuação das plataformas e nem das autoridades eleitorais. As reações desses atores são, em geral, tardias e parciais. Dependemos dos próprios usuários de redes sociais se quisermos ter qualquer chance de diminuir o impacto negativo das notícias falsas no processo eleitoral. No entanto, ainda precisamos avançar muito. O fato de, em 2022, quase metade dos respondentes da pesquisa não admitirem ter tido contato com notícias falsas sobre política é um dado preocupante e, francamente, estarrecedor.
Para além das notícias falsas, temos outros desafios, que não existiam ou não eram tão claros em 2018. O ecossistema digital está ainda mais fragmentado e, portanto, difícil de monitorar (o que é diferente de censurar, vale sempre a pena esclarecer). Em 2018, a novidade era o WhatsApp. Hoje, temos também o Telegram, o TikTok e outras plataformas. É um universo ainda mais complexo. E o problema é que nós adotamos uma mentalidade de plataforma única, quando o seu uso é multiplataforma. Alguns exemplos dessa dinâmica: prints do tweet de Anitta declarando o voto em Lula foram disseminados em grupos de WhatsApp e no Instagram; vídeos que promovem a violência política ou atacam o sistema eleitoral aparecem primeiro no YouTube, mas são rapidamente compartilhados em grupos de WhatsApp e em canais no Telegram.
Isso nos leva ao segundo desafio que ganha destaque no pleito de 2022: a circulação de discursos de ameaça à democracia nas redes sociais digitais. Em parte, esses discursos são baseados em notícias falsas sobre a confiabilidade do sistema eleitoral, os resultados das pesquisas eleitorais e o funcionamento das urnas eletrônicas. Mas também vão muito além. São discursos que promovem a violência e o ódio, alguns baseados em mentiras e conspirações, outros baseados em ideologias autoritárias.
Todos esses desafios estão no escopo do trabalho do Observatório das Eleições 2022, uma colaboração entre pesquisadores de diversas instituições brasileiras, cujo objetivo é coletar dados e oferecer análises sobre o processo eleitoral. Nas próximas semanas, o Observatório acompanhará de perto o uso das redes sociais digitais pelos principais atores políticos brasileiros. Somamos, assim, os nossos esforços a um conjunto amplo de iniciativas que, na sociedade civil e nas instituições políticas, nas redes e fora delas, estão preocupadas em garantir a integridade do processo eleitoral. Afinal, está em jogo nada mais nada menos do que a nossa democracia.
* Professora da UnB e pesquisadora do Observatório das Eleições 2022.