7 de setembro: a segunda captura

7 de setembro: a segunda captura

Carlos Ranulfo Melo

Publicado no Mídia Ninja

A Independência do Brasil tem várias versões. Uma delas fala das margens do Ipiranga, onde D. Pedro I corajosamente nos livrou de Portugal. A partir de então, o país teria seguido sua trajetória com ordem e progresso. 

Ao conferir todo o protagonismo a Pedro I, essa versão nunca se lembra de dizer que o generoso monarca tratou a Independência como um favor feito por Portugal ao Brasil – o país, agora independente, começou sua trajetória devendo 2 milhões de libras esterlinas aos colonizadores. Outros 3 milhões, segundo Jorge Caldeira, em História da Riqueza no Brasil,  foram embolsados “pelo monarca para seus projetos pessoais ou pagamento aos ingleses. No total, um valor que equivalia a algo como 18% do PIB”.

Como se não bastasse, a Independência nos legou um estado escravocrata e monarquista. Sem esses dois traços do Brasil independente não há como explicar a manutenção da brutal desigualdade econômica e social que até hoje marca o país. A monarquia deu o seu melhor para impedir que, ao longo do século XIX, o país se tornasse uma sociedade de mercado e se abrisse à revolução industrial. O resultado foi a estagnação. Novamente é Jorge caldeira quem conta: “em 1800, os Estados Unidos contavam com 5 milhões de habitantes, ao passo que o Brasil tinha 4,4 milhões. Nesse momento o porte das duas economias também era semelhante. A partir daí foi se abrindo um fosso”. No Brasil, a renda per capita, entre 1820 e 1900, passou de 670 para 704 dólares anuais. Nos EUA o salto foi de 1,3 mil para 4 mil dólares. Não por coincidência, diz Caldeira, referindo-se aos Estados Unidos, “a maior aceleração se deu no período posterior à guerra que pôs fim à escravidão”.

Seja como for, quem estuda o tema sabe que a história da Independência não pode ser contada sem acrescentar ao famoso grito, uma série de batalhas travadas não apenas por soldados, mas também por setores populares. Ao “esquecer” esse fato, a versão oficial contribuiu para que ocorresse a primeira captura da Independência. A data transformou-se em exclusividade dos militares, suas paradas e os tanques que, na ocasião, não estivessem soltando fumaça. Muitos, é preciso reconhecer, gostavam e ainda gostam de ver o desfile militar. Colégios treinavam as crianças a marchar. Mas para a esmagadora maioria, o 07 de setembro é bom mesmo quando cai no meio da semana. 

Acabamos de assistir a segunda captura da Independência. Desta vez pelo Presidente da República que decidiu aproveitar não apenas a data, mas os recursos públicos, para instalar o seu parquinho. Lembrou-se é claro de tirar a faixa presidencial ao pular de um palco para o outro ao lado, mas a essa altura do campeonato o formalismo é ridículo.

Luis XIV foi imortalizado pela frase “L’État c’est moi”. Bolsonaro prefere dizer que as Forças Armadas são dele. Faz sentido: essa é a parte do Estado que ele mais aprecia. Não por coincidência, o que marca essa segunda captura é que os dois agentes captores estão irmanados. Se Bolsonaro não teve o menor pudor de transformar um evento do Estado em comício de campanha, os militares foram coniventes e desfilaram com suas fardas no ato do candidato à reeleição. Ao comemorar 200 anos, a Independência do Brasil passou vergonha. 

Aqui não está em jogo quanta gente foi aos atos de 07 de setembro. Tinha muita agente. Nem se isso, além de animar a tropa, trará votos para o candidato. É duvidoso que o faça. O que importa é que temos um assassino em série de leis eleitorais a solta. A questão é saber o que o Tribunal Superior Eleitoral fará diante do escárnio. 

 

A perda de vigor das redes bolsonaristas e as ações do TSE

A perda de vigor das redes bolsonaristas e as ações do TSE

Eliara Santana

Leonardo Avritzer

Publicado na Carta Capital

Entre os muitos fenômenos atípicos das eleições de 2022, um tem sido pouco analisado até o momento em relação à campanha do presidente Jair Bolsonaro: a sua dificuldade em manter, neste momento, uma vantagem significativa, nas redes sociais, em relação à campanha do ex-presidente Lula. Em 2018, a campanha de Jair Bolsonaro surpreendeu por dois motivos principais: primeiro, por romper completamente uma dinâmica de campanha que estava em vigor no Brasil desde meados do século 20, já com o advento da televisão, que tinha como base o tempo livre na TV aberta; segundo, por estabelecer vantagens significativas nas redes sociais em relação às outras campanhas. A maior parte dos analistas considerou que esse desempenho se manteria ao longo na campanha de 2022. 

 

No entanto, não é isso o que temos observado no desenrolar desta eleição. Vamos considerar os dados coletados em monitoramento das redes sociais (Twitter, Facebook e Instagram) nas últimas duas semanas de agosto, feito pelo Observatório das Eleições e o Manchetômetro. Em um período de um mês, considerando-se agosto, o ex-presidente Lula ganhou quase 72 mil seguidores no Facebook; no Instagram, o ganho foi de 738.978 seguidores.  Portanto, o ex-presidente Lula está crescendo mais nas redes e demonstrando força competitiva em relação a Bolsonaro – Lula cresce mais tanto em quantidade total quanto em percentual.

Ainda que o engajamento da campanha de Jair Bolsonaro ou de suas redes e de seus filhos seja significativamente superior ao engajamento das redes do ex-presidente Lula, quando verificamos o engajamento total na plataforma, já podemos constatar uma melhoria significativa no desempenho da campanha do ex-presidente Lula – e uma piora no desempenho das redes do presidente Bolsonaro.

O mesmo se observa em algumas situações de interação no Facebook. A que devemos essa mudança no perfil de engajamento da campanha bolsonarista? Neste artigo, trabalhamos com duas hipóteses.  

A primeira é o efeito que as ações do ministro do Supremo Tribunal Federal e presidente do TSE, Alexandre de Moraes, têm tido em relação às redes de desinformação bolsonaristas. Essas redes se constituíram como formas de ampliação das agendas do presidente Jair Bolsonaro, seja em suas lives semanais, seja em postagens nas redes sociais.   

A outra hipótese com a qual trabalhamos é a de uma enorme ampliação do engajamento nas redes do ex-presidente feita fundamentalmente pelo avanço em perfis nas redes sociais de atores distintos – especialmente artistas e influenciadores. 

 

Alexandre de Moraes e o combate ao financiamento da desinformação

 

Desde 2018, o Brasil observou se estruturar um verdadeiro ecossistema de desinformação, caracterizado por uma bem montada estrutura, com diversas ramificações, vários atores envolvidos, um esquema profissional de produção e disseminação de conteúdo falso e falseado, aporte do poder público e forte financiamento para manter a estrutura em funcionamento. Esse ecossistema foi e continua a ser responsável por uma verdadeira avalanche de fake news que confunde a população e impacta as instituições. Nesse ecossistema, a atuação das milícias digitais garantia o sucesso das agendas bolsonaristas e também a consolidação dos ataques às instituições, como o STF e o TSE.

Em julho de 2021, o ministro Alexandre de Moraes abriu o inquérito das milícias digitais antidemocráticas, com investigações centradas nos núcleos de produção, publicação e financiamento de fake news. À época, o ministro ressaltou que as investigações “apontaram fortes indícios da existência de uma organização criminosa voltada a promover diversas condutas para desestabilizar e, por que não, destruir os Poderes Legislativo e Judiciário a partir de uma insana lógica de prevalência absoluta de um único poder nas decisões do Estado”.

Naquele mês, levantamento da Polícia Federal no inquérito dos atos antidemocráticos mostrou que o Youtube pagou quase 7 milhões de reais – no período de 2018 a 2020 – a 12 canais de apoio a Bolsonaro, canais esses que eram suspeitos de envolvimento nos protestos contra o Supremo Tribunal Federal e o Congresso em 2021. É um valor bastante considerável, tendo sido apurado apenas para uma plataforma. 

Em agosto deste ano, o ministro Alexandre de Moraes autorizou a PF a fazer busca e apreensão contra sete empresários que, num grupo de rede social, defendiam golpe de Estado caso o candidato Lula vença as eleições. Essas ações do ministro têm grande impacto, portanto, em um dos braços desse ecossistema, qual seja, o financiamento do esquema de produção e disseminação de fake news. Pois, nessa estrutura de desinformação que se consolida com o bolsonarismo, a produção profissional de fake news e a disseminação eficaz do conteúdo sempre demandaram grande aporte financeiro. 

 

O efeito dos novos atores

 

A segunda hipótese que levantamos para o arrefecimento do engajamento das redes bolsonaristas refere-se ao papel de atores específicos, como artistas e influenciadores. Além dos artistas badalados que estão declarando apoio a Lula – como a cantora Anitta, que recentemente recebeu o VMA pela melhor música latina –, um ator importante que queremos destacar é o deputado André Janones, recentemente incorporado à campanha lulista. 

Para termos um pouco mais clara a dimensão desse ator, vamos trazer alguns dados de coletas feitas pelo Observatório das Eleições na plataforma Facebook. Na primeira quinzena de agosto, as publicações de André Janones tiveram 11 milhões de visualizações. Em comparação, o ex-presidente Lula teve 5 milhões, o que mostra que Janones tem mais expressão que Lula nas redes em termos da capacidade de alcance de internautas. Em interações, a dupla Janones + Lula somou 5,6 milhões e se aproxima do resultado de Jair Bolsonaro (com 7,8 milhões).

 

Portanto, a partir desses levantamentos, podemos afirmar que, se Jair Bolsonaro estiver contando com as redes sociais para reverter a vantagem de aproximadamente 12% dos votos que o ex-presidente Lula mantém em relação a ele, dificilmente terá novamente, nas redes, um local para desequilibrar a produção de informação e de notícias, tal como fez em 2018. 

Ciro e Tebet somam 14% no Datafolha. E agora?

Ciro e Tebet somam 14% no Datafolha. E agora?

Por Carlos Ranulfo*

Publicado na Mìdia Ninja

O debate entre os presidenciáveis na TV Bandeirantes teve grande repercussão. Quem se saiu melhor foi Simone Tebet, seguida por Ciro Gomes. Lula foi mal e Bolsonaro, o pior de todos. Paradoxalmente, o resultado foi bom para a campanha do atual presidente; afinal, é preciso evitar a vitória de Lula no primeiro turno e, pelo andar da carruagem, a melhor maneira de conseguir isso é com o crescimento de Tebet e Ciro. No debate, Bolsonaro foi inicialmente gentil com Ciro que, por seu lado, procurou retribuir até o momento em que o candidato-presidente fez menção a uma declaração dada há 20 anos atrás pelo cearense. Com Tebet não foi possível nenhuma troca de gentilezas, uma vez que a senadora demarcou sua posição com firmeza.

A pesquisa do Datafolha pareceu confirmar a avaliação geral sobre o debate. O instituto iniciou seu campo no dia 30 de agosto, dois dias após o debate, e estendeu a coleta de dados até 01 de setembro. Resultado: Ciro Gomes passou de 7% para a 9% na preferência do eleitorado e Tebet cresceu de 2% para 5%. O crescimento dos dois tornou-se o tema dos dias seguintes, uma vez que pela primeira vez na série do Datafolha Lula obteve menos que 50% dos votos válidos (48%) no primeiro turno.

O que dizer disso tudo? A primeira coisa a fazer é separar o desempenho dos dois. Para Ciro, 9% não é propriamente uma novidade. Seu mudança se deu dentro da margem de erro da pesquisa (2%). O candidato está na rua há muito tempo, é bastante conhecido e nas sondagens feitas pelo Datafolha em junho e julho havia alcançado 8%, oscilando em meados de agosto para 7%. A novidade, portanto, é Tebet. Pouco conhecida, até agora a candidata do MDB patinava entre 2 e 3% – índice obtido nas pesquisas do IPEC e da Quaest, que fecharam sua coleta de dados sem captar o efeito do debate. Em outras palavras, até aqui, sozinho, o desempenho de Ciro não conseguiria “provocar” o segundo turno. Tebet parece ser o diferencial.

Para onde apontam os 14%? Uma coisa é certa: a não ser que, parafraseando Nelson Rodrigues, o sobrenatural de Almeida resolva intervir, nem Ciro, nem Tebet estarão no segundo turno. Tanto no Datafolha, com no IPEC Lula tem 40% das preferências na pergunta espontânea. Bolsonaro chega a 29% e 31% nas mesmas sondagens. Na série do Datafolha os dois candidatos cresceram de forma sistemática desde maio de 2021; Lula começando com 21% e Bolsonaro com 17%.

Ainda que não possamos falar em fortalezas inexpugnáveis, o patamar e as curvas de crescimento indicam um grau de consolidação impossível de ser ignorado. Entre os potenciais eleitores de Lula apenas 17% admitem mudar o voto. O percentual é quase o mesmo no caso de Bolsonaro (16%). Importa ressaltar: os percentuais são exatamente os mesmo na pesquisa do IPEC. Por outro lado, 57% dos que disseram preferir Ciro ainda podem mudar de ideia até o dia da eleição. A diferença é enorme, embora se deva dizer, a favor do ex-governador do Ceará, que o percentual dos que se dizem seguros em sua opção subiu de 27% para 42% desde fevereiro deste ano. No caso de Tebet, o percentual dos que podem alterar sua opção é de 48% ainda segundo o Datafolha. Em outras palavras, pelo que sabemos até agora, a chance de Ciro e Tebet perderem eleitores é maior do que nos casos de Lula e Bolsonaro. 

Ambos podem crescer? Sim, mas novamente, a situação de Tebet parece melhor que a de Ciro. Segundo o DataFolha, 23% dos entrevistados apontam Ciro Gomes como sua segunda opção de voto, mas esse quadro tem se mantido nas últimas quatro pesquisas do instituto. Também não se registra alteração no percentual de eleitores de Lula e Bolsonaro que, admitindo mudar de voto, optariam por Ciro: 37% iriam para o petista e 30% para o candidato do PL. Tebet, por sua vez, aparece como segunda opção para 12%, mas cresceu 7 pontos percentuais desde a pesquisa divulgada em meados de agosto. E entre os eleitores de Lula e Bolsonaro que admitem mudar de voto a preferência pela senadora do MDB saltou de 5% para 18%, no primeiro caso, e de 4% para 14% no segundo. 

A pesquisa do Datafolha veio reforçar algo que já era perceptível: o segundo turno parece mais provável hoje do que a um mês atrás. Ao mesmo tempo, não apenas o Datafolha, mas também a Quaest e o IPEC mostram que Bolsonaro enfrenta dificuldades para crescer, apesar do pacote de bondades alimentado com o orçamento da União. As três sondagens cravaram 32% de intenção de voto para o atual presidente. Isso pode significar que a realização de um segundo turno depende de Ciro e Tebet crescerem. 

Para que isso ocorra, Ciro tem que sair da gangorra que o faz balançar em torno dos 8%. E no caso de Tebet, o efeito do debate na Bandeirantes, muito provavelmente, já deu o que tinha que dar. Não basta se dizer alternativa aos dos líderes nas pesquisas. Tem que mostrar a que veio o que, aliás, Ciro tem feito há tempos sem crescer. Caso os dois não se consolidem entre uma parcela maior do eleitorado, é de se perguntar o que acontecerá, daqui a três semanas, se as pesquisas indicarem a possibilidade de vitória de Lula no primeiro turno. Estarão os eleitores de Tebet e Ciro que admitam mudar de voto, não rejeitem Lula, mas o façam com Bolsonaro, dispostos a dar mais uma chance ao atual presidente, ou votarão para terminar a disputa? No atual cenário, mostra o Datafolha, os eleitores não convictos de Ciro preferem Lula (35%) a Bolsonaro (27%). Os de Tebet se dividem entre os dois líderes, mas se a candidata mantiver a linha do debate, quando as críticas a Bolsonaro foram muito mais incisivas que a demarcação com Lula, isso pode mudar. 

No caso de haver um segundo turno, a situação de Lula se mantém confortável. No Datafolha, Quaest e IPEC a vantagem do petista varia de 15 pontos, no primeiro, a 13, no terceiro. Colocados diante dessa possibilidade, os eleitores de Ciro preferem Lula por larga margem (48% a 27%). Entre os que pretendem votar em Tebet, a preferência também é por Lula, mas a diferença é bem menor – 32% a 28%, enquanto 39% declararam a intenção de anular o voto, segundo o Datafolha. Como Ciro, ao que tudo indica, não deve se posicionar, é razoável dizer que o atual quadro de distribuição de seus eleitores deve permanecer estável. Mas Tebet não irá passear em Paris, o que permite supor um maior aporte de votos para Lula. 

Não deixa de ser irônico: Bolsonaro tem que torcer para Ciro e Tebet, mas serão eleitores destes dois que sacramentarão a vitória de Lula em um eventual segundo turno. Problemas de um candidato isolado pelo campo democrático.

 

Carlos Ranulfo Melo é doutor em Ciência Política, professor titular aposentado do Departamento de Ciência Política da UFMG e pesquisador do Centro de Estudos Legislativos. Autor de Retirando as Cadeiras do Lugar: Migração Partidária na Câmara dos Deputados, coautor de Governabilidade e Representação Política na América do Sul e coeditor de La Democracia Brasileña: Balance y Perspectivas para el Siglo XXI. Tem artigos publicados sobre partidos, estudos legislativos e instituições comparadas com foco no Brasil e nos países da América do Sul.

Os empresários suicidas e a democracia

Os empresários suicidas e a democracia

Carlos Ranulfo Melo*

Em declaração recente, o ministro Dias Toffoli taxou de suicidas os membros de um seleto grupo de empresários que se posicionou a favor de uma ruptura institucional no caso de uma vitória de Lula na eleição presidencial.  Talvez não seja o caso. O mais correto seria dizer que os digníssimos senhores vislumbravam que seus interesses estariam bem-posicionados estando ao lado dos golpistas. É claro que caberia alertar, como pretendeu o ministro Toffoli, sobre os deletérios efeitos que um golpe teria sobre a economia brasileira. Mas isso seria exigir demais do tosco raciocínio da turma diretamente envolvida na questão.

O episódio ajuda a explorar um ponto mais delicado – o compromisso democrático da elite brasileira. Uma coisa é certa: uma democracia não se faz, ou se mantém, sem democratas. Para que as coisas fiquem claras desde o início, um democrata é aqui tratado como aquele que possui uma preferência normativa pela democracia. Recorrendo a Scott Mainwaring e Anibal Pérez-Liñan [Democracies and dictatorships in Latin America – emergence, survival and fall] agentes políticos que possuem tal preferência estão dispostos a aceitar perdas no que se refere aos resultados das disputas políticas desde que se preserve ou estabeleça um regime democrático. Um comportamento desse tipo facilita a tolerância para com as falhas do regime e a aceitação do dissenso em relação a outros agentes.

Isso não significa que o surgimento ou a manutenção de uma democracia exija uma “cultura democrática” amplamente disseminada. Não existem casos de países onde uma cultura deste tipo tenha se firmado antes de iniciada a trajetória até a democracia. Além disso, existe farta evidência científica a confirmar que as crenças políticas da maioria das pessoas tendem a ser pouco consistentes. Mesmo quando os entrevistados em pesquisas de opinião afirmam ter preferência por regimes democráticos fica sempre a dúvida: o que eles entendem por democracia quando respondem à pergunta? Com alguma segurança se pode dizer que as pessoas preferem eleger seus governantes a não o fazer. Mas a partir daí cabe muita coisa: é possível, por exemplo, que elas considerem que seu candidato, uma vez eleito, possa utilizar o poder para contornar ou anular os limites legais e/ou constitucionais sobre seu governo.

A existência de uma preferência normativa torna-se crucial para a democracia quando o foco se dirige ao reduzido número de pessoas que, de uma forma ou de outra, se envolve com a atividade política. E isso porque é correto supor que tais pessoas possuem sistemas de crenças mais elaborados, tendem a pautar suas ações por tais crenças e a ter maior influência sobre os eventos políticos – inclusive aqueles que podem afetar a estabilidade de um regime democrático.

Por sua vez, preferências normativas pela democracia são submetidas a teste em contextos de radicalização. Em tais situações, os agentes políticos podem ser levados a assumir posturas extremas e a adotar, ainda nos termos de Mainwaring e Pérez-Liñan, um comportamento intransigente e impaciente na busca de suas preferências.

O impeachment de Dilma foi um bom exemplo do que se pretende dizer. Ali esteve em curso uma estratégia que combinava o bloqueio sistemático ao governo eleito com a exploração das prerrogativas institucionais até o seu limite com o objetivo de derrotar, quem sabe de forma permanente, o PT. Pedaladas fiscais foram transformadas em crime de responsabilidade. A comparação é elucidativa: se diante de Rousseff valeu a máxima “aos inimigos, a lei”, no atual governo o Presidente da República conta com amigos que, zelosamente, o protegem dessa mesma lei mesmo diante de denúncias incomensuravelmente mais graves.

Quando eleito em 2018, Bolsonaro não era um desconhecido para as pessoas e os setores sociais envolvidos com a atividade política. Tanto sua trajetória como deputado, como sua campanha presidencial, se encaixavam com perfeição nos indicadores de comportamento autoritário elencados por Levitsky e Ziblatt em Como as democracias morrem: rejeição das regras democráticas, negação da legitimidade dos adversários, tolerância ou encorajamento à violência e propensão a restringir liberdades civis de oponentes e/ou da mídia.

Foi, portanto, com pleno conhecimento de causa que boa parcela da elite brasileira viu em Bolsonaro uma oportunidade de ouro. A expectativa era que consolidar uma guinada à direita livraria o país de governos progressistas por um bom tempo. Nesse interim, o país avançaria na direção de uma reforma ultraliberal, fazendo retroceder os avanços sociais acumulados desde a redemocratização. Reafirmaria os valores tradicionais sobre família e sexualidade. Acabaria com o mimimi dos direitos humanos, armaria os cidadãos de bem e autorizaria a matança da “bandidagem”. Reduziria o espaço, ou tiraria de cena, os que se preocupam com a preservação do meio ambiente. Jogaria no lixo a corrupção que emporcalha a política. Fosse qual fosse o interesse em jogo, ele se sobrepunha à necessidade de preservar a democracia e tornava sem importância a eleição de um notório candidato a ditador.

Nesses quase quatro anos de mandato, Bolsonaro se esmerou em demonstrar seu desprezo pela democracia. Sempre afirmando jogar “dentro das quatro linhas da Constituição”, insistiu em traçar as linhas a seu feitio. Mentiu e atacou instituições o tempo todo. Instilou o ódio entre seus apoiadores e depois defendeu sua liberdade de expressão. Não obstante, seu apoio entre setores da elite brasileira é considerável. Bolsonaro cresce nas pesquisas com o aumento do nível de renda e escolaridade dos entrevistados. Tem seus mais altos índices de apoio entre  os empresários.

O grupo de senhores colhidos trocando figurinhas sobre um golpe de estado expressa de forma exemplar o comportamento autoritário. Ou o seu time ganha o jogo ou eles levam a bola embora, fecham o campinho e prendem os inimigos. Não sabemos quantos grupos desse tipo existem, qual seu raio de ação e sua capacidade de tumultuar o ambiente.

  Sem dúvida, a iniciativa da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), articulando uma carta em defesa da democracia cumpriu importante papel na demarcação em relação aos arroubos autoritários de Bolsonaro. Mas a expressividade dos apoios recebidos pela carta, com destaque para a Federação Brasileira de Bancos (Febraban), não chega a esconder a eloquência de inúmeras ausências. Entre os paulistas, pontua o Centro das Indústrias do Estado de São Paulo (Ciesp). Federações das Indústrias de peso, como a de Minas Gerais (FIEMG) e do Rio de Janeiro (Fierj), tampouco deram as caras. A primeira, é bom lembrar, em setembro de 2021, atacou o STF em resposta aos inquéritos abertos para a apuração de fake news. Igualmente notáveis foram as ausências das Confederações da Indústria (CNI), do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) e dos Transportes (CNT), para não mencionar ainda a poderosa Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA).

Não existem empresários suicidas. Tanto os abertamente golpistas, como as notórias ausências acima mencionadas sabem muito bem o que estão fazendo. Conhecem o seu gado, para usar um termo em voga. Como esperar que tenham algum compromisso normativo com a democracia no país?

 

*Doutor em Ciência Política, professor titular aposentado do Departamento de Ciência Política da UFMG e pesquisador do Centro de Estudos Legislativos. Autor de Retirando as Cadeiras do Lugar: Migração Partidária na Câmara dos Deputados, coautor de Governabilidade e Representação Política na América do Sul e coeditor de La Democracia Brasileña: Balance y Perspectivas para el Siglo XXI. Tem artigos publicados sobre partidos, estudos legislativos e instituições comparadas com foco no Brasil e nos países da América do Sul.

Tribunal Superior Eleitoral, núcleo da defesa da democracia no Brasil

Tribunal Superior Eleitoral, núcleo da defesa da democracia no Brasil

Leonardo Avritzer *

Francisco W.Kerche**

Publicado no Pulso

Diz um senso comum que instituições fortes em uma democracia são aquelas que passam despercebidas, isto é, elas existem para desempenhar funções pontuais na ordem democrática e o fazem a despeito de pressões políticas. Há anos observamos, no Brasil, um processo diferente que expressa bem as mazelas pelas quais a nossa democracia vem passando: instituições democráticas são defendidas diuturnamente porque, na verdade, foram instabilizadas pelo ataque patrocinado pelo presidente Jair Bolsonaro e seus apoiadores. É assim que devemos analisar a nova centralidade do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) na democracia brasileira.

O TSE tem uma trajetória iniciada com o Código Eleitoral de 1932, que gerou práticas vivas até hoje, como a participação de cidadãos na organização das eleições e, até recentemente, de apuração dos votos. Mas o processo que define a centralidade do TSE, tal como o conhecemos hoje, foi o aumento das prerrogativas do poder Judiciário e do Supremo Tribunal Federal (STF), em especial as previstas pela Constituição de 1988.

Na mesma medida em que o STF concentrou prerrogativas, especialmente em relação ao sistema político, o TSE passou a suspender e a cassar mandatos estabelecendo uma trajetória de forte ativismo judicial nessa área. Esse é o motivo pelo qual, ao longo do governo Bolsonaro, o Judiciário foi se tornando o principal alvo das manifestações antidemocráticas do presidente até que, no início deste ano, elas passaram a se concentrar na Corte eleitoral. Hoje a disputa política centra-se de tal maneira no TSE que, na primeira semana das eleições, a posse do novo presidente tornou-se o principal fato político.

A posse de Alexandre de Moraes na presidência do TSE atraiu o conjunto do sistema político. Cabe perguntarmos por quê. Temos duas explicações: a centralidade adquirida pela instituição no processo político, em especial na disputa entre direita e esquerda no Brasil; e a centralidade que Moraes assumiu nessa disputa.

Desconfiança não é nova

Abordando o primeiro ponto, é possível perceber que, desde o final da campanha de 2018, Bolsonaro iniciou um processo de ataques à Justiça Eleitoral que gerou desconfiança. Pesquisa realizada pelo INCT em 2018 mostrou que 44% dos eleitores já manifestavam alguma desconfiança em relação à apuração, número que permaneceu praticamente estável nos últimos quatro anos, apesar dos ataques do bolsonarismo às urnas eletrônicas. Faltava, portanto, um momento no qual, de forma pública, Bolsonaro ouvisse os argumentos a favor das urnas eletrônicas e da credibilidade do sistema. A posse de Alexandre de Moraes tornou-se esse momento.

O ministro foi indicado ao STF pelo ex-presidente Michel Temer depois de uma trajetória na segurança pública e no Ministério da Justiça. Sua indicação foi recebida, inicialmente, com baixas expectativas. Sua mudança de posição na conjuntura iniciou-se com o seu engajamento durante a presidência de Dias Toffoli no inquérito das fake news. Esse inquérito, independentemente da forma como foi aberto, apontou em uma direção relevante: a de que o presidente não pode atacar impunemente as instituições judiciais, portanto, aqueles que procuraram reverberar esses ataques nas redes sociais poderiam ser processados. Desafiado por alguns youtubers como Sara Winter, Allan dos Santos e Zé Trovão, Moraes prevaleceu e conseguiu se colocar na linha de frente da defesa das instituições judiciais.

O evento central que alçou Moraes ao status de maior rival de Bolsonaro foi o 7 de setembro de 2021. Naquele momento, o presidente tentou organizar manifestações de rua em Brasília e São Paulo contra o STF, mas não conseguiu mobilizar as multidões na escala que ele imaginava, tendo sido obrigado a recuar alguns dias depois. O acordo selado entre Bolsonaro e Moraes possibilitou que o ministro convidasse o presidente para a sua posse, gerando a suposição de um de novo acordo entre os dois e incentivando o presidente e seus ministros a comparecerem à posse. No entanto, o que se viu foi algo muito diferente: a cerimônia serviu para comprometer Bolsonaro com a legitimidade do processo eleitoral e, ao mesmo tempo, desmoralizá-lo e desmoralizar os seus argumentos contra a urna eletrônica, como mostram os dados abaixo, que foram extraídos a partir de monitoramento das redes sociais feito pela equipe do Observatório das Eleições.

O gráfico abaixo aponta para dois fenômenos importantes nas redes sociais. Em primeiro lugar, mostra um engajamento superior do campo lulista na questão do TSE; em segundo, que o campo bolsonarista, mesmo tendo mais ativistas digitais, não conseguiu se diferenciar em relação à ida do presidente ao TSE e à posse.

 

2 de 2 Infográfico mostra vantagem lulista nas redes sobre a posse de Alexandre de Moraes no TSE — Foto: Monitoramento de redes sociais do Observatório das Eleições

Infográfico mostra vantagem lulista nas redes sobre a posse de Alexandre de Moraes no TSE — Foto: Monitoramento de redes sociais do Observatório das Eleições

Uma outra questão muito importante no comportamento das redes sociais nesta semana foi que todos os engajamentos, tanto no campo lulista quanto no bolsonarista, se deram em torno do presidente. Ou seja, a sua desmoralização na posse de Moraes foi um dos temas principais das redes, com mais de 21 mil postagens (entre os dias 15 e 17 de agosto) e cerca de 120 mil retuítes. Assim, de fato, vimos que o bolsonarismo não conseguiu criar uma narrativa própria contra o TSE ou o seu presidente ao longo da semana, tendo sofrido uma derrota importante nessa disputa de narrativas que, com certeza, ainda não chegou ao final.

Podemos supor que embates e estranhamentos entre Moraes e Bolsonaro continuarão a ocorrer e devem se repetir no 7 de setembro. E podemos supor também que a centralidade do TSE na conjuntura irá continuar, pelo menos, até a eleição e que os dois protagonistas desse enfrentamento serão os dois. O interessante é que Moraes parece ter descoberto a chave do enfrentamento com Bolsonaro: chamá-lo para o campo institucional, retirando-o do seu próprio campo, as redes sociais e os blogueiros. Essa parece ser a estratégia exitosa que a posse de Moraes consolidou e que deverá se repetir nas próximas semanas.

*Leonardo Avritzer é Coordenador do INCT/IDDC e do Observatório das Eleições. É professor do Departamento de Ciência Política da UFMG, doutor em Sociologia Política pela New School for Social Research e com pós-doutorado pelo MIT/EUA. Foi representante de área da Capes, diretor da Anpocs e presidente da ABCP. Francisco W. Kerche é mestrando em sociologia na UFRJ e consultor em análise de dados no Greenpeace Brasil

Manifesto de 11 de agosto marca uma guinada em defesa da democracia no Brasil

Manifesto de 11 de agosto marca uma guinada em defesa da democracia no Brasil

Leonardo Avritzer*

Publicado na Carta Capital

No último dia 11 de agosto, uma quinta-feira, milhares de brasileiras e brasileiros se reuniram para fazerem, coletivamente, a leitura de um documento histórico inspirado na importante Carta aos Brasileiros de 1977. E com essa leitura coletiva, marcamos a defesa intransigente e urgente do Estado Democrático de Direito, que vem sendo diuturnamente atacado pelo atual presidente da República do Brasil. 

Para compreendermos a importância desse ato de mobilização,  devemos lembrar que os manifestos de intelectuais têm tido um importante papel na história da política desde que o primeiro manifesto, em relação ao caso Dreyfus, foi feito (o capitão do exército francês, Alfred Dreyfus, foi acusado, em 1894, de entregar documentos secretos aos alemães; ele foi condenado à prisão perpétua por traição e deportado para a Ilha do Diabo). O manifesto “J’Accuse!”, de autoria do escritor francês Émile Zola, em forma de uma carta aberta ao presidente francês, acusava o exército de ter condenado um inocente de maneira falsa e deliberada. Ele foi publicado no jornal parisiense “L’Aurore” e se tornou um acontecimento político, tendo recebido centenas de apoios e ficado conhecido como um manifesto dos intelectuais. Desde então, esses manifestos têm tido um importante papel em conjunturas políticas dramáticas. 

No Brasil, o manifesto do jurista Goffredo da Silva Telles Júnior, lido em 1977, consolidou um espaço de insatisfação com o regime autoritário, a ditadura militar que silenciava o Brasil. Essa insatisfação já existia há algumas décadas, mas era diluída em termos de atores e mobilizações.

Com a Carta aos Brasileiros de 1977, a democratização brasileira se centrou em torno de duas questões: 1) o restabelecimento do Estado Democrático de Direito; e 2) a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte. Nesse contexto, posteriormente, a Constituição de 1988 veio para cumprir as expectativas dos atores democráticos em relação a mudanças que precisavam ser realizadas no país. Em relação a esse âmbito, podemos destacar, principalmente, três pontos: o estabelecimento de uma tradição forte de direitos civis pela primeira vez em nosso país, o estabelecimento de uma tradição forte de direitos sociais e o estabelecimento de uma tradição de políticas públicas organizadas sistemicamente.

Não é difícil perceber que o presidente Jair Bolsonaro, eleito em 2018, ataca  frontalmente todas as três tradições estabelecidas pela Constituição de 1988. Nesse sentido, é preciso ressaltar que Bolsonaro, desde o momento em que foi eleito deputado federal, já questionava a tradição de direitos. Depois, uma vez eleito presidente da República, o seu governo se tornou notoriamente conhecido por negar direitos sociais da população, seja no caso da Previdência, seja no caso da organização de outras políticas sociais, especialmente relativas a saúde e educação.

Esses elementos do bolsonarismo, que geraram diversos manifestos e que já foram alvos de outras mobilizações de rua em 2021, expressam uma questão interessante trazida à tona neste momento: os manifestos podem ser, simplesmente, hábitos para um conjunto de atores sociais como podem exercer um forte papel agregador em momentos políticos fundamentais. Nesse sentido, o manifesto de 11 de agosto de 2022 parece ter a mesma dimensão do manifesto feito em 11 de agosto de 1977 por Goffredo da Silva Telles Júnior e do manifesto de Émile Zola na França no final do século 19, qual seja: ele é um agregador de atores sociais e de concepções políticas fundamentais capazes de mudar a configuração do jogo político.

Portanto, a carta divulgada em 11 de agosto de 2022 tem um significado especial: ela é capaz de consolidar uma nova aliança para um pacto democrático no Brasil. Setores que, desde 2018 ou antes, estiveram em lados opostos na luta política no Brasil são, hoje, signatários dessa carta – vale a pena mencionar as associações empresariais, em especial Fiesp e Febraban, que fizeram parte do movimento a favor do impeachment e estiveram em lado oposto ao das forças democráticas ao longo de 2018 até 2022. Esses setores começam a perceber o risco que o bolsonarismo representa para a democracia brasileira e também para uma economia de mercado, tal como afirmou recentemente Josué Gomes da Silva, presidente da Fiesp. Neste momento, a mudança de posição dessas instituições expressa o enfraquecimento do campo bolsonarista, que promove sistematicamente o ataque à democracia e que precisa ser derrotado nestas eleições. 

Também chama a atenção, neste cenário emoldurado pelo manifesto, a conjunção de forças bastante díspares e o apoio de instituições que em geral não se manifestam frequentemente em questões políticas e que são signatárias da Carta. São elas: as instituições universitárias, que assinam como instituições – em destaque, USP, Unicamp e Unesp, além da FGV São Paulo e das PUCs (uma delas, a PUC Rio, foi sede principal da leitura do manifesto no Rio de Janeiro). O fato de instituições que não se posicionam regularmente estarem assumindo a linha de frente da defesa democrática deve sinalizar, para os brasileiros, a gravidade da situação atravessada pelo país.

Um segundo elemento importante do manifesto é a junção entre representantes do capital e do trabalho. Mais uma vez, é raro, na recente história do Brasil, que CUT, CGT, Febraban e Fiesp estejam do mesmo lado em um manifesto. Por fim, mais de 100 entidades representativas em todo o Brasil se juntaram na assinatura do manifesto.

Nos próximos dias, e diante de um processo eleitoral bastante dinâmico e “sui generis”, vamos observar como esse manifesto, a leitura da Carta aos Brasileiros e às Brasileiras, reverbera na sociedade. Um ponto relevante a ser destacado já é o eco do manifesto na mídia brasileira, também amplamente apoiadora tanto do impeachment quanto da eleição de Jair Bolsonaro, em 2018 – o Jornal Nacional, por exemplo, dedicou um bloco inteiro da edição de 11 de agosto ao manifesto, mais de trinta minutos. Essa ressonância também indica um reposicionamento de parte da mídia, um fator relevante para o processo eleitoral. 

Manifestos podem ter pouca ou nenhuma repercussão ou serem o ponto de virada de uma trajetória política. A carta de Goffredo da Silva Telles Júnior não somente acelerou a decadência do regime militar como também abriu o espaço para a forma da democratização por meio da convocação de uma Assembleia Constituinte. Hoje, Bolsonaro pisoteia essa Constituição que tanto fez pelos brasileiros. A Carta de 2022, lida na Faculdade de Direito da USP, no Largo de São Francisco,  parece indicar que o fim dos ataques à Constituição pode estar próximo e que os brasileiros estão dispostos a ir às ruas para defendê-la.

*Leonardo Avritzer: Coordenador do INCT IDDC e do Observatório das Eleições. É professor do Departamento de Ciência Política da UFMG, doutor em Sociologia Política pela New School for Social Research e com pós-doutorado pelo MIT – EUA. Foi representante de área da Capes, diretor da Anpocs e presidente da ABCP. Autor de vários livros, entre eles O Pêndulo da Democracia no Brasil e Governo Bolsonaro: Retrocesso Democrátio e Degradação Política.