por Camila Penna de Castro
Camila Penna de Castro
Publicado na Mídia Ninja
“Nós pacificamos o MST titulando terras pelo Brasil”, disse Jair Bolsonaro em entrevista ao Jornal Nacional, no dia 22 de agosto de 2022. As cerimônias de entrega de “títulos” para assentados da reforma agrária em diferentes estados do Brasil têm sido uma estratégia importante em sua campanha à reeleição, bem como nas campanhas de candidatas e de candidatos a governador e a cargos legislativos federais e estaduais. Para acelerar a agenda de titulação privada de terras públicas foi criado, em fevereiro de 2021, o programa Titula Brasil, que descentraliza o processo de titulação para os municípios por meio de acordos de cooperação técnica com o Incra. Entre janeiro de 2019 e agosto de 2022, o site do governo federal informa que foram emitidos mais de 400 mil títulos, um número expressivo quando comparado ao número de títulos emitidos nos governos Lula e Dilma somados, aproximadamente 250 mil. Contudo, 90% dos títulos emitidos no governo Bolsonaro são títulos provisórios, e não definitivos, como revelam os dados do INCRA disponibilizados por meio da Lei de Acesso à Informação.
Todas essas ações de entrega de títulos provisórios, como se fossem títulos definitivos, são acompanhadas por um discurso que conecta a política de titulação, na forma da garantia da propriedade privada, a uma pacificação dos conflitos no campo, permitindo a segurança jurídica necessária para o desenvolvimento. Mas, se os conflitos no campo estão diminuindo à medida que aumenta a privatização das terras públicas, por que tantas lideranças que reivindicam o direito de permanecer em territórios tradicionais estão sendo assassinadas e ameaçadas nos últimos anos? Quem é o público beneficiário da política fundiária do governo Bolsonaro? Qual a relação entre a titulação de terras e as ameaças crescentes aos territórios das populações tradicionais?
Política fundiária, em sentido amplo, diz respeito à política estatal de gestão de terras. E a regularização fundiária envolve a emissão de certidões e de títulos que atestam o direito à terra ao ocupante. A política fundiária compreende uma série de políticas específicas, que estão arroladas na Constituição de 1988 ou em legislação infraconstitucional, como a política de demarcação de territórios indígenas, a política de reforma agrária, que envolve a obtenção de propriedades e a criação de assentamentos (além de uma série de políticas sociais para garantia da permanência na terra), a titulação de territórios tradicionais, como os quilombos, por meio da regularização na forma de um título coletivo, e, por fim, a regularização de posses privadas em áreas públicas de pequenos, médios e grandes produtores rurais, na forma de um título privado. É este último tipo de política fundiária que está no centro da agenda do governo Bolsonaro, pois, em relação a terras indígenas e quilombolas, ele prometeu não demarcar nem um centímetro.
O discurso sobre a titulação de terras para agricultores, propagado na campanha de Bolsonaro em 2022, busca subverter a relação entre a democratização do acesso à terra e a luta dos movimentos sociais pela reforma agrária. Ao se colocar como o presidente que de fato garantiu o direito à propriedade privada para o trabalhador pobre do campo, na esteira de uma política intensiva de titulação privada de terras de assentamentos, ele acusa a esquerda e o MST de terem usado essa população como massa de manobra. Contudo, a concessão de títulos privados não é política de reforma agrária.
A possibilidade de permanência de agricultores em um assentamento requer políticas sociais, tais como crédito para produção, garantia de moradia, ingresso em programas de fomento, acesso à educação. Há um longo processo de consolidação dos assentamentos, durante o qual a terra segue sendo pública e as famílias têm direito a certidões provisórias de ocupação dos lotes, não a títulos de propriedade definitivos. A política de reforma agrária é pensada nessa lógica para que não haja venda imediata e reconcentração, antes mesmo que os assentados possam ter condições de se consolidar na terra. Além da regularização fundiária de terras públicas do INCRA, o que contempla assentados da reforma agrária, a legislação atual prevê também outras formas de regularização de posses privadas em terras públicas federais. Em 2009, por meio do Programa Terra Legal, passou a ser possível a regularização de posses em terras na Amazônia Legal. Em 2017 essa possibilidade se ampliou para terras da União em todo o território nacional. Em 2019, o governo Bolsonaro editou uma Medida Provisória com o propósito de ampliar o tamanho da posse a ser regularizada sem necessidade de vistoria presencial. Essa MP perdeu a validade e deu origem a dois projetos de lei, que agora tramitam conjuntamente no Senado (PL 2633 e PL 510).
A tônica desses projetos é flexibilizar os procedimentos burocráticos para a regularização, haja vista a demora na tramitação dos requerimentos no Incra. Um dos pontos centrais é a dispensa de vistoria presencial para propriedades médias e grandes e a utilização de sensoriamento remoto e de autodeclaração. Contudo, pela legislação atual que dispensa vistoria presencial para imóveis pequenos, estaria contemplada a grande maioria das demandas (89% dos requerimentos na Amazônia Legal). Portanto, a mudança na legislação atual teria como finalidade real a facilitação para regularização de posses médias e grandes.
O tema da titulação de terras não é uma pauta apenas do agronegócio ou do setor patronal, tendo apelo significativo na base dos movimentos de agricultores familiares, haja vista o peso moral da garantia da propriedade privada em um regime normativo neoliberal, além da possibilidade de acessar empréstimos bancários. Inclusive, o relator do PL 2633 é o Deputado Zé Silva (MG), vinculado ao sindicalismo rural. Esse setor demarca sua posição defendendo o direito à titulação apenas para pequenos e médios produtores. Essa postura se diferencia dos setores patronais e da base governista, que argumentam pela necessidade de não diferenciar grandes e pequenos, e que se colocam mais claramente em defesa do agronegócio.
Há um discurso que fundamenta o direito à privatização da terra pública e que ao mesmo tempo exclui populações tradicionais. Se, na política de Bolsonaro, indígenas e quilombolas estão excluídos do acesso às terras públicas, qual é então seu público alvo? A justificativa que o senador Irajá de Abreu (PSD/TO) apresenta para a proposição do PL 510, que flexibiliza os critérios de regularização fundiária de posses privadas, nos responde: “para que não perdure essa situação que tanto prejuízo leva aos que dependem da agricultura para o seu ganha-pão, notadamente os pequenos agricultores, além daqueles que produzem em maior escala, contribuindo para o êxito do agronegócio no Brasil”. A argumentação que fundamenta o discurso de campanha de Bolsonaro é antiga e tem como lastro o desenvolvimento e o progresso advindos da inserção na cadeia produtiva do agronegócio. Ou seja: se merece terra na medida em que se pode contribuir para a produção agropecuária. O parâmetro para essa contribuição é a produtividade medida pela agroexportação, seja o produtor grande, médio ou pequeno.
Conflitos: por que eles permanecem?
Titular terras e garantir a propriedade privada são meios para se alcançar o desenvolvimento e o progresso, e também para “pacificar” o campo. Essa é a mesma justificativa apresentada pelo regime militar para o programa oficial de colonização do centro e do norte do Brasil. Naquele contexto, assim como hoje, “pacificar” pode também significar “eliminar”. Mas como o projeto de titulação de terras se relaciona com o aumento dos conflitos violentos no campo? A Comissão Pastoral da Terra registrou aumento de 75% nos assassinatos no campo em 2021 em comparação a 2020.
Para responder a essas questões, é necessário considerar o processo de desmantelamento recente de políticas e de órgãos que tinham operado de maneira apenas incipiente nas últimas décadas, como a política de regularização fundiária de territórios quilombolas feita pelo Incra e as políticas operadas pela Funai. Também é importante considerar que, no território, o pleito da posse privada muitas vezes não é manso e pacífico, estando sobreposto à presença tradicional de populações que também reivindicam o mesmo espaço, mas não na chave legitimadora da contribuição para a agroexportação. Um exemplo recente é a invasão do Quilombo Fortaleza (BA) por pistoleiros ligados a um posseiro que reivindica o direito à posse privada de parte do território.
Se a titulação coletiva não avança, pois a política está desmantelada, e há uma facilitação da titulação privada por meio da política atual, o conflito se intensifica e a legitimidade para “pacificar” ou “exterminar” também. Menos de 7% dos territórios quilombolas reconhecidos foram titulados e 62% das terras indígenas existentes no Brasil seguem com pendências de regularização.
Camila Penna de Castro é professora Adjunta de Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Doutora em Sociologia (UnB), mestre em Ciência Política (UnB) e bacharel em Relações Internacionais (PUC Minas). Membro permanente dos programas de pós-graduação em Sociologia (PPGS/UFRGS) e em Políticas Públicas (PPGPP/UFRGS). Trabalha com pesquisa nas seguintes áreas: sociologia rural, movimentos sociais, políticas públicas, Estado e teoria social
por Cynthia Mara Miranda
Cynthia Mara Miranda
Publicado na Mídia Ninja
Embora com 34 anos de existência, a história do Tocantins tem sido marcada pela instabilidade política em sua gestão estadual. Há 15 anos, governadores não completam o mandato para o qual foram eleitos. Entre renúncia, cassação e afastamento, a população vivencia os efeitos das transições bruscas entre os governos.
O Tocantins é o 14० estado no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), segundo dados do IBGE (2010), e ocupa a 24० no que se refere ao PIB. Trata-se também de um estado com intensas desigualdades sociais e regionais.
A pauta ambiental na atual disputa ao governo do Tocantins aparece nos planos dos três candidatos que apresentaram maior intenção de voto em pesquisa encomendada pela Federação das Indústrias do Estado do Tocantins divulgada em 31 de agosto: Wanderlei Barbosa (Republicanos) com 38% das intenções de voto, Ronaldo Dimas (PL) com 15% e Paulo Mourão (PT) com 6%.
No plano de governo do candidato Wanderlei Barbosa o meio ambiente e a sustentabilidade figuram como um eixo de destaque e se desdobram em proposições de ações que visam “o desenvolvimento econômico do estado por meio da agricultura e da agropecuária, respeitando o meio ambiente e as políticas de preservação ambiental”, sendo elas: proteção e preservação ambientais, readequação e monitoramento do ICMS ecológico, fortalecimento da educação ambiental e acesso à água potável para todos de acordo com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 (Organização das Nações Unidas). Contudo, apesar do eixo de destaque, as propostas e as entregas voltadas ao meio ambiente e sustentabilidade são trabalhadas de forma sintética e não é possível mensurar como serão executadas.
Já no plano de governo do candidato Ronaldo Dimas, as questões ambientais não se constituíram como um eixo exclusivo do plano de governo e sim como subtema (Política de Meio Ambiente e Saneamento) dentro do eixo Eixo III, que trata do desenvolvimento econômico e sustentável. Mesmo como subtema, as questões ambientais foram contempladas em vinte e duas propostas, maior número de propostas dentre os planos de governo analisados. Mesmo assim, não é possívelidentificar como tais propostas podem ser materializadas, uma vez que as mesmas são apenas citadas sem nenhum direcionamento específico para a aplicação no estado.
O candidato Paulo Mourão foi o que apresentou as questões ambientais de forma mais transversal no plano de governo e destinou espaço para eixo específico sobre o tema, chamado de “Meio ambiente, sustentabilidade e recursos hídricos”. Assim como o plano de governo do candidato Wanderlei Barbosa, as ações voltadas para o meio ambiente estão relacionadas com o cumprimento dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030. O plano destaca que “o meio ambiente e as políticas sociais estão no centro desta nova forma de fazer desenvolvimento que será norteada pela Abordagem Territorial e os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS)”.
No plano está descrito o compromisso com ações nas áreas de preservação, conservação e recuperação dos recursos naturais, assegurando a demarcação de novas unidades de conservação e a regularização ambiental das propriedades privadas. Assim como nos planos dos candidatos Wanderlei Barbosa e Ronaldo Dimas, está prevista a implementação da economia verde.
O eixo enfatiza ainda áreas prioritárias para gestão estadual como: conservação e recuperação de recursos naturais, produção e sustentabilidade ambiental, gestão dos recursos hídricos e saneamento básico e educação ambiental. No entanto, na descrição das ações não é possível identificar como serão aplicadas.
Algumas reflexões podem ser feitas a partir da análise dos três planos de governo. A primeira delas é a ausência de ações diretamente voltadas para a preservação do bioma amazônico. O Tocantins faz parte da Amazônia Legal brasileira, embora com extensão reduzida segundo o Mapa de Biomas e o Mapa da Vegetação do Brasil, publicados pelo IBGE em 2007 . O bioma amazônico ocupa cerca de 9% do território, tendo provavelmente sofrido redução nos dias atuais. A ausência de propostas voltadas para a preservação do bioma amazônico caminha em direção oposta ao apelo mundial de movimentos ambientalistas, organizações internacionais, comunidades tradicionais e povos indígenas pela preservação da Amazônia.
Mesmo que haja a propositura de programas para diminuição e prevenção de queimadas, conscientização ambiental e sequestro de carbono, redução das emissões de Gases de Efeito Estufa (GEE), não foi verificada nenhuma ação específica voltada para o bioma.
Nos últimos anos a temática ambiental tem deixado de ser pautada apenas por ativistas e organizações da área e tem despertado o interesse das corporações e dos mercados de capitais. Esta transição para contextos mais estratégicos das corporações é percebida por meio do interesse no chamado ESG (Environmental, Social and Governance) que se tornou sinônimo de sustentabilidade e impacto ambiental. No contexto do setor público, observamos que as instituições têm procurado desenvolver ações alinhadas à Agenda 2030 (ODS/ONU) e no âmbito da plataforma eleitoral observamos que dois planos de governo estabeleceram compromisso com o cumprimento da referida agenda: os planos dos candidatos Wanderlei Barbosa e Paulo Mourão.
Os três planos de governo analisados estão majoritariamente pautados em ações ligadas ao sistema fazendário e de arrecadação, especialmente ao ICMS, e a ações voltadas à saúde, educação, inovação e tecnologia, enquanto as questões ambientais ficam nos bastidores. A ausência de um destaque mais amplo merece uma análise atenta levando em consideração que o setor que impulsiona mais amplamente o desenvolvimento econômico do estado é o agronegócio. Ainda assim, estratégias eficazes para que as empresas agropecuárias instaladas no Tocantins destinem parte dos lucros em prol da preservação ambiental não foram mencionadas.
Em 2018, por exemplo, segundo levantamento realizado pela Plataforma Cipó, as maiores doações de punidos pelo Ibama foram para governadores eleitos na Amazônia. O Tocantins está entre os cinco estados que mais receberam esse tipo de recurso junto com Mato Grosso, Acre e Pará.
O plano de Ronaldo Dimas (PL) destaca, por exemplo, que o êxito do setor agropecuário depende da união da infraestrutura rural e o desenvolvimento socioeconômico baseado em três pilares da sustentabilidade: econômico, ambiental e social. Já o plano do candidato Paulo Mourão (PT) ressalta que é preciso difundir estratégias e iniciativas de desenvolvimento sustentável do agronegócio aliadas ao meio ambiente, enquanto o plano de Wanderley Barbosa (Republicanos) aponta para a necessidade do agronegócio ter sustentabilidade para ocupar seu espaço de forma saudável. Não há resposta convincente nos planos sobre a forma do agronegócio coexistir de forma sustentável e aliada com a preservação do meio ambiente especialmente dos biomas amazônico e do cerrado que estão em constante ameaça no estado.
Cynthia Mara Miranda é jornalista pela Universidade Federal do Tocantins, mestra e doutora em Ciências Sociais pela Universidade de Brasília, com período sanduíche na Carleton University (Canadá). Atualmente é professora do curso de Jornalismo e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Sociedade na Universidade Federal do Tocantins, coordenadora local do Laboratório de Estudos Geopolíticos da Amazônia Legal (LEGAL) no Tocantins.
por Helena Dolabela
Helena Dolabela e Leonardo Barros Soares
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Na semana passada foi selado o apoio público de Marina Silva (Rede) ao candidato Lula (PT), ainda em primeiro turno. No escritório da campanha política do presidenciável, em São Paulo, Marina participou de uma coletiva de imprensa ao lado de Lula, Gleisi Hoffman, Aloízio Mercadante e Geraldo Alckmin. Com um discurso baseado na conjuntura político-eleitoral nacional, mas também nos desafios climáticos globais, ela afirmou existir ali um “reencontro político e programático”. O propósito de fundo declarado por Marina é enfrentar “a ameaça das ameaças, a ameaça à democracia”, para ela representada pela candidatura à reeleição de Jair Bolsonaro. Talvez não seja exagero denominá-lo como o evento mais importante para a pauta ambiental durante a campanha presidencial de 2022. O tema, que foi recorrente durante os quase quatro anos do governo Bolsonaro, não apresenta a mesma centralidade nos debates entre os outros candidatos.
Marina Silva tem a sua história política construída na vivência como seringueira e liderança sindical rural na defesa dos direitos dos povos tradicionais e da floresta amazônica. Grande amiga de Chico Mendes, assassinado em 1988, lutou com ele pela criação e consolidação da pauta socioambiental também nacionalmente. Tem conhecimento de causa, de luta e de direitos. Como poucos políticos que alcançam tamanha projeção nacional – foi vereadora, deputada estadual, senadora pelo Acre por duas vezes, ministra do Meio Ambiente no Governo Lula e candidata à Presidência da República por três vezes – nunca se afastou do socioambientalismo como movimento e direito.
Neste momento crucial da história democrática do país, Marina Silva e seu grupo político decidiram pautar uma agenda climático-ambiental avançada e com propostas claras baseada em um tripé: criação de uma Autoridade Nacional de Segurança Climática, a demarcação de terras indígenas e a criação de unidades de conservação. Mostra, portanto, que tem uma visão institucional e operacional sobre a pauta da mudança climática transversal a várias políticas e ministérios. Além disso, dá visibilidade a outras duas pautas incomodamente marginais neste pleito eleitoral até então, mas diretamente relacionadas com a regulação do clima: a retomada da demarcação de terras indígenas e a ampliação das unidades de conservação. Não à toa, Lula afirmou que as propostas de Marina eram “ousadas”.
No mesmo dia, Lula foi entrevistado pela CNN e fez jus à aliança. Perguntado pelo jornalista William Waack sobre a “reconciliação” com Marina e a existência de “contrapartidas”, Lula falou sobre direitos de povos e comunidades tradicionais. Respondeu com firmeza sobre a sua “opção” de efetivar o direito à demarcação de terras para indígenas e quilombolas, lembrando o seu passado de compromisso com a criação de reservas ambientais e direitos territoriais para povos tradicionais. Assim, se apresenta, hoje, como a candidatura à Presidência da República que tem maior envergadura programática para enfrentar e impulsionar o que foi nomeado por Marina como um “imperativo ético para dar conta do grave problema da mudança climática”.
A aproximação tem contornos políticos para além do espectro partidário na medida em que a federação PSOL-Rede já compõe a coligação “Brasil pela Esperança”. As análises no campo da esquerda sobre o anúncio público do apoio de Marina ao ex-presidente Lula convergem: é um jogo de ganha-ganha. Marina Silva traz para perto de Lula a marca da sua trajetória como mulher nortista, evangélica e uma das mais importantes lideranças socioambientais que este país já teve. Por outro lado, Marina ganha ainda mais visibilidade para o pleito à deputada federal em São Paulo, onde não está sua base eleitoral mais fiel. De quebra, como um efeito inesperado, mas bem-vindo para a campanha petista, isola ainda mais Ciro Gomes, que se vê cada vez mais pressionado pela possibilidade de abandono por parte de eleitores desejos de ver a fatura eleitoral liquidada já no primeiro turno.
No entanto, nem tudo são flores e convém moderar as expectativas. Em que pese o inegável fato de que a aliança com Marina dê a robustez que faltava ao compromisso ambiental do programa de governo do candidato Lula, é preciso saber se, na eventualidade de sua vitória, a política ambiental se subordinará, mais uma vez, aos imperativos da realpolitik, assim como aconteceu durante os governos petistas. Lembremos que também fazem parte do legado desses governos o gosto amargo da construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, que permanece intragável para as populações tradicionais afetadas, e a aprovação do Novo Código Florestal, para citarmos apenas dois fatos mais proeminentes.
Os setores que se beneficiaram enormemente nos últimos anos no governo Bolsonaro não deverão vender barato qualquer tentativa de repressão de ilícitos ou diminuição de suas obscenas margens de lucro e poderão pressionar de forma implacável o novo governo, que terá de ceder em alguns dos compromissos assumidos com a pauta ambiental. Em outras palavras, mesmo que, a curto prazo o ganho mútuo da reaproximação seja inegável, o mesmo não pode ser dito para uma perspectiva de médio ou longo prazo. Será preciso esperar a composição de forças no Congresso para que possamos ter mais elementos para um prognóstico político mais claro.
A reaproximação Lula-Marina é, sem dúvida, uma notícia auspiciosa, num ambiente eleitoral extremamente tensionado, e uma cartada política relevante para dois agentes políticos experimentados. Em termos programáticos, Lula se apresenta como um candidato que, de volta ao poder, poderá retomar o protagonismo internacional, destroçado pelo governo Bolsonaro, no campo da política climática, e encaminhar o país para uma vigorosa política ambiental que formate sobre novas bases a matriz energética e as cadeias produtivas do país. A questão é saber em que medida as forças político-econômicas que se beneficiam da degradação ambiental se organizarão para manter e até mesmo ampliar o impulso destruidor em voga em tempos bolsonaristas.
Assim, não é um exagero afirmar que as eleições de 2022 são o “momento da verdade” para o meio ambiente no Brasil. Estamos diante de duas trilhas que levam a dois futuros bastante distintos. O mundo inteiro olha com preocupação para o outubro vindouro, que pode ser a pá de cal nas esperanças de um planeta climaticamente equilibrado ou a retomada da esperança num futuro menos catastrófico. Que a aproximação Lula-Marina seja apenas o início de uma possível – e bem-vinda – mudança de rumos para a política ambiental em nosso país.
Helena Dolabela é pesquisadora de pós-doutorado no INCT IDDC. Graduada em Direito. Mestre em Ciência Política e Doutora em Antropologia pela UFMG.
Leonardo Barros Soares é professor do Departamento de Ciências Sociais da UFV e colaborador do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFPA. Mestre e doutor em Ciência Política pela UFMG, com período sanduíche na Université de Montréal. Coordenador do Grupo de Pesquisa Política e Povos Indígenas nas Américas.
por Leonardo Barros Soares
Há menos de um mês para as eleições de 2022 a floresta amazônica registra seu recorde de focos de incêndio nos últimos 12 anos. É um fato que não pode ser encarado com surpresa por ninguém. O governo de Jair Bolsonaro, desde seu primeiro dia, dedicou-se diuturnamente a desmantelar o sistema de proteção normativa e institucional do meio ambiente brasileiro inaugurado pela Constituição de 1988. A famosa “boiada”, tristemente tornada célebre pela fala do então ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles durante uma reunião ministerial, passou e não tardou em deixar evidente seu rastro de destruição.
Não é necessário puxar muito pela memória para perceber que o tema do meio ambiente esteve presente em vários momentos durante os anos do mandato de Jair Bolsonaro. Quem não se lembra do desdém com que o governo recebeu a notícia da suspensão dos repasses ao Fundo Amazônia por parte do governo Norueguês? Ou das queimadas devastadoras no pantanal mato-grossense? Ou, ainda, da insinuação, por um lado, de que as queimadas na Amazônia seriam “fake news” por que a floresta é úmida ou, por outro, de que seriam os próprios ribeirinhos os responsáveis pela devastação? Os exemplos multiplicam-se e não conseguiríamos citar todos eles aqui.
O saldo de quase quatro anos de governo Bolsonaro para o meio ambiente é, portanto, de terra arrasada, literalmente. Desmantelamento dos órgãos de controle e proteção do meio ambiente, violência contra povos tradicionais e ativistas ambientais, expansão desenfreada de atividades ilícitas na região amazônica em que convergiram garimpo ilegal, narcotráfico, milícias, grilagem de terras, desmatamento, poluição dos rios e do oceano, pesca ilegal e toda sorte de crimes. A Amazônia Legal, que já não era conhecida pela força do império da lei, tornou-se um verdadeiro “faroeste verde”. Tudo isso sob os olhos do natimorto Conselho da Amazônia, dos governos estaduais e das forças de segurança nacional.
Do ponto de vista da competição pelo Palácio do Planalto e seus efeitos sobre a questão em tela, dois cenários distintos surgem no horizonte. Na hipótese da eleição de Lula, é possível antever a retomada de uma certa institucionalidade na Amazônia Legal com vistas a tentar reduzir os atuais recordes de desmatamento e queimadas na região, assim como uma maior repressão às atividades do narcogarimpo. Caso Bolsonaro seja reeleito, no entanto, talvez tenhamos de nos despedir da região amazônica como bioma da forma como conhecemos. A devastação, que já é profunda, intensa e extensa, ganhará um impulso inédito com a eventual sanção, nas urnas, da atual tendência de savanização da região. Além disso, Bolsonaro avançará para a última fronteira ainda não completamente explorada pelos agentes econômicos: a liberação de mineração em terras indígenas, com potenciais consequências genocidas para as populações tradicionais.
No que tange à disputa estadual, o panorama político nos estados da Amazônia Legal não é mais animador. Do ponto de vista das oligarquias estaduais que dominam a política local, Bolsonaro significou a liberação de todos os “entraves” – leia-se legislação ambiental e instituições de controle – existentes que impediam, ou pelo menos freavam, o avanço indiscriminado sobre a floresta. Para elas, o governo Bolsonaro representou quatro anos de lucros extraordinários e impunidade máxima. A flexibilização das leis ambientais e o incentivo ao desmatamento beneficiaram muita gente poderosa e com dinheiro. É evidente que desejam perpetuar essa situação indefinidamente e, por isso, apoiam Bolsonaro.
Dois elementos novos chamam a atenção dos analistas e devem ser objeto de estudos nos próximos anos. Por um lado, é forçoso reconhecer que o pleito registrará um grande número de candidaturas de “resistência”. Nesse grupo estão incluídos ativistas ambientais, lideranças indígenas, cientistas e agentes dos quadros da burocracia da política ambiental do Estado brasileiro que se apresentam no processo eleitoral como um sinal de reação da sociedade civil ao panorama catastrófico da política de meio ambiente do governo Bolsonaro a que já fizemos alusão.
Por outro lado, aparentemente, a devastação da Amazônia ganhou uma dinâmica doméstica própria. As sanções internacionais, ainda muito tímidas, não foram capazes de sensibilizar os estados para agirem energicamente contra os ilícitos ambientais. A crise ambiental na região é profunda, multicausal e não será resolvida com bala de prata. É preciso uma concertação de fatores e atores políticos internacionais, nacionais, estaduais e locais atuando em sinergia para que a situação mude.
O próximo governo – caso Bolsonaro não seja reeleito – vai se deparar com o desafio de reconstruir o Ibama e o ICMBio, frear a sanha desmatadora, retomar o controle da região amazônica, voltar a fazer parte dos pactos climáticos e superar a péssima reputação internacional angariada pelo Brasil nos últimos anos.
O que está em jogo nessas eleições, portanto, não é, de modo algum trivial: a manutenção da imensa biodiversidade dos biomas brasileiros, a regularidade de nosso regime de chuvas e, portanto, o abastecimento de água para consumo e a produção agrícola de todo o país, a soberania sobre a região amazônica e, globalmente, a própria estabilidade do clima planetário. Não é pouca coisa e, infelizmente, o cenário que se desenha para o futuro não é animador.
Leonardo Barros Soares é professor do Departamento de Ciências Sociais da UFV (Universidade Federal de Viçosa) e colaborador do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFPA (Universidade Federal do Pará). Mestre e doutor em ciência política pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), com período sanduíche na Université de Montréal (Canadá). Coordenador do Grupo de Pesquisa Política e Povos Indígenas nas Américas.
por Helena Dolabela
Helena Dolabela
A Amazônia é o epicentro da agenda de segurança climática e hídrica do planeta. Espaço de proporções continentais, maior fronteira de recursos naturais composto de rede de bacias hidrográficas e enorme diversidade biológica e cultural, é fundamental na prestação de serviços ambientais como equilíbrio ecossistêmico, sumidouro de carbono e provedor de corredores de umidade. Tem papel incontornável no debate sobre o futuro de humanos e não humanos na sociedade global contemporânea. A sua proteção é tão urgente quanto óbvia, mas não parece ainda ter encontrado ressonância – à altura do colapso climático – na pauta eleitoral.
Já publicamos nesse Observatório um artigo sobre a inclusão da pauta de mudança climática nos planos de governo dos candidatos à Presidência em 2022. Afirmamos que este tema, intrinsecamente relacionado à proteção da Amazônia brasileira, está presente nas diretrizes e propostas de governos para o futuro. No entanto, advertimos que era preciso ir além e acompanhar a direção e a coerência dos discursos e ações dos presidenciáveis ao longo da campanha eleitoral.
Havia uma grande expectativa em relação ao primeiro debate televisionado com os candidatos à Presidência da República. Uma real oportunidade de dar visibilidade às visões e propostas dos candidatos em relação à Amazônia brasileira. Mas não foi o que aconteceu. Durante o debate, nem pela parte dos jornalistas nem pelos próprios candidatos o tema teve qualquer centralidade. De holofotes baixos, o presidente Lula fez a única pergunta sobre a crise climática para o candidato Felipe D`Ávila (Novo) numa dupla tentativa de criticar a política de destruição da floresta do atual presidente Bolsonaro e exaltar a sua política passada contra o desmatamento e a favor da cooperação internacional, mas sem polemizar a respeito. A resposta do candidato do partido Novo, que só enxerga mercado a sua frente, foi: “meio ambiente nós vamos resolver com mais mercado”. Ele ainda criticou a “retaliação” ao Brasil por parte dos governos estrangeiros que bloqueiam a compra de soja e carne proveniente de áreas desmatadas: E sentenciou: “O agronegócio é o que mais sofre com o desmatamento”. Por fim, se mostrou aberto ao diálogo com os organismos estrangeiros para o crescimento econômico e a retomada de investimentos internacionais.
A jornalista Eliane Brum, autora do livro Brasil, construtor de ruínas: um olhar sobre o Brasil, de Lula a Bolsonaro no qual está embasada a ideia da Amazônia como “centro do mundo”, se posicionou nas redes sociais após o debate: “a palavra Amazônia não foi pronunciada, nem a palavra “indígena”, nem a palavra “racismo”. Meio ambiente foi mencionado de forma superficial, mas cobriram o agronegócio de elogios e uma candidata fez propaganda para o Ferrogrão (…) Parecia um teatro de uma outra época, sobre um Brasil de outro tempo. A desconexão dos candidatos e das candidatas com o que realmente é importante, com o que define nosso presente e o que definirá o nosso futuro é aterradora”.
Na semana seguinte, uma movimentação da candidatura Lula começou a preencher esse vazio político-eleitoral. No dia 29 de agosto, o candidato Luiz Inácio Lula da Silva teve um encontro com deputados do Parlamento Europeu durante o qual foi discutido, entre outros temas, a proteção da floresta amazônica. Lula reafirmou o compromisso com a soberania da Amazônia e pronunciou-se favorável ao apoio da União Europeia em investimentos, ciência e tecnologia e projetos para a exploração da biodiversidade da Região Amazônica. Este encontro sinaliza um deslocamento em relação à política externa bolsonarista na questão ambiental que levou a retrocessos diplomáticos com forte impacto no combate ao desmatamento, conservação ambiental e fomento a atividades econômicas sustentáveis.
Estes acenos eleitorais para fora de D´Ávila e Lula na tentativa de recuperar a credibilidade do país na questão ambiental e retomar a cooperação internacional junto à União Européia – ainda que por espectros diferentes – também têm aparecido no discurso da candidata Simone Tebet. Esta candidata tem se dedicado a “colar” em sua candidatura uma imagem positiva de gestora experiente e comprometida com o desenvolvimento sustentável e economia verde. Em recente entrevista realizada para o canal da CNN, ela criticou a posição do Brasil como “pária internacional”, reafirmando a importância de um alinhamento na questão ambiental junto à União Europeia. A justificativa invocada é a sua importância para a manutenção e a expansão do agronegócio – o que se mostra mais convergente com a posição do candidato do Novo.
Já Ciro Gomes, preocupado em se mostrar como o candidato que salvará a pátria da polarização e reerguerá a combalida economia brasileira por meio da reindustrialização, não explica como essa última proposta se conciliará com uma agenda ambiental que tenha compromisso com a redução dos níveis de emissão de carbono. Se manifestou sobre a crise ambiental quando provocado pelo jornalista da Rede Globo, no qual explicou a sua proposta de zoneamento econômico-ecológico e regularização fundiária na Amazônia, mas estas pautas complexas ficaram totalmente esquecidas nas suas subsequentes aparições. Definitivamente, ainda não disse o tamanho do seu compromisso com o futuro da região.
Para finalizar. No dia 5 de setembro foi celebrado o Dia da Amazônia. A data foi lembrada nas redes sociais pelos principais candidatos à Presidência, os quais se manifestaram em breves textos pela preservação da floresta amazônica no twitter, com exceção de Jair Bolsonaro. Isto não é uma grande surpresa, para quem, em sua primeira entrevista em rede nacional, propalou uma interpretação equivocada e pró-criminosos sobre a Lei de Crimes Ambientais, desautorizando a atuação de agentes do Ibama no combate à exploração mineral ilegal. Ao contrário do que ele disse, a legislação brasileira permite a destruição de produtos que estejam sendo usados em atividades de garimpo ou mineração ilegais. O plano de governo de Bolsonaro 2022, que se mostra mais aberto à questão climático-ambiental, parce ser uma peça apenas formal e que não corresponde a sua visão de mundo negacionista e retrógrada.
Como tentamos mostrar de forma breve, embora seja possível visualizar alguns avanços e distanciamentos em relação à política atual, especialmente no âmbito das relações exteriores, o balanço sobre o lugar da Amazônia na pauta eleitoral até aqui continua o mesmo: marginal, sem profundidade e desconectado da escala planetária dos desafios futuros para o país e para a humanidade. São tantas as questões internas que também precisam ser discutidas como, por exemplo, o fato bastante ignorado de que a Amazônia é um local onde eventos climáticos extremos já estão ocorrendo, com forte impacto no modo de vida dos povos tradicionais, especialmente daqueles que ainda não tiveram os seus direitos constitucionais reconhecidos por meio da demarcação de terras. A agenda é longa, complexa e tem que ser enfrentada já!
Helena Dolabela é graduada em Direito. Mestre em Ciência Política e Doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal de Minas Gerais. Pesquisadora em estágio pós-doutoral do INCT-IDDC.
por Leonardo Barros Soares
Ana Carolina Vaz da Silva e Leonardo Barros Soares
Publicado no Congresso em Foco
Terras indígenas se constituem, hoje, no Brasil, como uma das últimas fronteiras de contenção para a sanha destruidora do meio ambiente que ganhou impulso durante o mandato do presidente Jair Bolsonaro. Povos indígenas não apenas aqui, mas em todo o mundo, estão na linha de frente da luta pela preservação dos biomas e desenvolvem um papel crucial – muitas vezes, às custas de suas próprias vidas – na manutenção da regulação climática do planeta. Além da atuação política nos territórios, os povos indígenas brasileiros estão se organizando para aumentar sua representação nas instituições políticas tradicionais em âmbito estadual e federal.
Em 2022, vimos o maior número de candidaturas indígenas lançadas para as eleições brasileiras. Este é um crescimento que se apresenta de forma paulatina, mas, esse ano, observamos que a estratégia prioritária publicizada por organizações do movimento indígena tem sido a luta pela eleição de representantes de suas comunidades, na busca pelo “aldeamento da política”. Com isso em mente, o presente texto apresenta o mapeamento das candidaturas indígenas lançadas ao pleito deste ano e, ao mesmo tempo, aponta reflexões acerca do papel dos partidos políticos nessas candidaturas.
Para a realização do levantamento a partir da classificação étnica, utilizamos a autodeclaração dos candidatos. Os dados foram retirados do Portal Dados Abertos do Tribunal Superior Eleitoral. Foram solicitadas ao TSE o registro de 183 candidaturas indígenas. Destas solicitações, três candidatos foram declarados inaptos e 180 indígenas tiveram seus registros aceitos. Realizando-se o mapeamento somente com os considerados aptos ou cadastrados, encontramos candidatos disputando cargos nos pleitos estaduais ou nacional. Com exceção do cargo à Presidência, todos os outros têm, ao menos, um candidato indígena.
São 111 candidaturas para deputado estadual ou distrital, 56 para deputado federal, duas para governador e três para senador. Também foi registrada a primeira candidatura à vice-presidência, quatro para vice-governador e três para suplentes de senador. Há um aumento significativo na comparação com as eleições de 2018, quando 124 indígenas foram apresentados ao eleitorado, e de 2014, com apenas 74 candidaturas .
Um fator interessante pode ser destacado: todos os estados brasileiros lançaram ao menos um candidato indígena nas eleições de 2022. Em 2018, Goiás era o único estado que não contava com nenhum candidato indígena. Em 2022, um indígena apresentou-se ao pleito para deputado estadual. Já Roraima é o estado com o maior número de indígenas lançados ao pleito, 29 candidatos. No estado, quase todos os cargos tiveram uma candidatura indígena. No recorte regional, a região Norte é a que possui o maior número de candidaturas, 41% do total de candidaturas indígenas dessas eleições, seguida pela região Nordeste (19%), Sudeste (18%), Centro-Oeste (10,5%) e Sul (10%).
Das candidaturas lançadas, quase 93% são direcionadas ao pleito proporcional, sendo que 61% dos candidatos indígenas estão disputando as assembleias estaduais e 31% a Câmara Federal. Apenas 7% dos candidatos concorrem nas eleições majoritárias. A literatura da Ciência Política aponta que esse valor tão díspar é justificado pelos muitos custos que os partidos têm ao lançamento de jogos majoritários ou em arenas nacionais (como, no caso, os deputados federais). Logo, o lançamento de candidaturas passa a ser seletivo. As organizações partidárias têm como prática atribuir uma maior prioridade, recursos financeiros e humanos aos candidatos considerados com “capital político”. A mesma literatura aponta que as arenas estaduais e proporcionais costumam ser as disputas consideradas menos custosas aos partidos.
Já para os candidatos indígenas, em virtude do entrave partidário, as arenas estaduais costumam ser um meio de entrada para a arena política, onde podem contar com o poder de mobilização de suas organizações como agitadores políticos – pois, em geral, não podem contar com os recursos partidários.
Cabe-nos, de antemão, questionar as razões que levam as lideranças políticas a não priorizar o lançamento de candidaturas indígenas ao majoritário. Já é sabido que as populações indígenas, mais do que falar sobre os seus, detém conhecimento e capital político para o acesso a cargos majoritários. A quem interessa o lançamento de apenas candidaturas brancas para esses espaços?
No cenário observado em 2022, apenas o PT, PSOL, PSTU e UP lançaram indígenas para cargos majoritários. A exceção está na candidatura para senador lançada pelo Republicanos, do vice-presidente Hamilton Mourão, que se autodeclarou indígena ao TSE. Já para as eleições proporcionais, seja para a Câmara Federal ou para as assembleias estaduais, observamos o lançamento de uma variedade de partidos. Foram 29 partidos lançando ao menos um candidato indígena para o pleito proporcional. Entre os cinco partidos com o maior número de candidaturas indígenas estão Rede (19), Psol (18), PT (17), PDT (14) e PL (13), partido do presidente Jair Bolsonaro.
Sobre a variedade partidária para essa disputa, dois pontos devem ser analisados com cautela. Por um lado, a partir do sistema de auto-declaração, a presença de candidaturas indígenas em partidos de direita demonstra que nem sempre os candidatos estão alinhados com as pautas do movimento indígena, como é o caso de Mourão. De outro, é necessário avaliar – a partir de pesquisas futuras – a capilaridade que os partidos possuem nos estados. A força partidária das agremiações altera-se a partir do território em que estão presentes e isso faz com que, mesmo candidaturas alinhadas ao movimento, tenham que se lançar em partidos de centro ou de direita. Um exemplo disso é a candidatura de Marquinhos Xukuru, pelo Republicanos, em 2020, para a Prefeitura do município de Pesqueira (PB).
Na comparação temporal, é possível verificar que as candidaturas indígenas têm ganhado cada vez mais espaço nos partidos. Esse cenário é resultado direto das mobilizações realizadas pelas organizações sociais indígenas em torno da ocupação de cargos públicos. Em 2022, essas organizações nos convidam para o “aldeamento da política”, elegendo estes parlamentares. Enquanto a mobilização desses atores políticos deve ser saudada, a abertura dos partidos políticos para o acesso desses e dessas sujeitas deve ser repensada. É preciso que haja maiores incentivos partidários para que essas candidaturas consigam se tornar viáveis eleitoralmente.
Devemos estar atentos para a possibilidade de ampliação da representação indígena nos espaços tradicionais de poder. A constituição de uma “bancada do cocar” não apenas na arena federal, mas também nas arenas estaduais, pode trazer novas perspectivas para a luta contra o desmantelamento normativo e institucional em torno do meio ambiente que tem vigorado nos últimos anos no país.
Gráfico 1. Número de candidatos indígenas nas eleições de 2022, recorte por cargo e unidade federativa.
Fonte: Dados Abertos TSE. Elaboração: Ana Carolina Vaz da Silva
Ana Carolina Vaz da Silva é professora substituta na Universidade Federal de Viçosa. Doutoranda, mestra e bacharel em Ciência Política pela UnB. Participa do Grupo de Pesquisa Relações entre Sociedade e Estado (Resocie) e do Grupo Política e Povos Indígenas nas Américas (Popiam).
Leonardo Barros Soares é professor do Departamento de Ciências Sociais da UFV e colaborador do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFPA. Mestre e doutor em Ciência Política pela UFMG, com período sanduíche na Université de Montréal. Coordenador do Grupo de Pesquisa Política e Povos Indígenas nas Américas.