Argumentar que não há riscos para regime no país é desconsiderar que a atuação das instituições pode mudar a depender das pessoas que ali estão e das pressões a que estão submetidas
Carlos Ranulfo de Melo
Publicado no Nexo Jornal
A pergunta acima pode ser respondida de várias maneiras. No entorno de Bolsonaro, a resposta está na ponta da língua: seremos uma democracia se o STF (Supremo Tribunal Federal) e a PGR (Procuradoria-Geral da República) deixarem o governo trabalhar, a imprensa for responsável, os valores tradicionais da família forem respeitados, o amor à pátria e a Deus estiverem acima de tudo e o PT for extirpado.
Uma segunda resposta foi vocalizada por Ciro Gomes (PDT) em seu apoio envergonhado a Lula. Segundo o ex-candidato, a democracia não corre risco, seja qual for o vencedor no segundo turno. Diga-se de passagem que alguns poucos cientistas políticos compartilham essa visão.
A resposta bolsonarista não merece muitos comentários, até porque o atual presidente e seus apoiadores mais próximos não têm qualquer credibilidade para discutir o tema. O que eles imaginam como uma democracia dos sonhos nem democracia é – é o governo, sem qualquer limite constitucional, do ex-capitão.
A segunda resposta pode provocar mais danos. Seus defensores acreditam que as instituições democráticas têm funcionado bem, são fortes e resistirão a qualquer tentativa de retrocesso. É verdade que a democracia sobreviveu ao primeiro mandato de Bolsonaro. O STF e o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) se destacaram nesse ponto, tivemos uma CPI no Senado e as propostas mais reacionárias foram barradas. Bolsonaro colocou na PGR e na Polícia Federal alguém para protegê-lo, mas não conseguiu controlar por completo nenhuma das duas instituições. Neutralizou a Câmara dos Deputados e com isso se livrou de um processo de impeachment, mas isso é do jogo.
O problema de se argumentar que a democracia não corre riscos é desconsiderar que a atuação das instituições pode mudar a depender das pessoas que ali estão e das pressões a que estão submetidas. Regras podem ser alteradas e com isso abrir opções, antes não existentes, para retrocessos. Ou alguém duvida que o bolsonarismo possa investir em um aumento no número de juízes no STF para com isso deixar o caminho livre para aventuras autoritárias? Regras também podem ser objeto de uma interpretação a gosto da maioria existente – como foi o caso da transformação das pedaladas fiscais em crime de responsabilidade para legalizar o impeachment de Dilma.
Isso nos leva à terceira maneira de responder à pergunta do título: no caso de um segundo mandato de Bolsonaro não é possível afirmar com segurança que teremos uma democracia em 2026. Quem acompanha a política pelo mundo sabe que o tempo é variável crucial: autocratas modernos não tentam subverter a democracia pelo golpe. Segundos, e por que não, terceiros mandatos, são essenciais para que se avance passo a passo. No caminho, vai se contabilizando a adesão consciente de setores das elites política, econômica e social, além da aquiescência de parcelas do eleitorado que priorizam a satisfação de seus objetivos prioritários – morais, financeiros ou de outra ordem – à preservação da democracia.
Nesse processo, mesmo aqueles que se preocupam com a democracia podem ter dificuldade de antecipar os efeitos de determinadas medidas sobre a natureza do regime e demorar a reagir. Quando “acordam”, já vivem sob outro arranjo institucional. A esse tipo de arranjo a literatura de ciência política tem chamado de autocracia eleitoral. Nele, os autocratas permitem eleições, mas o jogo a ser jogado os favorece de saída. O Estado de Direito é suprimido ou reduzido a uma caricatura na qual o controle sobre o poder não existe e os direitos individuais não são assegurados. A imprensa livre encontra-se sob cerco e a oposição, ameaçada com todas as armas possíveis, vê suas chances de vitória eleitoral reduzidas a algo próximo de zero.
Se conquistar um segundo mandato, Bolsonaro governará com um Congresso onde os partidos de direita controlam mais de 60% dos votos, seja na Câmara, seja no Senado. Nem toda a direita é bolsonarista, mas quem não o é pode ser atraído para a órbita do governo – o início das tratativas entre União Brasil e Progressistas, com vistas a uma possível fusão, aponta nesse sentido, assim como o apoio dos governadores reeleitos Ronaldo Caiado (Goiás) e Mauro Mendes (Mato Grosso) a Bolsonaro no segundo turno.
Se na Câmara a situação não mudaria de forma significativa – teríamos a continuidade de Arthur Lira na presidência da casa – no Senado, a recondução de Rodrigo Pacheco estaria ameaçada pelo crescimento da bancada do PL. Um aliado fiel a Bolsonaro na presidência do Senado – imaginem, apenas por um instante, que estejamos falando de Flávio Bolsonaro – poderia iniciar uma crise institucional ao dar prosseguimento ao pedido de impeachment de um juiz do STF, por mais absurda que seja a fundamentação apresentada.
Ao fim e ao cabo, só é possível ter certeza de que o Brasil continuará democrático em 2026 se Lula sair vencedor no segundo turno. Esse, aliás, é o recado dado por personalidades que nada têm de petistas, como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, os economistas responsáveis pela elaboração do Plano Real, ou os ex-juízes do STF, Joaquim Barbosa e Celso de Mello. A vitória de Lula não alterará a composição do Congresso, mas reduzirá a força de atração do bolsonarismo sobre os partidos de centro-direita e direita, o que muda por completo a dinâmica do processo político e bloqueia a possibilidade de retrocessos.
Carlos Ranulfo Melo é doutor em ciência política, professor titular aposentado do Departamento de Ciência Política da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e pesquisador do Centro de Estudos Legislativos. Autor de “Retirando as cadeiras do lugar: migração partidária na Câmara dos Deputados”, coautor de “Governabilidade e representação política na América do Sul” e coeditor de “La Democracia Brasileña: Balance y Perspectivas para el Siglo XXI”. Tem artigos publicados sobre partidos, estudos legislativos e instituições comparadas com foco no Brasil e nos países da América do Sul.