Helena Martins
Publicado na Mídia Ninja
Em grupos bolsonaristas no WhatsApp, narrativas que associam o ex-presidente Lula à corrupção são as mais recorrentes, ao lado daquelas que promovem medo, atacam as urnas e usam a religião para agregar adeptos do atual presidente. Entre os dias 11 e 12 de outubro, foram mapeados 6.551 conteúdos em 165 grupos associados a Jair Bolsonaro. Os estados com maior número de mensagens, de acordo com os DDDs utilizados, são, pela ordem: São Paulo, Rio de Janeiro, Pará, Paraíba, Ceará, Distrito Federal, Minas Gerais e Pernambuco. Os dados são do Farol Digital, grupo da Universidade Federal do Ceará (UFC), parceiro do Observatório das Eleições.
O período foi estabelecido para verificar o impacto de um programa específico da campanha de Jair Bolsonaro, exibido no dia 11 durante o horário gratuito de rádio e TV. Nele, Lula era relacionado a presidiários de forma pejorativa, com vídeos mostrando adesão de pessoas presas ao ex-presidente e associando esse suposto apoio ao que seria um comportamento leniente com bandidos. O programa levou a Defensoria Pública da União (DPU) a acionar o Ministério Público Federal (MPF), por considerar a peça racista e discriminatória. Nos grupos mapeados, não foram registradas menções a presidiários. A narrativa sobre corrupção é tão presente que parece dispensar a necessidade de novos conteúdos.
“Lulladrão” e “Lullarapio” são termos comumente utilizados. Uma das mensagens com bastante projeção nos grupos diz que “filho de Lulladrão e vários políticos de esquerda são os acionistas da Petrobrás, por isso, o PT não quis a CPI”, informação que é creditada à revista Veja. A mensagem termina conclamando: “O STF sai e a Lava Jato fica!”.
O Supremo Tribunal Federal (STF) é atacado neste e em diversos outros conteúdos. Os ministros são chamados de “urubus de toga”. Ações do STF em relação a conteúdos desinformativos de Bolsonaro são criticadas, assim como o suposto apoio do Supremo a Lula. Uma das mensagens divulgadas diz:
“Só precisa as autoridades se levantar a favor da nação brasileira, e não permitir que eles juntos com o Lula, destrua o Brasil, VCS acham que os ministros do STF tiraram o Lula, dá cadeia porque? eles sabem que o Lula, tem uma cambada de pessoas sem noção, igualmente, e todos os bandidos que vota no Lula, ele Alexandre de Moraes, no TSE garantia a Eleições para o lula, no primeiro turno, ai eles dominaria o Brasil, Mais o povo de direita já sabendo que eles ia frauda as urnas, elegeram os deputados e senadores de direita ai ficou difícil”.
Essa não é a única com ataques às urnas. Outro texto anuncia que o “CEO (presidente) da Smartmatic, que é a empresa que controla as eleições brasileiras, acabou de ser preso pelo FBI nos Estados Unidos”, o que já foi apontado como falso por agências de checagem. O áudio mais compartilhado na amostra, com mais de 160 aparições distintas, fala de uma suposta operação para, na apuração, conferir mais votos para Lula no primeiro turno. A mensagem, de quase dois minutos, detalha o que seria uma manipulação das urnas, que resultaria em uma vitória apertada do petista no primeiro turno. Tal conteúdo também é falso.
Convém notar que, nas mensagens de texto, não há qualquer menção a casos de corrupção de Bolsonaro. Contra Lula, ao contrário, elas aparecem das formas mais variadas. O link mais compartilhado é de um site que reúne notícias vinculando Lula e o PT a práticas de corrupção. Segundo a campanha de Lula, o site já foi denunciado, mas ainda não houve decisão por parte do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Mobilizando o medo e a religiosidade
Mensagens categorizadas como “terrorismo psicológico” pelo Farol somam mais de 190. São conteúdos que pregam o medo de um possível governo Lula, os quais são utilizados para convocar os adeptos de Bolsonaro a se mobilizarem em prol campanha. Vídeos e fotos de supostos venezuelanos fugindo do país também ganharam destaque. O recado é claro, ainda que não seja explicitado textualmente: o Brasil não pode virar uma Venezuela.
O vídeo que mais viralizou, com sessenta compartilhamentos na amostra, apresenta a área interna de uma igreja, com várias imagens de santos quebradas no chão. A pessoa que filma a cena lamenta a situação e diz: “Isso é o começo do comunismo”. Não há informações sobre o local no qual teria ocorrido a ação e nem quando. 54 pessoas distintas compartilharam o vídeo em 41 grupos. Em apenas duas mensagens, o vídeo estava acompanhado de um texto: “ATENÇÃO CATÓLICOS; vejam o início da perseguição da religião”.
Do total de mensagens, pelo menos duzentas tratam sobre religião, o que é expressivo, tendo em vista que os grupos analisados são declaradamente de apoio a Bolsonaro, não sendo, portanto, de conteúdos religiosos ou gerais. Se as mensagens sobre corrupção apresentam forte teor crítico e agressivo em relação ao ex-presidente Lula, a narrativa religiosa emerge como agregadora, definidora de uma identidade comum, de um “nós” que se contrapõe ao “eles”. Esse tipo de oposição é típico do discurso fascista, como ensina o filósofo Jason Stanley, autor de “Como funciona o fascismo: A política do “nós” e “eles”” (publicado no Brasil pela L&PM, em 2018). O “nós” visível nos grupos analisados é conformado por religiosos, patriotas, pessoas preocupadas com a família. “Eles” são os esquerdistas, comunistas e corruptos.
Um ecossistema midiático diverso
Essas narrativas ganham capilaridade por meio de todo um complexo ecossistema midiático associado ao bolsonarismo, dentro e fora da Internet, que combina uso de desinformação, informações descontextualizadas ou simplesmente parciais.
Exemplo disso, o segundo link com maior número de aparições na amostra é do programa “Os Pingos nos Is”, transmitido pelo YouTube, pela rede Jovem Pan AM e FM e na TV JP News. A “notícia” tem como centro o questionamento do número de pessoas presentes em ato da campanha de Lula em Belo Horizonte. Além do apresentador, um comentarista reforça a ideia de esvaziamento do ato. Não houve espaço para o contraditório na matéria.
Em um vídeo compartilhado quarenta vezes, a jornalista Carla Cecato, apresentadora do programa Linha de Frente, também da Jovem Pan, elogia Bolsonaro, que ela descreve como “o cara mais humilde, mais simples que eu já vi na vida”. O vídeo tem tom emotivo e apresenta imagens de um Bolsonaro simpático falando sobre futebol.
Além da emissora, outros portais ajudam a propagar mensagens e aparecem entre os domínios mais presentes, tais como: Pensando Direita, Terra Brasil Notícias, Portal Toca News, Portal Cidade News, Gazeta Brasil, Aliados Brasil Oficial e Contra Fatos. Os dois primeiros, conhecidos por veicular fake news, foram compartilhados mais de duzentas vezes cada.
A diversidade de estratégias no âmbito da comunicação é um elemento que deve ser considerado na explicação da força demonstrada pelo bolsonarismo no primeiro turno. Mais que ganhar lastro pela repetição, a presença dos conteúdos em diversas mídias e formatos faz com que tais narrativas passem a integrar o cotidiano dos receptores, moldando sua visão de mundo.
Como explica Jason Stanley, “o objetivo do fascismo (…) é destruir nosso respeito pela verdade, destruir nosso senso de realidade. É nos fazer pensar que há apenas ruído e que devemos escolher um lado”. A batalha da comunicação, tão visível neste segundo turno das eleições brasileiras, é parte essencial da estratégia desenvolvida para atingir tal fim.
Helena Martins é professora da UFC. Doutora em Comunicação pela UnB, com sanduíche no Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade de Lisboa (ISEG). É editora da Revista EPTIC. Coordenadora do Telas – Laboratório de Tecnologia e Políticas da Comunicação e integrante do Obscom / Cepos.