Yuri Holanda Cruz*
- Embora um debate “full house” seja um evento memorável do ponto de vista da campanha e daqueles que gostam e acompanham de perto a dinâmica eleitoral, não devemos superdimensionar o episódio. A comunicação política é um fenômeno cumulativo: é uma construção que diz respeito à imagem pública que o candidato ou candidata construiu ao longo do tempo. Um mau desempenho ou um ótimo desempenho em um evento específico dificilmente altera a percepção pública sobre a personagem.
- São três grupos de candidatos no debate realizado pelo pool liderado pela Band (podem ser classificados de outras formas, mas proponho esta):
- Os inexpressivos: Felipe e Soraya. São aqueles que não chegam a 1% de intenção de votos nos agregadores de pesquisas (para essa análise, foram consultados Estadão e Poder 360). São inexpressivos no que diz respeito à pontuação em pesquisas. Suas candidaturas são tão legítimas quanto as demais. Do ponto de vista do jogo, em um debate televisionado, sua participação pode ser decisiva, especialmente porque fazem perguntas diretas aos adversários: podem oferecer ganchos, refutações, amainar ou esquentar a temperatura do debate.
- Os intercambiáveis: Ciro e Tebet. Juntos, possuem de 9 até 14% das intenções de voto. Sua faixa de eleitorado pode decidir o pleito. São intercambiáveis porque seu eleitorado pode ter identificação com eles de apelo pessoal (no caso de Tebet) ou de apelo programático (no caso de Ciro), mas também porque construíram suas plataformas com a intenção de ser uma terceira opção palpável entre os candidatos hegemônicos. São players fundamentais no jogo, inclusive porque seu posicionamento será o fiel da balança em um possível segundo turno. Eles exercem um poder de atração sobre as camadas menos aderentes de possíveis eleitores dos candidatos hegemônicos e podem tirar votos deles. É importante lembrar que os intercambiáveis disputam 2022, pensando em 2026. Sua estratégia é de longo prazo.
- Os hegemônicos: Lula e Bolsonaro. Somam cerca de 78% das intenções de voto. Este é um ineditismo de 2022: temos dois candidatos que já colocaram a faixa presidencial no peito. Ambos weberianamente carismáticos. Lula tem uma longa história orgânica com seu partido político de genética popular. Bolsonaro conta com firme base eleitoral, visceralmente vinculada ao seu discurso e resiliente a qualquer crítica.
- Felipe D’Avila: Começou o debate com uma fala sobre ser um trabalhador, aquele que acorda cedo e vai à luta. Não usava gravata (talvez para que discurso e imagem não entrassem em contradição). Ocorre que, entre os presentes, é o candidato com maior patrimônio declarado à Justiça Eleitoral. Privatista, defendeu o agronegócio. Faz o perfil “não sou político, sou gestor”. Esse papel elegeu muitos candidatos em 2018, mas Felipe chegou atrasado. Estamos em 2022.
- Soraya: Repetidamente apontava a caneta para a câmera e para o alto, reivindicando atenção. Boa estratégia para quem precisa se apresentar ao grande público. A senadora é um produto da nova direita. Já foi do NOVO, do PSL e agora está no UNIÃO (partido que ela nem cita na propaganda de televisão). Ela parece mimetizar a campanha de Tebet. Seu discurso é um tanto híbrido. Tenta uma compatibilização desconfortável entre liberalismo e direita; feminismo e conservadorismo. Uma coisa é certa: ela levou ao púlpito boas frases de efeito.
- Tebet: Muitos analistas apontam como a grande vencedora do debate, a que mais se destacou. Foi dura com Bolsonaro quando este revelou sua mal disfarçada misoginia e atacou Vera Magalhães. Tebet tem um grande problema narrativo para resolver (parecido com o de Soraya): apresenta-se como candidata das mulheres, mas votou pela deposição da primeira presidenta eleita da história do país. Manejou bem os tipos-ideais: solidária, firme, crítica, serena.
- Ciro: Terceiro lugar nas pesquisas. É reconhecidamente um bom orador. É, entre os presentes, talvez, o mais programático. Ciro foi o candidato mais propositivo do debate (diferente de Lula e Bolsonaro que jogam com o voto retrospectivo). Tentou mostrar sua face mais programática (e esconder a sua já folclórica faceta explosiva, incontida). É o intercambiável que melhor antagoniza com os hegemônicos. Busca votos dos dois. Nesse sentido, Ciro é considerado por alguns analistas como a maior linha auxiliar do bolsonarismo: seu eleitorado, ao não aderir a Lula, pode garantir o segundo turno para Bolsonaro. Lembrando que, no segundo turno, a chance de ataques ao sistema eleitoral pode ganhar mais corpo e aderência.
- Bolsonaro: O presidente falou para a sua base. O debate não deve lhe render nenhum voto a mais, contudo, foi capaz (mais uma vez) de cristalizar seus adeptos. Começou contido. No entanto, sua serenidade só durou os primeiros minutos de debate. Pacote completo: atacou adversários, jornalistas, mulheres, xingou e acusou. Como candidato hegemônico, sua briga é uma disputa pelo passado, pela construção de uma verdade emocionalmente legitimada. Pisou na bola ao destratar uma jornalista. Isso, inclusive, mudou a pauta de boa parte do restante do debate. A misoginia de Bolsonaro levantou uma bola para quem quisesse cortar. Lula não cortou (e errou feio por isso).
- Lula: O político mais orgânico e experiente. Democrata. Primeiro lugar em todas as pesquisas. Também faz a linha do voto retrospectivo. Busca resgatar o eleitor para uma memória afetiva e esperançosa. Quando questionado sob corrupção (o ponto fraco de sua imagem), não conseguiu reagir de forma tão boa como fez no Jornal Nacional da semana passada. Lula, no debate do dia 28 de agosto, não pareceu tão sagaz como em outras oportunidades. Não foi seu dia. No entanto, sua estratégia contida e não agressiva revela um plano acertado do ponto de vista comunicacional: falar para fora de sua bolha (coisa que Bolsonaro não conseguiu, por exemplo). Isso é fundamental para os hegemônicos.
- Em 2018 o debate televisionado havia perdido o posto de instância decisiva para a internet. Em 2022, os dois campos foram sobrepostos e isso tem repercussões. Ao tempo em que assistíamos ao debate, era possível acessar a internet como instância interpretativa do que os olhos presenciavam na TV. Isso é poderoso. O candidato que jogar bem com isso terá grande vantagem.
- Por fim, é importante anotar o que aconteceu na antessala do debate: Janones e Salles quase indo às vias de fato. Foi preciso um cordão humano de segurança para separar os grupos. Se isso for um preditivo do pleito, a coisa será feia. Quando elites políticas agem assim, seus apoiadores são estimulados a fazer o mesmo. Foi lamentável, especialmente porque o ambiente era de debate. Democracia opta pelas palavras, não pela força bruta.
Yuri Holanda Cruz é mestrando em Sociologia (UFC). Integrante do Laboratório de Estudos sobre Política, Eleições e Mídia (LEPEM – UFC)